segunda-feira, 21 de agosto de 2023

FUGIR OU NÃO FUGIR, EIS A QUESTÃO

 

Nos depoimentos à PF e à CPMI, o hacker redneck Walter Delgatti Neto deixou claro que Bolsonaro o incentivou a forjar provas de que as urnas eram fraudáveis, prometeu indultá-lo se ele assumisse aautoria do suposto grampo no telefone de Alexandre de Moraes e ordenou ao coronel Marcelo Câmara, então assessor especial da Presidência, que levasse "o garoto" ao Ministério da Defesa, onde ele foi recebido pelo general Paulo Sérgio Nogueira em pessoa.
 
Seguindo os passos trôpegos do mafioso de comédia Fred Wasséfalo, o advogado Cezar Bitencourt — contratado após Rodrigo Roca e Bernardo Fenelon deixarem caso — apresentou versões contraditórias sobre a participação de Mauro Cid no furdunço das joias sauditas. Emulando o saudoso Abelardo "Chacrinha" Barbosa (não vim para explicar, vim para confundir), o criminalista disse em entrevista à GloboNews, no último dia 16, que desconhecia detalhes porque acabara de ser contratado, mas adiantou que seu constituinte era um assessor, e "assessor cumpre ordens do chefe"
No dia seguinte, em entrevista à Folha, Bitencourt afirmou que seu cliente "não deixava de ter uma certa autonomia".

Na quinta-feira, Veja revelou que Cid confessaria ter "cometido o crime por ordem de Bolsonaro". Na sexta, Bitencourt enviou mensagem ao Estadão afirmando que "não tem nada a ver com joias! Isso foi erro da Vejs (sic) não se falou em joias!". À GloboNews, o advogado informou que "seria somente o Rolex, que "a confissão seria apenas um 'esclarecimento' aos investigadores'" e que "houve má-fé, o Cid não vai dedurar o Bolsonaro". Agora pela manhã, disse à CNN que "É uma confissão. [Cid] vai admitir. As provas estão aí, ele vai admitir". 

Ainda na última sexta-feira, falando com a boca cheia de pão e tomando café com leite numa padaria do município goiano de Abadiânia, Bolsonaro concedeu uma entrevista ao Estadão. A tática é recorrente na carreira política do ex-presidente, anotou Leonardo Sakamoto em sua coluna no Uol. Dar uma entrevista nessa condição, em um vídeo que inevitavelmente terá grande repercussão na imprensa, visa passar a imagem de um homem de hábitos humildes. 
 
A questão é que esse "homem humilde" e seu clã adquiriram mais 100 imóveis, metade dos quais pagos com dinheiro vivo. Sobre esse monumento à humildade, pairam suspeitas de lavagem de recursos públicos, uso ilegal do cartão corporativo em benefício próprio e de sua família, além, naturalmente, da venda nos Estados Unidos as joias presenteadas pelo governo saudita. Esse "homem humilde" recebeu mais de R$ 17 milhões em doações via PIX, para pagar multas eleitorais e judiciais, e aplicou o dinheiro num fundo de renda fixa.
 
Aos olhos dos convertidos, o esquema da venda das joias pode causar mais danos à imagem do "mito" do que seu negacionismo na pandemia e seu golpismo eleitoral, donde a necessidade de ele reforçar a narrativa do "homem comum", cuidadosamente cultivada com vídeos em que aparecia comendo pão com leite condensado ou com a roupa suja de farofa do frango, e com lives onde se viam bandeiras coladas com fita crepe. 
 
O embuste convenceu muita gente, embora Bolsonaro tenha passado 3 décadas parasitando o erário e embolsando os salários de funcionários-fantasmas que apinhavam seu gabinete e os gabinetes de seus bem-ensinados filhos. Mas acabou pego num esquema (que contou com a participação de militares de diversas patentes) urdido para surrupiar joias presenteadas por um ditador saudita e usar o peso do governo para pressionar auditores da Receita Federal a liberá-las. Segundo a PF e o ministro Alexandre de Moraes, era o ex-presidente quem determinava os rumos criminosos da operação e se beneficiava dos dólares obtidos. 
 
