Teich assumiu a Saúde depois que Bolsonaro enfarinhou, fritou,
cozinhou, assou e finalmente defenestrou o então ministro Mandetta — não
porque o desempenho do médico fosse insatisfatório, antes pelo contrário: a
popularidade que lhe rendeu seu protagonismo no combate à Covid-19
incomodou o chefe, que não admite que
alguém sob seu comando seja mais popular do que ele (atualmente, até o
jardineiro do Palácio consegue esse prodígio, mas isso é outra conversa).
Também
contribuíram para a saída do oncologista sua irredutibilidade quanto ao uso da
cloroquina e "teimosia" em seguir as recomendações da OMS — do ponto de vista da Ciência, Bolsonaro
parece ter nascido numa caverna e estar caçando brontossauros.
Quando Teich foi empossado —
dizendo-se alinhado com o general da banda —, teve-se inicialmente a impressão de que o capitão
da caverna sem luz havia nomeado um lambe-botas disposto a obedecê-lo
cegamente, ainda que para isso tivesse de limpar o rabo com o diploma de médico.
Teich foi criticado por tornar menos frequentes as
coletivas de imprensa (que o antecessor realizava todo fim de tarde), por sua aparente
inércia, pelas respostas evasivas e até por ter trocado o colete do SUS pelo paletó e gravata nos raros pronunciamentos à imprensa.
Soube-se mais tarde que o médico assumiu a pasta como “ministro de direito”, subordinado ao já então “ministro de
fato” (ou interventor militar, como queira o leitor) general Eduardo Pazuello
e sua equipe de fadados. A gota d’água foi Teich ter tomado conhecimento pela imprensa de que o
presidente havia liberado sem consultá-lo — ou mesmo comunicá-lo — da
reabertura de academias de ginástica e salões de beleza. E deu no que deu: o auxiliar pediu o boné antes mesmo de completar um mês no posto.
Fiz essa (não tão) breve introdução para esclarecer o que quis dizer com situações em que opções não significam necessariamente escolhas
— como quando a(s) alternativas torna(m) a emenda pior que o soneto. Considerando que o que abunda não excede, junto ao exemplo retrocitado a conhecida parábola que originou a expressão “escolha salomônica” (Livro 1 de Reis, capítulo 3,
versículos 16 a 28 da Bíblia), que no caso em tela deve ser focada não na
difícil decisão imposta ao rei, mas na posição da mãe da criança.
Duas prostitutas que dividiam a mesma casa deram à luz
com um dia de diferença. Um dos bebês faleceu, e a mãe trocou-o pelo
sobrevivente. A verdadeira mãe exigiu a devolução do filho, mas não foi atendida,
pois a amiga afirmava ser da reclamante o bebê que havia morrido. Depois de
ouvir os dois lados da história, o Rei Salomão ordenou
que partissem a criança ao meio e que cada mulher ficasse com uma metade. No
mesmo instante, uma delas implorou-lhe que desse o bebê para a outra, donde o
rei inferiu ser ela a mãe verdadeira, eis que seu amor pelo filho era tamanho
que ela preferia vê-lo vivo, mesmo que longe de seus braços.
Tudo isso para embasar minha tese de que a escolha
abilolada que do esclarecidíssimo eleitorado no primeiro turno do pleito de
2018 não nos deixou alternativa ao indesejável retorno do
PT ao poder que
não fiar o contrato de locação do atual inquilino do Palácio do Planalto.
Assim, os eleitores sensatos (e desalentados)
taparam o nariz e
uniram forças
com os bolsomínions, já que votar no
catimbau — falo do papalvo
bonifrate de
Lula — jamais foi uma opção válida, e fazer como os 42
milhões de brasileiros que anularam o voto, votaram em branco ou simplesmente não
compareceram às urnas seria fortalecer o adversário.
O xis da questão é que escolhas, mesmo as impositivas, implicam
consequências, e o problema com as consequências é que elas
vêm depois.
Dois
anos atrás, mesmo quem fez a lição de casa e esquadrinhou a vida pregressa do “
caso completamente fora do normal,
inclusive mau militar“, que teve a
carreira no exército abortada
por
indisciplina e
insubordinação e, em 28 anos como integrante do baixo clero da Câmara
Federal aprovou 2 projetos e colecionou mais de 30 ações criminais, não poderia prever que votar nessa excrescência não levaria “a montanha parir um
ridículo
rato” (refiro-me à célebre frase “
parturiunt montes,
nascetur
ridiculus mus”, atribuída ao poeta romano
Horácio (65 a.C. – 8
a.C.), mas a dar à luz um abjeto rascunho de
Godzilla. Nem (muito
menos) que o eleito subiria a rampa cercado por um ignóbil
triunvirato prolítico
seguidor da seita maldita do escalafobético “
homem de Virgínia”.
De nada adianta chorar o leite derramado, diz um velho ditado.
Mas tampouco adianta esperar que o presidente mude seu comportamento e se transforme
da noite para o dia num administrador competente, num político eivado de lisura
(coisa que não existe neste planeta, mas enfim...), bem intencionado, que ponha
os interesses da nação (e não os próprios e os da filharada) à frente de suas ambições
eleitoreiras — até porque o melhor cabo eleitoral de um político que visa à
reeleição é um primeiro mandato produtivo e honrado.
