Bolsonaro disse que existe uma “cabeça de burro na América do Sul que força a gente para o lado esquerdo”, referindo-se à Venezuela, à Argentina e ao Chile, onde, segundo ele, a política vem interferindo para o lado negativo da economia. Disse também que a vitória de Lula pode equiparar o Brasil a esses países, que “Deus deu uma chance ao Brasil” com sua eleição em 2018, que "eleição é uma questão de segurança nacional" e que “chega de bananas e demagogos na política brasileira”.
Apesar de o presidente dizer que "só Deus o tira da cadeira", uma intervenção divina pode não ser necessária: são devastadores para a campanha pela reeleição os efeitos da prisão do ex-ministro Milton Ribeiro e dos pastores que trocaram propina por verbas públicas no Ministério da Educação.
"Ele que responda pelos atos deles", declarou Bolsonaro, tomando distância. Assim fica fácil. Primeiro, o capitão entrega os cofres do MEC ao Centrão. Depois, manda o ministro abrir as portas da pasta para seus pastores de estimação. Confrontado com o noticiário sobre a corrupção, acusa a imprensa de "covardia" e coloca a "cara no fogo" pelo auxiliar. Consumada a prisão, finge que não tem nada a ver com o problema. Fica entendido que, sob Bolsonaro, o cinismo também é uma forma de patriotismo.
A cara do capitão, que estava chamuscada, ficou carbonizada. Seu discurso anticorrupção foi parar na cadeia. Seu desespero tende a aumentar assim que ele se der conta dos riscos a que estará sujeito caso deixe de dispor das imunidades e da blindagem que o cargo de presidente lhe proporcionam.
Bolsonaro caiu em sua própria armadilha. Demitiu o ministro-pastor quando ficou claro que sua permanência no cargo intoxicava a campanha à reeleição. Com o gesto, retirou do auxiliar o foro especial que mantinha o caso no Supremo. O envolvimento do presidente da República poderia reter o caso na Corte Suprema. Mas a Advocacia-Geral da União disse que nada era como parecia ser.
Ouvida, a PGR também livrou a cara de Bolsonaro. O caso desceu, então, para a primeira instância do Judiciário. Deu no que está dando. A despeito de todas as evidências em contrário, a vice-procuradora-geral da República Lindôra Araújo, braço direito do antiprocurador-geral Augusto Aras e, como ele, simpática ao bolsonarismo, sustentou em ofício remetido ao Supremo que não havia elementos para investigar Bolsonaro. Àquela altura, Milton Ribeiro já não era ministro.
A manifestação de Lindôra foi uma resposta à ministra Cármen Lúcia, que estranhou a ausência de Bolsonaro no pedido de abertura de inquérito. Para Aras e sua equipe nem mesmo a menção ao nome do presidente em áudio do então ministro justificava uma apuração para verificar até que ponto a cara de Bolsonaro estava tostada pelas labaredas do MEC.
Cármem Lúcia viu-se compelida a enviar o caso para o primeiro grau — um nível em que não se encontram no raio de abrangência da blindagem de Aras e do setor da PF que se dedica à investigação de parlamentares e autoridades de primeiro escalão.
O lero-lero de Bolsonaro segundo o qual não haveria corrupção no seu governo já havia perdido o prazo de validade. Com a prisão dos pastores, esse discurso virou conversa de pátio de penitenciária. Aos poucos, o "mito" vai percebendo os riscos que correm os parceiros e os cúmplices do Centrão quando não dispõem do escudo proporcionado pelas prerrogativas de um cargo graúdo.
Em seu penúltimo ataque ao sistema eleitoral, Bolsonaro voltou a afirmar que teria vencido no 1º turno em 2018 e reagiu a uma fala de Alexandre de Moraes: “Por que quem duvidar do sistema eletrônico vai ter registro cassado e ser preso? Sou obrigado a confiar? Eu posso apresentar falhas? Posso dizer, como foi em 2014, que no meu entendimento técnico o Aécio ganhou? E eu, com documentação que tenho do próprio TSE, falar que ganhei no 1º turno? Não posso falar isso? Vão cassar o meu registro?”
Segundo a revista eletrônica Crusoé, a pergunta do presidente, para além da retórica, demonstra medo de perder no tapetão. Desde que Moraes o incluiu em diferentes inquéritos que apuram ataques ao sistema democrático e divulgação de fake news, o Planalto vem considerando o risco de o registro da candidatura do presidente ser anulado. Esse medo aumentou após a 2ª Turma do STF validou a cassação do mandato do deputado bolsonarista Fernando Francischini, que foi condenado por alegações de fraude que fez durante uma live, em 2018, cerca de meia hora antes do fechamento das urnas.
Condições para um pedido de anulação do registro da candidatura de Bolsonaro existem e dependem apenas de uma condenação que decorra das investigações tocadas por Moraes. Para a assessoria jurídica da campanha de Lula, são favas contadas, embora quase ninguém acredite que o TSE acolha o pedido. Até porque o MPF está com o presidente, o PGR serve a seus interesses políticos e eleitorais, e a PF e outros órgãos de fiscalização foram cooptados.
Lula foi impedido de recorrer em 2018, mas havia sido condenado em 2º grau. Além de estar cumprindo pena, a lei da ficha limpa dizia claramente que ele não podia disputar a eleição. Na atual conjuntura, porém, intervir para tirar um candidato da disputa teria conotação antidemocrática — e impedir Bolsonaro de concorrer seria inviabilizar sua própria derrota, que já está traçada pelas pesquisas de opinião.
Com índices de rejeição altíssimos, Bolsonaro sabe que provavelmente será vencido nas urnas e, por isso, instiga o TSE a tomar uma medida arbitrária, que o legitimaria como vítima e fortaleceria sua narrativa golpista. Na terceira via, porém, há quem flerte com o tapetão, visto como único meio de romper a polarização. Mas o resultado é imprevisível.
O maior medo de Bolsonaro não é ser impugnado, mas preso. Se já aconteceu com dois ex-presidentes (Lula e Temer), pode muito bem acontecer com mais um.
Com Josias de Souza