sexta-feira, 6 de maio de 2022

O PAÍS DO FUTURO QUE TEM UM IMENSO PASSADO PELA FRENTE


Os arcaicos meios e modos da política brasileira, que sabidamente não acompanharam a evolução de variados setores desde a redemocratização, volta e meia dão as caras, suscitam breves debates e de pronto voltam ao recôndito de suas obsoletas tocas. Precisamos mesmo que o Estado nos diga quando, onde e como deve ser permitido fazer campanha eleitoral? Claro que não, assim como não temos a menor necessidade de ser obrigados a votar, por definição o exercício de um direito. São amarras estatais absolutamente anacrônicas, tentativas de controle incompatíveis com a realidade que, além de infantilizar o eleitorado, desviam o foco daquilo que realmente precisa ser combatido e corrigido. 


Até 2015, as campanhas tinham duração de noventa dias; desde então o prazo foi reduzido para 45 dias e assim é ainda hoje. Antes disso não são permitidos comícios, divulgação de candidaturas nos espaços reservados aos partidos no rádio e na televisão e muito menos pedir votos em quaisquer atos públicos. Mas a pergunta que se coloca é: tais regras, individualmente ou em conjunto, são respeitadas? 


É público e notório que inexiste fiscalização, viceja a tolerância por parte da Justiça Eleitoral, grassa a cumplicidade leniente entre partidos, mas o fato é que essas normas não são respeitadas principalmente porque não fazem sentido. Comícios tais como se faziam antigamente já não existem. Se a regra fosse aplicada com rigor, estariam enquadradas nela as manifestações de natureza política que acontecem o tempo todo e nas quais o pedido de votos está implícito. Temos campanhas autorizadas por 45 dias e vivemos em clima de eleição há mais de três anos, desde a proclamação dos resultados eleitorais de 2018. 


Se os presidentes dão o exemplo — e não só por culpa da reeleição, pois o defeito não é da norma, é dos homens e das mulheres —, natural que seus adversários atuem da mesma maneira, esperando que a imprensa registre os movimentos e que a parcela da sociedade interessada em política entre na onda. De acordo com a lei, são todos infratores: políticos, partidos e brasileiros engajados na discussão eleitoral.


A restrição em vigor cria um falso delito lastreado em amarra arcaica. Fere a liberdade de expressão, mas deixa de lado o que realmente é grave: o criminoso, por inconstitucional, abuso de poder político e econômico cometido principalmente, mas não só, por governantes. O controle deveria estar aí, e não na tutela do exercício da liberdade e dos direitos dos cidadãos.


Costuma-se dizer que as instituições estão funcionando no Brasil. Se funcionassem, a Câmara já teria aberto um pedido de impeachment contra Bolsonaro e o mandato de Daniel Silveira já teria sido passado na lâmina. Arthur Lira segura a decisão há dez meses e o Conselho de Ética da Câmara trocou a cassação por uma suspensão do mandato por seis meses. O fato de a suspensão não ter chegado ao plenário a cinco meses da eleição revela que o centrão transformou a ocupação do Orçamento federal num processo de bolsonarização das instituições.


Se as instituições funcionassem, PGR já teria formulado meia dúzia de denúncias criminais contra um presidente se as instituições funcionassem. Bolsonaro produz provas contra si mesmo em escala industrial. Ao aprovar a recondução de Augusto Aras ao cargo de chefe do departamento de blindagem de Bolsonaro, com os votos de integrantes da CPI do Genocídio, o Senado ofereceu ao país mais uma evidência de que as instituições claudicam. O STF não teria se convertido numa espécie de terceira Casa do Legislativo se as instituições operassem com perfeição. A esta altura, Bolsonaro já teria sido informado de que o indulto concedido a Daniel Silveira não cabe dentro das quatro linhas da Constituição. Mas a Corte negocia uma saída política.


ObservaçãoO poder não aceita desaforos. Quem tem poder precisa exercê-lo na medida exata. Quem exorbita erra o alvo. Quem claudica vira o alvo. Desacatado por Daniel Silveira, o ministro Alexandre de Moraes apresentou ao deputado bolsonarista, com pelo menos 16 dias de atraso, a conta do escracho: R$ 405 mil. O togado mirou o bolso de aloprado num instante em que a protelação já havia se transformado num fator de desmoralização de sua toga. O deputado troglodita desligara o equipamento que deveria monitorá-lo desde 17 de abril. Era como se o réu tivesse instalado sua tornozeleira no magistrado. O escárnio começara antes, como anotou Moraes em seu despacho: "Desde a decisão que fixou a multa diária, proferida em 30 de março de 2022, o réu desrespeitou flagrantemente várias das medidas". Na véspera, Silveira dizia que o perdão que obtive de Bolsonaro o livrou de responder por todas as culpas: "Presidente perdoou, acabou!" O restabelecimento da ordem está condicionado ao pagamento da conta. Moraes determinou o bloqueio de R$ 405 mil nas contas de Silveira e mandou notificar o réu que preside a Câmara, Arthur Lira, para que providencie o desconto da dívida no contracheque, na proporção de 25% do salário até a quitação. Resta agora ressuscitar o axioma segundo o qual ordem judicial se cumpre.


Não fosse a desfuncionalidade das instituições, Bolsonaro já teria sido responsabilizado por transformar a usina de confusões do Planalto no único empreendimento que funciona a pleno vapor no seu governo.


Triste Brasil.


Com Dora Kramer e Josias de Souza