domingo, 12 de março de 2023

DE ONDE VIEMOS E PARA ONDE VAMOS (CONTINUAÇÃO)

 

O almirante Bento Albuquerque tornou-se coadjuvante involuntário do "Escândalo das Joias", estrelado com pompa e circunstância pelo casal Bolsonaro. Assim como os protagonistas, o ex-ministro terá de prestar depoimento à Polícia Federal. Até o momento (em que eu concluí este texto), ele era visto apenas como mentiroso; dependendo do que disser, pode se tornar cúmplice. 
 
Bolsonaro considera-se protagonista de um filme épico em que recebe a missão divina de presidir o Brasil acorrentado a quatro valores: Deus, pátria, família e liberdade. Os vídeos da alfândega exibem um roteiro alternativo, no qual ele aparece como um messias de fancaria que mobiliza militares das "minhas Forças Armadas" para surrupiar joias avaliadas em muitos milhões.
 
Observação: Com R$ 16,5 milhões — valor estimado das joias ofertadas à Michelle pelo príncipe saudita Mohammad bin Salman — seria possível comprar sete apartamentos como o célebre tríplex do Guarujá (que foi leiloado em 2018 por R$ 2,2 milhões) ou reformar 16 vezes o famoso sítio de Atibaia (as sentenças anuladas da Lava-Jato orçaram em R$ 1,02 milhão as reformas que empreiteiras larápias fizeram no sítio). 
 
Os mimos destinados a Bolsonaro (relógio, abotoaduras, caneta, anel e um rosário islâmico, todos da marca suíça de diamantes Chopard) vieram escondidos na bagagem de Albuquerque, passaram despercebidos pela alfândega e foram entregue ao presidente. Já as joias que cabiam a madame vieram enfurnadas na mochila do assessor Marcos André dos Santos Soeiro, e foram flagradas pelo raio-X da Receita. 
 
O episódio permite supor que Bolsonaro, encastelado no Alvorada depois da derrota nas urnas, temperava sua alegada depressão organizando a pilhagem. Pode-se imaginá-lo às vésperas da posse de Lula, pés sobre a mesa, lata de leite condensado na mão, ordenando a 
Mauro Cid que mandasse a São Paulo num avião da FAB o sargento Jairo Moreira da Silva, para resgatar as joias. "É de urgência", diria o sargento ao fiscal da alfândega. "Isso aqui faz parte da passagem [de governo], não pode ter nada do antigo para o próximo. Tem que tirar tudo, tem que levar". E o auditor fiscal daria de ombros.
 
Em entrevista à CNN, o ministro Fernando Haddad disse que Bolsonaro  tentou “surrupiar” as joias. Ainda que assim não fosse, o episódio ampliou o entendimento entre aliados de que Bolsonaro será alvo de investigações por longo período e que isso abalará sua imagem. Antevendo a possibilidade de o TSE suspender os direitos políticos do "mito", a cúpula do PL aposta na ex-primeira-dama como ativo eleitoral para 2026. 

Observação: Michelle era tida e havida como opção para concorrer ao Senado pelo DF em 2026, mas pode vir a disputar a Presidência caso seu marido não possa concorrer. Isso me faz lembrar do pleito de 2018, no qual Haddad foi preposto-bonifrate de Lula, que estava cumprindo pena em Curitiba. Como se vê, a história se repete, seja como tragédia, seja como farsa.

No enredo épico, Bolsonaro e bolsomínions se enganam mutuamente. O capitão reivindica para si um figurino de idealista perseguido, e seus seguidores engolem suas presunções a seu próprio respeito. No script classe B, escancarado nas filmagens da alfândega, o idealismo do ex-mandatário é reduzido a uma reles vigarice. 

Durante a campanha de 2022, em dueto com os devotos, Bolsonaro entoava nos comícios: "Lula ladrão". E seus súditos: "Seu lugar é na prisão." Levando-se a sério essa pregação, o lugar do presidente é no xadrez, não na Flórida — daí as lideranças do PL aconselharem-no a adiar a volta ao Brasil (como se fosse preciso).

Com Josias de Souza