quarta-feira, 29 de julho de 2020

SÓ NÃO VÊ QUEM NÃO QUER


Quem acompanha este blog deve ter lido os capítulos iniciais de duas sequências que eu venho publicando "a conta-gotas". A primeira foca os presidentes que tivemos desde 1961, quando a renúncia de Jânio Quadros acendeu o estopim do golpe de ’64 e pavimentou o caminho para os 21 anos de ditadura militar. Os capítulos iniciais foram ao ar em 15, 16, 17 e 24 de abril e 3 e 7 de maio, e os finais devem ser publicados no mês que vem. Já a segunda teve início no último dia 6, foi interrompida no oitavo capítulo e também será retomada e encerrada em agosto, possivelmente na primeira quinzena. Da filosófica anedota sobre a criação do mundo (relembrada nesta postagem) à eleição de 2018, passando por diversas farsas históricas — em que mulas são representadas como fogosos corcéis e golpes militares, como atos de bravura e patriotismo —, as duas "novelas" levam à mesma conclusão: nosso “esclarecidíssmo” eleitorado é o principal responsável pelo governo que aí está e, por extensão, pela situação que o país atravessa. Até porque o presente nada mais é que a somatória das consequências de escolhas feitas no passado, e uma coisa que nosso povo não aprendeu — desde o golpe militar de 1889, que a maioria prefere chamar de “Proclamação da República” — é eleger seus representantes e governantes.

Em abono a essa tese, reproduzo ipsis litteris o Editorial de O Estado de S. Paulo do último dia 24, que diz o seguinte:

Se a Nação padece dos severos efeitos da pandemia além do que seria naturalmente esperado, é porque o governo do presidente Jair Bolsonaro foi incompetente para lidar com a crise ou pautou suas decisões por critérios antirrepublicanos. Não há outra conclusão a que se possa chegar após a leitura de um relatório do Tribunal de Contas da União sobre a gestão da emergência sanitária pelo governo federal.

O foco inicial da fiscalização do TCU eram as compras feitas pelo Poder Executivo durante o estado de calamidade pública. No entanto, “dificuldades e preocupações” concernentes à gestão da crise como um todo levaram o ministro Benjamin Zymler, relator do processo na Corte de Contas, a expandir o escopo de análise com o objetivo de “sugerir” ao Ministério da Saúde (MS) alguns “apontamentos para correção de rumos”, a começar pela atuação do Comitê de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE). Para o ministro Zymler, uma das principais unidades da estrutura de governança do MS para o enfrentamento da pandemia, se não a principal, “parece não estar exercendo o papel de articulação e coordenação (que lhe cabe) na prática”. O ministro foi elegante na crítica.

O TCU também destacou o “enfraquecimento da função de comunicação” do governo com a sociedade pelo fim das coletivas de imprensa diárias, o que configura uma violação do Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus. Sem o norte dado pelo poder central, tanto a sociedade como os governos locais ficam mais suscetíveis à inconsistência de informações sobre políticas públicas, o que, em se tratando de uma crise de saúde, é muito grave.

Mais grave, porém, é a falta de critérios técnicos claros para o repasse dos bilionários recursos da União aos entes federativos, o que sugere que motivações políticas do presidente Bolsonaro podem ter preponderado na hora de definir para onde iria o dinheiro. Os casos do Pará e do Rio de Janeiro são os mais alarmantes.

Os dois Estados estão entre os três com a maior taxa de mortalidade por Covid-19 do País (31,4 e 28,1 mortos por 10 mil habitantes, respectivamente), mas estão entre os três que menos receberam recursos da União para enfrentar a pandemia. O que explica uma aberração dessas? As desavenças de Jair Bolsonaro com os governadores Helder Barbalho (MDB) e Wilson Witzel (PSC)? Será este o espírito que anima o presidente da República? É conhecido seu desdém pela gravidade da pandemia e sua diferença de visão, por assim dizer, em relação às ações de muitos governadores. Daí a ignorar a mortandade nos dois Estados e deixá-los com magros recursos vai uma enorme distância.

Até o dia 25 de junho, menos de um terço dos R$ 39 bilhões que foram alocados ao MS para enfrentamento da pandemia — ou seja, R$ 11,4 bilhões — tinha sido utilizado pelo governo. Números que traduzem um inaceitável descaso.

A má gestão pode ser mais perniciosa do que a escassez de recursos públicos. A boa administração de parcos recursos é capaz de produzir melhores resultados do que a incúria em cenário de abundância. Em situações de crise, como agora, o quadro é particularmente mais grave. No curso de uma emergência sanitária, malversação ou demora na alocação desses recursos em ações de socorro à população podem significar vida ou morte para milhões de pessoas. Diante disso, não surpreende que cada vez menos gente se mostre escandalizada pelo uso da palavra “genocídio” pelo ministro Gilmar Mendes, do STF.

Desafortunadamente, o País é presidido por alguém inepto como Jair Bolsonaro no momento em que enfrenta a mais mortal crise sanitária em mais de um século. Uma tragédia dentro da tragédia. Nunca se saberá ao certo qual seria a história da pandemia de Covid-19 no Brasil caso o presidente fosse outro, alguém minimamente cioso de suas responsabilidades, empático e capaz de inspirar e liderar seus concidadãos nesta hora grave.

À Nação só resta refletir, amadurecer e evoluir no processo de escolha de seus líderes. É este o curso natural da democracia.

(O grifo e os destaques são meus).