segunda-feira, 26 de setembro de 2022

A MALDITA POLARIZAÇÃO (CONTINUAÇÃO)


Sem Lula e com dois Bolsonaros — o falso cristão e o fake-padre Kelmon —, o debate transmitido pelo SBT no último sábado não produziu fato novo capaz de virar votos ou seduzir indecisos. Se serviu para alguma coisa, foi para retardar a decisão dos eleitores que cogitam lançar mão do "voto útil". 

A presença do pseudoprelado-pau-mandado de Roberto Jefferson deu a Bolsonaro uma aparência de madre Tereza, analisa Josias de Souza. Ausente, Lula apanhou indefeso. Mas o orçamento secreto do capitão fez sombra às perversões petistas. De resto, ficou no ar uma interrogação: Quem ganha exposição num debate medíocre é melhor ou pior do que quem perde?

O cinismo do candidato à reeleição não aumentou, mas continuou nos mesmos 100%. Instado a dizer o que diferencia o mensalão petista do seu orçamento secreto, ele fez pose de vítima do patrimonialismo do Congresso. "Eu não sei para onde vai o dinheiro desse tal orçamento secreto." A frase tem um quê de confissão de culpa, pois Bolsonaro sabe que boa parte das verbas que libera para comprar apoio no Legislativo escoam pelo ralo da corrupção.

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A sementinha do "nós conta eles" encontrou solo fértil na seara do jornalismo profissional, donde é quase impossível separar comentaristas isentos de militantes (petistas ou bolsonaristas). Como o Judiciário também foi infectado por essa praga, tornou-se comum ver membros das cortes superiores balizando-se pela máxima getulista segundo a qual "aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da lei".
 
Vice-líder nas pesquisas, o mandatário de fancaria que guindamos ao Planalto em 2018 para evitar a volta do criminoso à cena do crime emendou ao comício que fez no funeral da rainha Elizabeth II o discurso de abertura na ONU. A jornalista Eliane Cantanhêde — a quem eu admiro, malgrado sua evidente simpatia pelo lulopetismo — detectou sinais evidentes de "despedida, prestação de contas e ataque ao líder das pesquisas" na fala do presidente. 

Observação: De acordo com O Antagonista, o discurso original de Bolsonaro incluía um ataque ao Supremo e ao sistema eleitoral, mas o presidente foi dissuadido por assessores. Logo após citar indiretamente a corrupção na gestão de Lula, Bolsonaro diria: “Lembro que, mesmo não sendo absolvido, os juízes que tiraram o responsável por essa tragédia da cadeia são os mesmos que conduzem o atual processo eleitoral brasileiro”. Mesmo assim, ele aproveitou o palanque em Nova York para criticar o período em que “a esquerda presidiu o Brasil”, reiterando que o petista foi condenado em três instâncias (o que é a mais pura verdade).

Não é preciso ter bola de cristal para vislumbrar o tamanho da pedreira que separa o candidato da reeleição. Talvez ele sobreviva primeiro turno, mas é improvável que vença o adversário no embate final. Dizer que seu governo pôs fim à corrupção sistêmica das gestões petistas é o mesmo que o sujo criticar o mal lavado, ou, melhor dizendo, uma tentativa desesperada de fomentar a rejeição ao adversário — o que é compreensível, considerando que cerca de 50% dos entrevistados pelo Ipec descartam a possibilidade de votar em Bolsonaro. 

O finado guru do bolsonarismo disse certa vez que os brasileiros tinham apenas dois neurônios, um contra e outro a favor. Para Paulo Kramer*, os documentos pró-democracia que inundaram a internet nas últimas semanas refletem a guerra de narrativas. Desde a eleição de 2018 que a imprensa convencional passou a se mostrar incomodada com o surgimento de vozes discordantes. Até então, existia apenas um grupo acostumado a veicular os seus pontos de vista de forma que fossem considerados como um consenso aceito pela sociedade. O início dessa ruptura se deu com os protestos de junho de 2013, em que a população se revoltou contra os gastos excessivos com os estádios da Copa do Mundo enquanto setores básicos, como Educação e Saúde, estavam sendo sub financiados.

Bolsonaro começou a preparar a sua campanha após essas manifestações, que deram visibilidade a setores que antes não estavam representados no mercado de opiniões da população economicamente ativa. Esse arco histórico evolui até o impeachment de Dilma e à eleição do ex-capitão. Para a mídia tradicional, os resultados do pleito de 2018 foram difíceis de prever e mais difíceis ainda de engolir. De um lado, ficou a bolha dos já conhecidos formadores de opinião; do outro, os grupos emergentes que entram para participar da política — um choque que não se atenuou nos anos subsequentes, muito pelo contrário. 
 
Ainda segundo Kramer
o populismo não é um problema exclusivo do Brasil. Vivemos a ascensão mundial de um movimento nacionalista e conservador — um rompimento que tem provocado conflitos graves em democracias até mais sólidas do que a nossa, e que veio para ficar, pelo menos enquanto as demandas da população por uma maior transparência e credibilidade dos entes políticos não forem atendidas. O que se trava é um grande diálogo de surdos, onde cada lado acha que está certo. 

As cartas pela democracia e o bolsonarismo representam uma diversidade de ideias à qual nossa opinião pública não estava acostumada. Havia um consenso dos formadores de opinião que se caracterizava como de centro-esquerda. Basta analisar a Constituição de 1988 — que, apesar dos avanços inegáveis do ponto de vista da consolidação das liberdades políticas, também se configura como uma lei majoritariamente estatizante. Ironicamente, isso aconteceu também às vésperas da derrocada comunista na Queda do Muro de Berlim.
 
A democracia precisa da diversidade de pensamentos, e não de um pensamento único. O verdadeiro conservadorismo conserva o que é bom e rejeita o que é ruim, mas não pretende congelar a história nem tampouco é reacionário, até porque não é possível girar para trás os ponteiros do relógio. Edmund Burke, pai do conservadorismo moderno, dizia que um governo incapaz de se reformar é também um governo incapaz de sobreviver. 
 
*Paulo Kramer: professor doutor aposentado de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), é expert da Fundação da Liberdade Econômica.