Em outubro de 2020, numa sequência publicada sob o título “Semideuses Togados”, eu disse que havia então no Brasil um cargo que não estava previsto em nenhum dos 250 artigos da Constituição Federal nem em qualquer de suas mais de 100 emendas, mas que valia mais do que se estivesse. Tratava-se da função de presidente do Poder Judiciário nacional.
Não falava eu da cadeira de presidente do STF, que é preenchida por um sistema de rodízio e vai sendo ocupada por qualquer um dos onze ministros, à medida que chega sua vez. O cargo em questão fora criado pouco a pouco, ao longo dos últimos anos, e servia para dar a seu ocupante a tarefa de realmente mandar no STF e, por tabela, no resto do sistema de Justiça do país.
Esse presidente do Judiciário era (e continua a ser) o ministro Gilmar Mendes, que está no posto porque entende e atende melhor que ninguém os interesses materiais da casta que manda — de verdade — na vida pública do Brasil. Tudo que tem alguma relevância para o país depende dele, até porque os dois outros poderes entregaram sua autoridade ao STF. E como é Gilmar quem de fato decide as coisas importantes no Tribunal, é em Gilmar que vale a pena prestar atenção. O resto é o resto.
Poucas vezes essa realidade ficou tão evidente como na indicação do ministro Kássio Nunes Marques. Prova disso é que Bolsonaro teve de ir ao Monte Olimpo, digo, à casa de Odin, digo, de Gilmar, e obter sua aprovação para o nome que foi encontrar no Piauí e no Centrão, e que contava com as orações mais devotas dos inimigos da Lava-Jato e do combate à corrupção. Pouco interessava, então, a opinião dos dez outros ministros — que, de qualquer forma, não têm autoridade legal nessa escolha — ou do Senado — a quem cabe, oficialmente, aceitar ou recusar a indicação do presidente da República. O voto que contava era o de Gilmar.
O então desembargador Nunes Marques, como se soube menos de uma semana após seu nome vir a público, havia copiado trechos inteiros de um texto escrito por um amigo e advogado do Piauí naquilo que apresentou como a sua “tese” de doutorado na “Universidade Autônoma de Lisboa” — que, aliás, não tem nada a ver com a verdadeira Universidade de Lisboa, mas é um empreendimento particular que cobra “propinas” (é assim que eles chamam as anuidades) de uns € 4 mil por ano, ou coisa do gênero, de quem queira fazer algum curso por lá. Nada que o ministro Gilmar não pudesse resolver, é claro.
Também é fato que o Senado engole qualquer coisa — aceitaria um chimpanzé para o STF, se recebesse a ordem de aceitar. Mas, ainda assim, a nomeação do desembargador piauiense para a vaga do decano Celso de Mello foi uma mais uma prova do poder do semideus togado: se ele conseguiu colocar lá dentro até o Nunes Marques, o que ele não conseguiria?
Os ministros do STF não foram colocados lá pelo Parlamento da Nova Zelândia, nem Gilmar foi nomeado para o cargo de "presidente do Poder Judiciário". Ele está no posto porque, como dito, sabe entender e atender melhor que ninguém os interesses materiais da casta que manda — de verdade — na vida pública do Brasil, e que é formada pelos políticos, sobretudo os que têm problemas com o Código Penal, pela OAB e seus escritórios milionários de advocacia criminalista, pelos devedores do Erário, pelas empreiteiras de obras, pelo consórcio esquerda-direita-centrão, pelo alto funcionalismo público, pelos intelectuais orgânicos, pela ladroagem em geral, pela elite em seu modo mais extremo — a turma do ex-presidente FHC, que foi quem indicou Gilmar para o Supremo.
Gilmar é o homem que realmente pode resolver os problemas dessa gente toda — e, como se comprovou com a indicação do novo ministro, também os problemas do mandatário de fancaria desta banânia. É o herói de todos eles porque se tornou o garantidor número 1 da impunidade neste país, mandado soltar, como se fosse uma questão de princípio, qualquer acusado de corrupção que lhe passasse pela frente, por conta daquilo que considera “ilegalidades processuais”.
O STF, com os onze ministros que estão lá hoje, não é fruto de um azar da natureza, como os terremotos e enchentes, mas das escolhas políticas que vêm sendo feitas no Brasil nos últimos trinta anos, das eleições dos presidentes da República às eleições de senadores e deputados federais. Os nobres ministros são o resultado direto e inevitável da vida política brasileira; é dali que eles saem, como Eva da costela de Adão.
Lula, Dilma, Bolsonaro? Temer, Aécio, Rodrigo Maia? Renan Calheiros, Davi Alcolumbre? Dá tudo na mesma. O STF que está aí é o que eles quiseram, e que a maioria dos políticos eleitos no Brasil quis. Não adianta achar que os responsáveis são outros — da mesma maneira que não adianta imaginar que o Supremo teria um comportamento diferente se não fosse comandado por Gilmar. Os outros dez togados são mais ou menos iguais a ele — a diferença é que não sabem agir com a mesma eficácia. Mas Gilmar não é nenhuma anomalia de circo, como a mulher barbada ou o bezerro de duas cabeças. É o retrato exato deste STF que aí está — e da Justiça brasileira tal como ela funciona hoje.
