segunda-feira, 15 de maio de 2023

COM O SUPREMO, COM GILMAR, COM TUDO

 

Em privado, Lula se revela encantado com o desempenho de Flávio Dino, a quem considera um "modelo" a ser seguido no governo. Seu estilo de linguagem garante engajamento nas redes sociais, mas é a exposição excessiva proporcionada pelos adversários que impulsiona seu desempenho. Ao oferecer tantas oportunidades para a evolução do ministro nos salões do Congresso, a oposição se esquece de uma regra básica da política: quem tem calos não deve se meter em apertos. Melhor dançar sozinho.
 
Parte do STF e uma ala do MPF acreditam que Alexandre de Moraes abusou de seus poderes ao apensar 
a investigação de Bolsonaro por falsificação do registro de vacinação ao inquérito das milícias digitais. Ainda assim, acredita-se que ele teria respaldo para legitimar sua ação em plenário, como ocorreu com outras decisões polêmicas. Membros do MPF também estão preocupados com a decisão em relação ao Telegram. Além de agido de ofício — via de regra, o Judiciário não decide por iniciativa própria, mas base nos pedidos dos investigadores —, Moraes, ao impôr uma retratação focou mais o conteúdo da mensagem do que a forma abusiva de sua distribuição.
 
As prisões envolvendo corrupção diminuíram drasticamente durante a gestão Bolsonaro. Afora o negacionismo e o golpismo, o ex-presidente é alvo de acusações que incluem até a tentativa de apropriação indébita das joias sauditas. Seu governo restaurou o império da imoralidade. A exposição dos calcanhares de vidro da Lava-Jato, o orçamento secreto — versão pós-moderna do mensalão — e outros escândalos revelaram que o Brasil, conhecido pela habilidade de encontrar soluções para tudo, tornou-se um país sem solução. 

O impeachment de Collor deveria ter sido um marco redentor. Não foi. Vieram os anões do Orçamento, o caso dos sanguessugas, o mensalão e o petrolão, as rachadinhas, as rachadonas, as propinas dos pastores do MEC, o emendão do Centrão, a muamba das arábias, e por aí afora. A percepção de que a política brasileira é majoritariamente composta por culpados e cúmplices enseja uma sensação de cansaço.
 
O semideus togado Gilmar Mendes defende a instauração de inquérito para investigar a "República de Curitiba" — composta, segundo ele, por uma "gente tão chinfrim", que recorreu à "prática de tortura usando o poder do Estado". Na avaliação de Josias de Souza, o magistrado está coberto de razão: é imperioso exumar a falecida operação Lava-Jato, mas com o Supremo, com Gilmar, com tudo. 

A Vaza Jato expôs supostas perversões processuais e políticas de Sergio Moro e Cia., mas faltou um hacker nos subterrâneos de magistrados como Gilmar. Uma boa investigação revelaria que o togado nem sempre foi um crítico da Lava-Jato — ou, por extensão, que ele já esteve do lado dos "pervertidos". Em 2016, ele não só ajudou a compor a maioria (de 6 a 5) que aprovou a prisão de condenados na segunda instância como pronunciou um dos mais eloquentes votos do julgamento — afirmando, entre outras coisas, que a cana na segunda instância aproximaria o Brasil do mundo civilizado. 

A aversão de Gilmar à Lava-Jato e suas "prisões alongadas" é anterior à Vaza-Jato. Seu distanciamento cresceu na proporção direta da aproximação das investigações de suspeitos de estimação — como Aécio Neves, José Serra e Michel Temer — e se consolidou em 2018, quando o magistrado se tornou um defensor voraz do direito dos condenados de recorrer em liberdade até a última instância. Mendes critica a promiscuidade do relacionamento entre Moro e os procuradores — coisa de fato inadmissível —, mas uma apuração rigorosa talvez conseguisse explicar por que ele, tão severo no juízo da atuação de terceiros, se exime de fazer um autoexame. E não há de ser por falta de material. 

O comandante-em-chefe-supremo nunca se constrangeu com os telefonemas que trocou com investigados amigos nem achou inadequado almoçar e jantar com encrencados em inquéritos no STF. Se hoje maldiz a heterodoxia da Lava-Jato, sob Dilma serviu-se de uma "transgressão" de Moro para brecar a nomeação de Lula para a Casa Civil, com base numa liminar escorada nos áudios divulgados pelo então juiz da 13ª Vara de Curitiba e valendo-se do raciocínio tortuoso de que o grampo se tornou secundário depois que criatura e criador reconheceram publicamente a autenticidade do diálogo. 
 
A nova investida contra a "República de Curitiba" foi estimulada pelo livro de memórias escrito por Emílio Odebrecht, dono da empreiteira mais varejada pela Lava-Jato. O eminente jurista matogrossense citou a "tortura" dos procuradores ao evocar o testemunho de Marcelo Odebrecht 
 o executivo que delatou a contragosto, empurrado pelo pai, a roubalheira na Petrobras e em todas as adjacências —, mas esqueceu de mencionar que foi graças às delações de Emílio, do filho e de seus executivos que o país ficou sabendo, por exemplo, que a construtora mantinha em seu organograma um departamento encarregado de comprar políticos com verbas roubadas do Estado. Coisa suprapartidária, confessada e documentada. Devolveram-se bilhões ao Estado. 
 
O escracho revelou-se tão grande que muitos se perguntam até hoje por que a maior empreiteira do Brasil não fez seu próprio governo ao invés de comprar o dos outros. Se o fizesse, todos os empreendimentos públicos, incluindo os de estatais como a Petrobras, estariam sob seu guarda-chuva, o que eliminaria as licitações, a corrupção e a necessidade de realizar operações anticorrupção... E investigações sobre as operações anticorrupção
 com o Supremo, com o Gilmar, com tudo.
 
Observação: Em respeito à memória curta dos brasileiros, vale relembrar que gravações obtidas pela "Folha"  mostram o então ministro do Planejamento, Romero Jucá, sugerindo ao ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado um "pacto para "estancar a sangria, com o Supremo, com tudo".