Deus não precisa de conselhos, muito menos dos meus. Mas o ex-presidente que passou de ex-presidiário a presidente eleito e trilha o caminho da beatificação pode ser canonizado e... Enfim, bem faria o Criador se pusesse suas longas barbas de molho. Dito isso, sigamos adiante.
Consumado o naufrágio, discutir por que o barco foi a pique não ajuda quem se afogou. Mas sempre há um engenheiro de obra pronta de plantão — ou um oportunista para dizer: "eu bem que avisei." Metáforas à parte, Bolsonaro foi o primeiro presidente da "nova" República a tentar a reeleição e não conseguir. Há quem atribua o fiasco à sua incontinência verbal. Frases como “não sou coveiro”, “quer que eu faça o quê?” e “e daí?” não granjearam muita simpatia.
Para além da notória falta empatia, Bolsonaro aglomerou pessoas em eventos oficiais; sabotou o isolamento social; questionou sem base científica o uso de máscaras; defendeu e financiou medicamentos sem eficácia; desestimulou e atrasou a vacinação na pandemia; foi conivente com o desmatamento da Amazônia e deu de ombros para o garimpo ilegal. Suas políticas públicas se resumiram ao auxílio emergencial — que seria de R$ 200 se o Congresso não batesse o pé em R$ 500, fazendo com que o presidente aumentasse para R$ 600. Mesmo assim, os pagamentos foram irregulares e só ganharam consistência — na forma do Auxílio Brasil — com a proximidade das eleições.
Em 2019, o Brasil cresceu abaixo do esperado, e depois veio a pandemia. Embora a economia venha se recuperando, a qualidade dos empregos criados é ruim, o salário-mínimo não teve aumento real, a fome cresceu e o número de moradores de rua aumentou. O combate à corrupção e à velha política do "toma-lá-dá-cá" não passou de promessa de campanha, e a narrativa de um governo probo e ilibado foi mera cantilena para dormitar bovinos. Bolsonaro se rendeu ao Centrão e autorizou o orçamento secreto, e não faltam suspeitas de desvio de dinheiro público e escândalos de corrupção nos ministérios da Saúde e da Educação.
Bolsonaro cooptou a PGR, a PF e outros órgãos de controle para proteger seus filhos e políticos aliados suspeitos de práticas pouco republicanas. Para desviar o foco da mídia, fabricou novas crises, atacou a imprensa e o STF, fez ameaças golpistas, questionou as urnas eletrônicas e se empenhou em tumultuar as eleições. A beligerância e as atitudes extremistas garantiram ao "mito dos atoleimados" o apoio permanente de um bando de imbecis travestidos de militantes comandados por um imbecil travestido de presidente. Mas de arrebanhar apoiadores de ocasião motivados pelo antipetismo para conquistar a reeleição não funcionou, até porque o antibolsonarismo pesou mais.
Do resultado das urnas ao reconhecimento da derrota foram mais de 40 horas de silêncio — em meio a protestos de caminhoneiros em rodovias de todo o país — e menos de dois minutos de fala. Diante da notícia de que haveria um pronunciamento, o Ibovespa, que já estava no azul, acelerou a alta nas últimas duas horas do pregão. Mas a euforia durou tão pouco quanto o discurso no qual Bolsonaro não reconheceu diretamente a derrota nem citou o nome do vencedor.
As “críticas” do mandatário aos movimentos extremistas foram breves, ambíguas e nada assertivas. Ele reconheceu a legitimidade dos “protestos”, mas disse que não podem ser violentos. O mais perto que chegou de admitir a própria derrota foi quando cochichou para o ministro-chefe da Casa Civil: “Vão sentir saudades da gente”. De resto, falou apenas com e para seus apoiadores da chamada “ala ideológica”.
