sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

PONTOS A PONDERAR (CONCLUSÃO)


Antes de fugir para a terra do camundongo Mickey, Bolsonaro ressurgiu numa live para dizer coisas como "foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas", ou "tem gente chateada comigo, dizendo que deveria ter feito alguma coisa, qualquer coisa, mas para conseguir fazer alguma coisa, mesmo nas quatro linhas, você tem que ter apoio". A certa altura, chegou a assumir sua condição de camundongo autocrata: "Entendo que fiz a minha parte, estou fazendo a minha parte. Agora, certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos e instituições".
 
Ficou entendido que o Brasil só não virou uma ratocracia graças às barricadas erguidas pela imprensa e pelo Judiciário, ao instinto de sobrevivência dos aliados no Legislativo, à reação da maioria (apertada, é verdade) do eleitorado e aos sinais emitidos pela comunidade internacional, que forçaram o capitão a se render à realidade.
 
Bolsonaro desce ao verbete da enciclopédia como o presidente que virou a página da história para trás. Tornou-se um sub-Figueiredo. A diferença é que o pedido do último presidente do ciclo militar — "me esqueçam" — foi prontamente atendido, ao passo que o mito dos apatetados adicionou à recusa de passar a faixa ao sucessor a fuga para o exterior (mas avisou que não cogita "jogar a toalha", de modo que continuará boiando no vaso como um tolete de merda que se recusa a descer). 
 
Nas pleito de outubro, 60,3 milhões de brasileiros concederam a Lula 3 a oportunidade de liderar uma 12ª tentativa de renascimentoA despeito da vantagem magra, imaginou-se que, depois de tantos recomeços em falso, o Brasil finalmente deixaria de ser uma Terra plana. Mas 39% dos brasileiros avaliam que a gestão ruinosa de Bolsonaro foi ótima ou boa, e outros 24%, que seu desempenho foi regular. 

É como se 63% da sociedade transitasse entre o inacreditável e o inaceitável. Um pedaço do país tem dificuldades para aceitar as ideias de Copérnico, para quem a Terra gira em torno do Sol, e outro naco hesita até mesmo em aceitar Darwin.
 
Bolsonaro definiu a disputa eleitoral de 2022 como uma "guerra do bem contra o mal." A agora ex-primeira-dama rogou a Deus que afastasse do Planalto as assombrações demoníacas. Suas preces foram momentaneamente atendidas. O maligno já não dá expediente na Presidência, e Micheque tornou-se um adereço da fuga do marido.
 
Nos mais de 60 anos que separam Jânio de Bolsonaro, o Brasil conviveu com duas formas de Poder discricionário: a ditadura institucionalizada e a ditadura da personalidade. Excetuando-se certos personagens que foram mais transições do que presidentes, proliferaram os ditadores e os loucos. A benevolência divina vinha poupando o país de alguém que acumulasse as duas condições, e então surgiu Bolsonaro.
 
O Brasil é um país que, além de dois presidentes submetidos ao impeachment, teve outro que morreu no dia da posse. Antes, teve um que renunciou e um que se suicidou no Palácio. Nesse contexto, Lula tem a oportunidade de transformar a herança maldita de Bolsonaro num desastre didático e purgativo. Do contrário, arrisca-se a levar o país a confundir novamente, em 2026, o histrionismo autocrático com substância e a loucura com solução.
 
Com Josias de Souza