quarta-feira, 24 de junho de 2020

A LEI, ORA A LEI


Aristóteles dizia que “o homem é um ser social porque é um animal que precisa dos outros membros da espécie”. Donde somos animais e necessitamos viver em bando. Juntos, sentimo-nos protegidos, amados e valorizados; isolados, tornamo-nos animais tristes.

Viver em sociedade pressupõe a sobreposição dos interesses coletivos aos individuais e a limitação da liberdade de cada um para evitar interferência na liberdade de outrem da sociedade como um todo. Dito de outro modo, o direito de um termina onde começa o direito do outro. Mas é mais fácil dizer do que fazer.

Somos incapazes de viver sós e, paradoxalmente, de viver em sociedade, porque o convívio social exige a observância de regras limitadoras do nosso ser ou não-ser. Como diria Drummond, é preciso instinto de formiga, dentes de leão e habilidade camaleônica.

A convivência em um meio comum pressupõe a busca de interesses que atendam de forma equilibrada às necessidades coletivas e a persecução das expectativas individuais. O convívio social gera atritos entre os diversos interesses individuais presentes, que muitas vezes se revelam antagônicos e colidentes. Daí a necessidade de se pôr ordem no galinheiro, o que se faz por meio de leis, ou normas jurídicas.

Como a prostituição e os políticos, a lei é um mal necessário. Quando mais não seja porque, se não forem impostos limites, a liberdade tende a atravessar a tênue linha que a separa da libertinagem. Mas não cabe à lei, na condição de imperativo de conduta que coage alguém a se comportar da forma esperada e desejada, permitir expressamente o que quer que seja, e sim vedar aquilo que, no entendimento do legislador (representante legitimado pelo voto para exercer a função de guardião da soberana vontade popular), vai de encontro (ao invés de ao encontro) aos interesses da sociedade. Daí o velho axioma: “Nullum crime sine (prævia) lege” (não há crime sem que haja uma lei anterior que o defina).

Dito em outras palavras, alguém só pode ser punido se sua ação (ou omissão) constituir fato delituoso previamente tipificado pela legislação vigente. Para entender melhor a questão do previamente, digamos que Joãozinho costuma peidar na igreja, e um belo dia esse mau hábito passa a ser tipificado, ou seja, a ser visto como contravenção ou crime. Isso significa que Joãozinho estará transgredindo a lei se peidar na igreja a partir de então, mas não poderá ser punido por tê-lo feito centenas ou dezenas de vezes até então, já que a lei veio depois do fato. Ademais, não há que falar em pena sem prévia cominação legal, de modo que Joãozinho só poderá ser punido por peidar na igreja se a lei, além de criminalizar essa ação, definir uma punição a quem cometer a ação.

Por outro lado — e tudo tem um outro lado —, vivemos num país onde até o passado é incerto, e o eleitorado — majoritariamente apedeuta e desinformado — vota em candidatos desonestos, que se elegem para roubar, roubam para se reeleger e, entre uma coisa e outra, cobrem com o manto parlamentar os andrajos de maus políticos e criam leis destinadas a favorecer a si, a seus pares e a criminosos que podem pagar honorários milionários a chicaneiros especializados em empurrar a decisão final dos processos ad kalendas græcas — ou até que a pretensão punitiva do Estado seja frustrada pela prescrição.

Costuma-se dizer que se está na lei, deve ser cumprido”, mas isso não pode significar uma obediência cega, irracional e carente de qualquer senso crítico ao que está sendo imposto como forma de comportamento. É fundamental, portanto saber quais os limites de atuação do poder que obriga o cumprimento da lei, e quais as formas de regulamentá-lo.

Para encurtar a conversa: ao abrimos mão de nossa plena e irrestrita liberdade em prol do convívio harmonioso em sociedade, aceitamos tacitamente determinadas limitações, mas essas limitações devem atender ao anseios dos conviventes/aderentes, satisfazendo, assim, suas pretensões. E que temos visto nos últimos tempos é um apego desenfreado à letra fria da lei ou o exercício da hermenêutica criativa para adequar o alcance do dispositivo legal a um caso específico, de acordo com a simpatia pessoal do julgador pelo réu ou por suas convicções político-ideológico-partidárias.

Em última análise, em vez de submeter a sociedade a leis arcaicas e divorciadas da realidade, deve-se revogar essas leis ou, no mínimo, adequá-las aos desejos e necessidades dessa sociedade. Dito de outra forma: se uma lei já não serve, muda-se a lei.

Por extensão, se um candidato se elege calcado em determinada proposta de campanha e acaba por não cumpri-la, seja por incompetência, seja por inadequação às exigências do cargo, seja por simples má-fé, e empurra para a beira do abismo o país que foi eleito para comandar, há que ser substituído com a possível urgência. A Constituição oferece remédios para mitigar esse mal, mas é imperativo aplicá-los em tempo hábil, ou o paciente pode morrer antes mesmo de o tratamento começar.

Acho que me fiz entender.