sexta-feira, 3 de março de 2023

DE VOLTA AO PESADELO


Em maio de 2021, o general Eduardo "um manda e o outro obedece" Pazuello postou-se ao lado do então presidente em um comício extemporâneo. Da feita que o Estatuto dos Militares e o Regulamento Disciplinar do Exército proíbem a participação de militares da ativa em atos político-partidários, o general Paulo Sérgio Nogueiraentão comandante do Exército, se viu diante de um dilema: punir o Pazuzu, arriscando-se a ser desautorizado por Bolsonaro, ou desmoralizar a instituição.

Nogueira determinou a abertura de um processo disciplinar, mas Bolsonaro telefonou ao general Braga Netto, então ministro da Defesa, e proibiu qualquer nota ou manifestação pública a respeito do caso. Ficou decidido não punir Pazuello e, a pretexto de que a Lei de Acesso à Informação restringe documentos por haver dados pessoais, impor sigilo de 100 anos ao processo. Bem mandado, o general Paulo Sérgio foi promovido ao posto de ministro da Defesa. 
 
Acabou que a reeleição de Bolsonaro deu com os burros n'água, e o eleitor, ao optar por burros mais secos, autorizou Lula a levantar os tapetes do antecessor. A quebra do sigilo confirmou a suspeita de que a bolsonarização do pior ministro da Saúde de todos os tempos era apenas parte do detrito; o que se desejava esconder era o lixão da anarquização das "minhas Forças Armadas".
 
Além de evitar que eventuais netos de Laurinha (filha de Bolsonaro com Michelle) passassem pelo constrangimento de descobrir, num futuro remoto, que seu bisavô reincorporou os militares brasileiros à idade da Pedra Lascada, a exposição da lambança com cem anos de antecedência deu ao Brasil a oportunidade de transformar o futuro — esse espaço gasoso e impreciso do calendário — em algo mais concreto. Mas para que isso ocorra o bordão "sem anistia" precisa ser estendido às fardas que flertaram com a fraude hermenêutica segundo a qual as Forças Armadas seriam instituições com poderes para moderar quase tudo na República, exceto o próprio tacape.
 
Bolsonaro não conseguiu instrumentalizar as FFAA no atacado, mas não faltam evidências de que oficiais da ativa e da reserva se tornaram cúmplices de suas delinquência — como aconteceu na "gestão cloroquínica" da pandemia, na terceirização da soberania da Amazônia ao crime organizado, na deformação do feriado de 7 de Setembro, nas motociatas, nos comícios, no questionamento ao sistema eleitoral e mais um inesgotável etcetera. Nesse caldeirão de perversões institucionais, fervilharam as ideias gosmentas que levaram multidões às portas dos quartéis para pedir uma intervenção militar contra o resultado das urnas, e essa gosma escorreu até os prédios dos Três Poderes.
 
No dia 8 de janeiro, militares não só negligenciaram a proteção da sede da Presidência — ou, no dizer de Lula, "abriram as portas do Planalto para o vandalismo" — como também acionaram blindados para impedir que a polícia prendesse em flagrante os responsáveis pelo quebra-quebra, refugiados no portão do QG. As detenções foram postergadas para o dia seguinte, quando parte da falange bolsonarista já havia escapado. 

Nesse cenário, a suspensão do sigilo que mantinha Pazuello atrás de um véu diáfano de proteção é a parte mais fácil do trabalho. Para que o serviço seja completo, é preciso responder duas perguntas: 1) Quando e como serão punidos os militares que se acumpliciaram com Bolsonaro? 2) Que Forças Armadas a democracia brasileira deseja ter?
 
Está claro que Bolsonaro não conseguiu virar a mesa, mas não está suficientemente esclarecido o que se pretende obter com os militares que Lula e o ministro José Múcio (Defesa) escolheram para se sentar ao redor da nova mesa, e, pior, falta disposição para retirar as fardas antidemocráticas que continuam embaixo da mesa. Foram afastados dos arredores mais de uma centena de militares, mas os suspeitos de negligência no 8 de janeiro saíram de fininho. 
 
Os civis da intentona estão submetidos aos rigores da caneta de Alexandre de Moraes, mas os fardados frequentam "investigações preliminares" do Ministério Público Militar. Para os paisanos, a cadeia preventiva. Sem anistia. Para as fardas, uma transferência da vitrine para o fundo da loja. Sem esculacho. 

O eleitor deu de presente a Pazuello o escudo de um mandato. O general Nogueira e seus assemelhados permanecem protegidos pelo silêncio coletivo e pela benevolência dos deuses da impunidade. Triste Brasil.

Com Josias de Souza