Para não esticar este texto com repetições desnecessárias, relembro apenas o que escrevi
nesta
postagem, sobre o remédio constitucional a ser usado quando um candidato
que se elege calcado em propostas de campanha que passa a não cumprir — por
incompetência, inadequação às exigências do cargo ou simples má-fé —, flerta
com o autoritarismo e ameaça empurrar para o abismo a nação que foi
eleito para comandar. E sobre a importância de administrar o fármaco na dose correta
e em tempo hábil, sob pena de matar o paciente.
Para concluir:
No dia 23 de maio de 1999, o hoje presidente da República
concedeu uma entrevista antológica à Band. Aos 24 minutos da conversa (que durou exatos 43), ele disse hipoteticamente que se fosse eleito presidente “daria
golpe no mesmo dia! Não funciona… o Congresso de hoje em dia não funciona”.
Antes, aos nove minutos, ele havia dito que “… o Congresso só existe para
dizermos que temos uma democracia”.
Assistir a essa entrevista é um exercício esclarecedor. Duas
décadas atrás, Jair Messias Bolsonaro, então deputado federal pelo PPB
(um dos oito partidos pelos quais passou em seus 30 anos de vida
pública), pesava exatamente como continua pensando atualmente. Olhando a coisa pelo lado do
copo meio cheio, temos de reconhecer que, quando mais não seja, o trevoso é
coerente. Ao menos quando isso lhe interessa.
Há que ter estômago para enfrentar os 43 minutos da
entrevista. A afinidade que o capitão demonstra ter com a morte, por exemplo — e que vem demonstrando durante a pandemia quando relativiza “a morte de alguns” —, fica evidente em outra de suas falas famosas: a afirmação de que a ditadura “deveria
ter matado mais uns 30 mil, começando pelo FHC”.
Aos 16 minutos da entrevista, o Messias que não faz milagre afirma
que “sonega tudo que pode”; aos 17, que “votaria no Lula porque ele é
honesto”; aos 26, que “o Planalto seria um ótimo lugar para fazer o
teste de uma bomba nuclear”.
Abro um parêntese para salientar que, em 1999, Lula ainda era o desempregado que deu certo, o retirante nordestino pobre e analfabeto que passou de engraxate a torneiro mecânico; de baderneiro eneadáctilo a líder sindical; de fundador do partido dos trabalhadores que não trabalham, estudantes que não estudam e intelectuais que não pensam a candidato derrotado à prefeitura de Sampa (1982); de deputado federal (1986) e postulante contumaz à presidência da República (1989, 1994, 1998). Só em 2002 que o fiduma passaria à condição de presidente eleito, e em 2006, a despeito do Mensalão, não só se reelegeria. como se faria suceder, em 2010, pelo rascunho do mapa do inferno, colecionaria mais de 10 processos criminais, seria preso em 2018 e solto “provisoriamente” 580 dias depois (novembro de 2019), à bordo de uma namorada que conheceria na cadeia (Canja, Franja, Janja ou coisa parecida) e, sabedor de que o diabo detesta concorrência e, portanto, o protegeria do Sars-CoV-2, iria ao Vaticano constranger o Papa. Fecho o parêntese.
Está tudo lá. Há mais de 20 anos. Tantos são os absurdos que,
em qualquer outro país, Bolsonaro teria sua carreira política encerrada
ao terminar a entrevista. Aqui, não. Aqui, ao que tudo indica, a postura beligerante até ajudou
a elegê-lo.
Recuso-me a crer que boa parte dos brasileiros pensa como ele; prefiro
imaginar que a forma com que ele se expressa é que cativa o eleitor “menos
questionador” — com o conteúdo, a eleitorado apedeuta sequer se importa, até porque, ainda que quisesse se importar, não teria capacidade cognitiva para tanto.
Bolsonaro foi eleito num momento em que boa parte do
país estava indignada com o PT, com a corrupção, com os escândalos que
se sucediam, e conquistou admiradores com um discurso de político calejado, que fala gritando e
gesticulando, o que, a olhos e ouvidos menos atentos, pode parecer indignação.
Enfim, moldamos nossa democracia ao jeitinho brasileiro. Nossa forma de governo é o Presidencialismo de Impeachment — por aqui, o impeachment não é o último recurso, mas simplesmente uma das etapas de um mandato presidencial.
Não temos treino, nem cultura, nem vontade para perder tempo escolhendo um presidente. Então, elegemos aquele que grita mais alto e depois a se vê no que dá. Collor, por exemplo, era conhecido apenas no Nordeste. Aterrissou no Planalto, e deu no que deu. Dilma idem. Uma microcéfala exótica alçada ao cargo máximo
do país por um encantador de burros semianalfabeto. Deu no que deu. De novo. Mas Bolsonaro estava longe de ser um desconhecido. Sua
performance nas eleições para deputado (foram oito!) lhe garantiram enorme notoriedade.
Para quem
pesquisou ou assistiu apenas a entrevista de 1999, nada do que o capitão diz surpreende. Mesmo assim, a nação está surpresa com seu comportamento. E, como
mandam as regras do Presidencialismo de Impeachment, trinta e tantos pedidos estão nas mãos — ou na gaveta — de Rodrigo Maia, para que nossa democracia
tupiniquim siga seu curso.
Dizem que esse nosso comportamento são as dores de
crescimento de uma jovem democracia. O problema é que antigamente doía. Hoje,
mata.
Tantos foram os absurdos ditos por Bolsonaro naquela
entrevista que, em qualquer outro país, sua carreira política estaria
encerrada antes mesmo de o programa terminar. Aqui não.
Com Mentor Neto