A confirmação feita por Ciro Nogueira, numa fala igualmente breve, de que haverá uma transição pacífica entre o governo do atual mandatário e a gestão petista, serviu para que o capitão admitisse a derrota sem ter que falar com todas as palavras. O pronunciamento de Nogueira, segundo a análise de Maria Cristina Fernandes, colunista do Valor Econômico, em entrevista a Renata Lo Prete, mostrou um ministro que tentava apaziguar a birra de um chefe de Estado. "É como quem diz assim: 'Olha, deixa que eu negocio por ele. Ele é muito criança, ainda não tem condição de falar. Deixa que eu falo com ele'.
Para a colunista, Bolsonaro tenta manter o "estado de mobilização, nas estradas ou por outro meio", diante de seu isolamento após a derrota. "Tudo o que ele conseguiu fazer com esse pronunciamento é mostrar que vai infernizar a vida do país até o último dia", diz. O objetivo, segundo ela, seria esticar a corda para conseguir garantias após ficar sem foro privilegiado pela primeira vez em mais de 30 anos. "Ele quer uma anistia, quer um indulto presidencial, quer uma graça presidencial. Ele quer negociar a vida depois do poder" (ouça a entrevista completa).
Dilma discursava em "dilmês". Bolsonaro se pronunciou em "bolsonarês". Josias de Souza traduziu para nós: "Quero começar agradecendo os 58 milhões de brasileiros que votaram em mim no último dia 3 de outubro". O que Bolsonaro quis dizer é que ele não xinga quem preferiu votar em Lula para não ser antipático, mas dá uma banana para os 60 milhões de eleitores que o privaram de desfrutar por mais quatro anos de tudo o que o dinheiro — do contribuinte — pode comprar.
"Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral." O presidente quis dizer que o bolsonarismo leva sua raiva das redes sociais para as ruas porque há um momento na vida em que o sujeito se dá conta de que tudo está perdido, menos a indignidade de se indignar com a injustiça de uma fraude que não houve.
"As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas. Mas os nosso métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, com invasão de propriedades, invasão de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir." Não se deve confundir conivência com fidelidade; quando o STF rosna para autoridades que se tornam cúmplices de baderneiros que bloqueiam estradas, a democracia se transforma num regime em que o mito é livre para escolher quem levará a culpa.
"A direita surgiu de verdade em nosso país. Nossa robusta representação no Congresso mostra a força de nossos valores: Deus, pátria, família e liberdade." Bolsonaristas como Damares Alves, Ricardo Salles e Sergio Moro, que chegaram ao Congresso cavalgando o prestígio do presidente e os seus valores, não são conservadores; eles representam a novíssima ação integralista brasileira, de inspiração fascista.
"Formamos diversas lideranças pelo Brasil. Nossos sonhos seguem mais vivos do que nunca. Somos pela ordem e pelo progresso. Mesmo enfrentando todo o sistema, superamos uma pandemia e as consequências de uma guerra." O que Bolsonaro quis dizer é que, em vez de criticá-lo, todos os seus opositores deveriam acalentar o sonho de viver no Brasil descrito na sua fala com tanto entusiasmo, seja ele onde for.
"Sempre fui rotulado como antidemocrático e, ao contrário dos meus acusadores, sempre joguei dentro das quatro linhas da Constituição. Nunca falei em controlar ou censurar a mídia, ou as redes sociais. Enquanto presidente da República e cidadão, continuarei cumprindo todos os mandamentos da nossa Constituição." A vida dentro das quatro linhas da sua Constituição é muito parecida com o futebol, mas o campo é mal demarcado, fake news conta como gol, vale canelada em jornalista — sobretudo se for mulher —, a bola é quadrada e o supremo juiz é um canalha.
"É uma honra ser o líder de milhões de brasileiros, que como eu defendem a liberdade econômica, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, a honestidade e as cores verde e amarela de nossa bandeira." A partir de 1º de janeiro de 2023, Bolsonaro vai ralar na oposição. Sem o socorro de Aras e Lira, rezará para não sofrer a mesma decepção de ex-governantes que descobriram tarde demais que sua liberdade era apenas uma lamentável negligência dos órgãos de controle.
Com NEXO JORNAL, VOCÊ S/A e Josias de Souza.