Na avaliação do colunista do Uol Walter Maierovitch, as chances de Bolsonaro não cumprir alguma pena diminuíram drasticamente em face do depoimento de Delgatti — menos pela oferta de indulto individual e mais pela tentativa de violação do sistema eleitoral, que pode configurar crime contra o Estado Democrático de Direito. Se restar confirmado que agiu como mandante, sua excelência responderá pelos mesmos crimes que o hacker, na qualidade de coautor ou participe. Mas a temperatura, que havia subido muito, deu uma leve arrefecida com a desistência de
Cid confessar (segundo a versão mais recente apresentada por seu mais recente advogado).
 
Ao dizer "corre risco" no Brasil, Bolsonaro acendeu um sinal de alerta para os integrantes da CPMI, que encaminharam ao STF um pedido de medida cautela determinando a retenção de seu passaporte. Especula-se que uma possível rota de fuga passaria por países do Golfo Pérsico, com os quais ele manteve relações próximas ao longo de seu mandato. Além disso, ele recebeu a cidadania honorária no norte da Itália em 2021 — o que não passa de uma homenagem feita pela cidade de seus antepassados, mas poderia facilitar a concessão de um eventual pedido de nacionalidade italiana. Segundo o Itamaraty, eventual fuga obrigaria o Brasil a pedir a extradição do imbrochável, o que poderia resultar numa crise diplomática. 
 
Bolsonaro e seu ex-ajudante decidiram trilhar caminhos diferentes, com destinos inconciliáveis e conflituosos. Segundo ser advogado, Cid abdicou da condição de fâmulo subserviente e recebeu do "mito" uma resposta que jamais havia imaginado: "Ele tinha autonomia"; "eu não mandei ninguém fazer nada". 
 
Observação: Ajudantes de ordens não possuem iniciativa para dar ordens da alçada e competência exclusiva de um chefe de poder. Cid tinha por obrigação seguir as ordens recebidas, mas a lei diz que ordens manifestamente ilegais devem ter o cumprimento recusado. Além disso, ele não tinha atribuição legal para vender joias no Brasil ou no exterior, e o artigo 21 do Código Penal deixa claro que ninguém está livre de punição em razão de desconhecer a lei.
 
Para tentar se isentar dos crimes de peculato continuado, lavagem de dinheiro e associação delinquencial, Bolsonaro recorre à negativa da autoria e culpa o ex-factótum. Mesmo sem consistência legal nem visos de juridicidade,
a narrativa mantém os seguidores que ele não deseja perder enquanto planeja sua possível fuga da Justiça brasileira. 
 
Fugir ou ir para a cadeia é o dilema que o ex-presidente já carrega desde sua condenação à perda de cidadania passiva — ou seja, impossibilidade de concorrer e ser votado por oito anos. Dependendo do país de escolha, um autoexílio lhe permitiria continuar influindo remotamente na política brasileira e manobrando os cordéis aos quais estão atados os bolsonaristas de raiz. Cid, por sua vez, parece não escolha. 

Mesmo confesse e parta para a delação premiada, o tenente-coronel continuará vítima da crença cega num mentiroso e, diferentemente dele, não poderá fugir. Por pisotear a Constituição, o fardado vem sendo considerado como um militar que desonrou a farda por conduta lesiva à pátria. Fontes ouvidas pela Folha dão conta de que sua expulsão da caserna são favas contadas.
 
ObservaçãoConfissão é alguém assumir um ato como seu. Réus confessos podem ter a pena reduzida em 1/6. Na delação, além da confissão, há a "entrega" de outras pessoas e provas, e o delator pode obter até um perdão total.
 
Diz o ditado que "quando se encontra muito pelo de gato, é porque o gato está por perto". Tudo aponta para o que já se presumia, mas, em se tratando de líderes populares, é preciso ir devagar com o andor para evitar reação ou acusação de injustiça. Lula só foi pego depois que os demais envolvidos nos esquemas de corrupção foram apanhados — o STF anulou as provas e o "descondenou", mas isso é outra história. 
 
Carlos Bolsonaro pediu aos apoiadores que parem de comentar sobre uma possível prisão do pai. "É óbvio que o Brasil vive uma situação semelhante à da Venezuela, que os canalhas estão carecas de saber disso e estão utilizando sua psique para você validar algo que querem!”, escreveu 02 no Telegram. Já Bolsonaro pai diz que será anistiado pelo próximo presidente. 

À luz do que vem acontecendo nesta banânia, nos últimos anos, nada é impossível.