Bolsonaro e Lula se esmeram numa repugnante desumanização mútua, mas se esmerdam ao estender essas manifestações vomitativas aos apoiadores dos respectivos rivais. Aliás, a cizânia que a polarização espalhou do Oiapoque ao Chuí remonta aos tempos dos mortadelas x coxinhas, quando o grande adversário do PT era o PSDB. Questionado acerca disso na sabatina do JN, o petista relativizou: "Política é assim. Você tem divergência, você briga, você diverge, você tem divergência programática. Mas você não é inimigo". Interessante.
Observação: O camelô de empreiteiro chegou a gozar 580 dias de férias compulsórias na carceragem da PF em Curitiba, mas teve a condenação anulada pelo STF, que entendeu (com cinco anos de atraso) que a 13ª Vara Federal do Paraná era territorialmente incompetente para processar e julgar o picareta.
Durante a pré-campanha de 2022, Lula desdenhou dos antigos adversários: "Agora quem acabou foi o PSDB". Em resposta, os tucanos disseram que o "PT passou anos dividindo o país", que "não adianta querer reescrever a história", e que "foram anos de PT, Lula e Dilma semeando o ódio, perseguindo adversários, dividindo a sociedade e montando uma usina de fake news".
O cientista político Pedro Marques afirma que há três tipos de polarização entre eleitores: a ideológica, a social e a afetiva. No primeiro caso, as pessoas divergem sobre programas políticos. No segundo, são diferenças sociais que causam a divisão. No terceiro, até mesmo a imagem ou o som da voz de quem pertence ao time contrário provoca reações viscerais. É fácil reconhecer essa lista de sintomas no Brasil de hoje.
As principais pesquisas sugerem que Lula está à frente de Bolsonaro. Confirmada essa tendência e feita a transição (com ou sem questionamento golpista do resultado das urnas pelo candidato à reeleição), é de se perguntar: como o bolsonarismo vai operar, caso se veja no papel de oposição, se Bolsonaro age como oposição até quando está no governo?
Se Lula vencer, não é difícil imaginar passeatas e motociatas sendo convocadas a partir de 2023. Caso o vencedor seja Bolsonaro, é natural supor que confrontos que já estão em andamento com o STF, com setores da imprensa e com quaisquer grupos que o contrariem vão dobrar de intensidade. Ele já disse mais de uma vez que todos terão de se ajustar “às quatro linhas da Constituição” — a Constituição tal como ele a interpreta, é claro.
Observação: Além de emular o discurso da "eleição roubada" que Trump fez nos EUA, o capitão pode acionar alavancas que sabe que funcionam, como as pautas de comportamento e a ameaça comunista. Além disso, quatro anos de governo estreitaram os laços do bolsonarismo com os evangélicos e consolidaram seu apelo para partes das Forças Armadas, do setor agrícola e do empresariado.
O Brasil teve um momento semelhante de polarização política na última gestão de Getúlio Vargas, quando situação e oposição não dialogavam, não se reconheciam nem autorizavam a existência uma da outra. O "suicídio" do tiranete, em 1954, adiou uma explosão, mas não evitou que a polarização continuasse crescendo até desaguar no golpe militar de 1964. As circunstâncias históricas atuais são outras e a hipótese de um golpe bem-sucedido no Brasil é nula, apesar da insistência dos bolsonaristas de raiz. Mas não há nada de fantasioso num cenário onde as desavenças e o medo da violência política continuam crescendo.
Um passo necessário, embora não suficiente, para recolocar o Brasil nos eixos é fazer com que a intolerância seja drenada do discurso político. Quando — e se — isso acontecerá, só Deus sabe.
Com Gazeta do Povo