Feita essa (não tão) breve contextualização, reproduzo uma matéria publicada por Mario Sabino na edição da revista eletrônica Crusoé do último dia 24:
Não existe ninguém mais poderoso no Brasil do que Gilmar Mendes. Se um ministro do STF pode tudo, ele pode ainda mais. Não há ninguém capaz de ombrear com ele. Gilmar engoliu todos os presidentes do tribunal depois que Joaquim Barbosa se aposentou da Corte. Por qual motivo ninguém lhe faz frente? É que o ora decano do STF, ao contrário do resto, sabe que só tem poder quem efetivamente o exerce por inteiro. Age sem peias por instinto, por origem e também, reconheçamos, porque leu Maquiavel melhor do que qualquer outro integrante atual da Corte. O Brasil não é muito diferente politicamente da Florença do século XV. É só uma versão tropicalizada, sem mecenato.
A Lava-Jato, fulminada, serviu a que o magistrado estendesse o seu poder ao Legislativo. Ele, que era chapa, virou patrão. No Executivo, Bolsonaro lhe é tão devedor que foi pedir a bênção para a indicação de Nunes Marques. André Mendonça? Gilmar outra vez. Se Lula for eleito presidente, terá um credor no atual decano do STF, porque foi Gilmar quem o tirou da prisão. O projeto de instaurar o semipresidencialismo saiu da cachola de quem? De Gilmar, que, pelo visto, sonha com o cargo de primeiro-ministro no eventual novo regime.
O reto e vertical Paulinho da Força, no lançamento daquele pastiche que o PT apresentou como programa de governo, foi cristalino sobre quem está no topo: ‘Em todo lugar que eu andava, alguém me falava assim: ‘fala para o Lula não falar isso’. Do Gilmar Mendes ao peão da fábrica. Depois fiquei pensando por que as pessoas falaram isso toda hora. É a preocupação de que a gente não erre, porque, se Lula e Alckmin errarem, o Brasil é quem perde com isso’.
A medida desse poder ficou ainda mais visível na a segunda-feira, 20, quando Gilberto Kassab reuniu 300 pessoas em um restaurante, em Brasília, para homenagear os 20 anos de Gilmar no STF. Dois dias depois foi a vez de Arthur Lira prestar o seu tributo. Na residência oficial do presidente da Câmara dos Deputados, o parlamentar alagoano promoveu um jantar em honra ao homem mais poderoso do Brasil, para o qual foram convidados os presidentes da República e do Senado, os ministros da Casa Civil e da Justiça), os togado supremos Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, além dos deputados Aécio Neves, Reginaldo Lopes e Elmar Nascimento. Os regabofes aconteceram na mesma semana em que Luiz Fux promoveu um encontro oficial com parlamentares, para fazer uma DR do Judiciário com o Legislativo. Divertido.
Gilmar também tem “correspondentes” nas redações (o termo é dele) e, quando julga necessário, faz saber a donos de jornais que não gostou desta ou daquela reportagem. Ou que gostou. Ou que gostaria. Na semana anterior ao tal jantar, em sintonia com uma das capas desta Crusoé , O Globo alertou, em editorial, para o excesso de ativismo político do Supremo durante o governo Bolsonaro, em nome da defesa da democracia. Disse o jornal, para ilustrar seu ponto:
"O ministro Luís Roberto Barroso deu até prazo para o governo tomar providências nas buscas do indigenista e do jornalista desaparecidos na Amazônia, como se isso tivesse algum poder de acelerá-las — ou algum cabimento. O ministro Edson Fachin, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, se esforça para desvencilhar-se da desavença insólita que ele próprio alimentou com os militares em torno das urnas eletrônicas. E o ministro Gilmar Mendes teve nesta semana de reafirmar o óbvio, dizendo que o Supremo não é ‘partido de oposição ao governo’. Não é, nem jamais deveria ser". O Globo fez também a seguinte observação geral: "a Corte, que deveria manter-se equidistante e alheia a paixões, parece a cada dia mais contaminada pelo noticiário, como se devesse prestar contas à opinião pública, não à lei ou à Constituição."
Para ilustrar o ativismo político que rende manchetes para a cúpula do Judiciário, eu citaria ainda o fato de Luiz Fux, como presidente do CNJ, ter criado um “grupo de trabalho” do qual faziam parte o ator Wagner Moura e o fotógrafo Sebastião Salgado, para acompanhar as buscas pelo indigenista e pelo jornalista brutalmente assassinados. Como se isso tivesse o poder de acelerá-las — ou algum cabimento. Mas entendo os limites do jornal carioca da gema. O que importa aqui é Gilmar, apontado como a voz da sensatez sobre o STF, não poder se comportar como partido de oposição ao governo. E, pelo jeito, a voz começa a ser ouvida: Alexandre de Moraes se reuniu a portas fechadas com Bolsonaro, no jantar oferecido por Arthur Lira ao decano do tribunal.
Diante das evidências, já deveria estar claro para todo mundo que Gilmar é o homem mais poderoso do Brasil. Os partidos são dele. Todos. O governo é dele. Todo. Os poderes são dele. Todos. Gilmar é a situação, não importa quem ocupe o Palácio do Planalto, as presidências do Senado e da Câmara ou a presidência do STF. Qualquer resistência a ele é inútil. O ministro é um forte em território de fracos. Atacá-lo é como querer trocar o darwinismo pelo criacionismo. Na nossa selva selvaggia, ele é o topo da cadeia alimentar a quem devemos temer e ouvir. Não existe nada mais sensato a fazer.