domingo, 10 de setembro de 2023

AS FFAA E A MULHER DE CÉSAR

 

Segundo o saudoso maestro Tom Jobim, o Brasil não é para amadores. Prova disso é o ex-juiz Sergio Moro, protagonista de uma das principais cenas políticas da história recente, estar às voltas com duas tramas rocambolescas que dominam a vida nacional. 
 
Como parlamentar, o ex-ministro atuou como um dos interrogadores na sabatina do advogado Cristiano Zanin, que agora ocupa uma cadeira no Supremo 
 se as coisas tivessem tomado outro rumo, é provável que Moro ocupasse essa cadeira e o STF não tivesse anulado as condenações do demiurgo de Garanhuns.
 
Interrogando Walter Delgatti — responsável pela invasão dos celulares dos procuradores de Curitiba —, Moro foi chamado de “criminoso contumaz", e respondeu que o picareta araraquarense era tão inocente quanto Lula, o maior beneficiário do desmonte da Lava-Jato. Em outra cena digna de um roteirista com imaginação fértil, o crápula caipira 
 que salvou a pele de Lula  ora coloca Bolsonaro na rota da prisão, ao revelar detalhes sobre um plano para desmoralizar nosso sistema eleitoral. 

Em 2018, Bolsonaro prometeu pegar em lanças na defesa da Lava-Jato e, para mostrar que falava a sério, convidou Moro para ocupar o cargo de "superministro" da Justiça. Em 2022, passou a campanha à reeleição chamando Lula de "descondenado" (como toda razão, diga-se) e, ironia das ironias, teve Moro como cabo eleitoral e assessor. 
Mais adiante, agradeceu a Delgatti por "salvar a democracia" ao municiar a Vaza-Jato com mensagens roubadas e jamais periciadas. O hacker de festim, por sua vez, passou de herói da esquerda a conselheiro da extrema-direita, chegando mesmo a ser enviado ao Ministério da Defesa para assessorar uma comissão formada supostamente para ajudar o TSE a garantir a integridade das urnas, mas que na verdade tinha o objetivo de desmoralizá-las.

A pandemia pesou (e muito) na derrota eleitoral do capitão-cloroquina e em sua desgraça pós-eleitoral. É extraordinário o rastro de inquéritos e processos que o despresidente deixou na esteira de sua saída — desvio de documentos secretos, joias, tentativa de fraudar eleições, hackers, misoginia, falsos atestados de vacina e por aí afora. Mesmo tendo contribuído para o alto índice de mortes, Bolsonaro foi destruído pelo vírus, e a falsificação de atestados levou seu ajudante de desordens à prisão. 


Observação: O roubo das joias sauditas só foi possível graças à cumplicidade fardada e paisana. Incontornável a constatação de que o golpismo e a corrupção viraram um rabo escondido com o elefante de fora. Contra esse pano de fundo radioativo, a PF deixou de tratar o capetão como ex-presidente. Diante de tantas evidências do envolvimento de Cidinho no escândalo das joias, sua confissão serve apenas para amenizar a situação do pai, Cidão. 


Dado o risco de o "mito" deixar o Brasil — como fez no final de seu mandato e ficou três meses homiziado na cueca do Pateta , parlamentares pediram a apreensão de seu passaporte, mas a PF e o STF preferem esperar pela desmontagem do departamento de blindagem estruturado na antiprocuradoria de Aras (a ideia é indiciar o ex-mandatário a tempo de o novo PGR redigir uma denúncia antes do Natal, que Alexandre de Moraes poderá levar a plenário no primeiro semestre do ano que vem).


Bolsonaro desgovernou o país movido por forças inconscientes e antagônicas. Sua retórica patriótica e limpinha revelou-se golpista e corrupta. Blindado, o incomível convenceu-se de que a invulnerabilidade o faria eterno no Planalto, e deixou um rastro pegajoso que conduz a PF na sua excursão pelos porões do descalabro. Derrotado nas urnas, o chefe do clã das rachadinhas alimentou a fantasia de que continuaria desfilando pela conjuntura como um invulnerável engolidor de espadas, e que as ações no TSE dariam em nada (mas deram em inelegibilidade). Imaginava que militares não virariam delatores, mas faltou combinar com seu ex-ajudante de ordens. Sustentava não ter nada a ver com o 8 de janeiro, mas seu encontro com Delgatti colocou o golpismo na copa do Alvorada. 


As revelações dos últimos dias potencializaram o cenário que transforma por simbiose a deterioração criminal de Bolsonaro na desmoralização das Forças Armadas. Numa conversa com Lula no escurinho do Alvorada, os comandantes sustentaram que convém aguardar a decisão do STF para evitar uma "caça às bruxas". A protelação ofende porque o repúdio da corporação à delinquência independe do Judiciário. 


Observação: Com a complacência do alto-comando, Bolsonaro politizou os quartéis. Para desbolsonarizar suas atividades, os fardados terão que reagir no tempo da política — no Brasil, a Justiça tarda e nem sempre chega. Em comunicado endereçado ao público interno, o comandante do Exército anotou que a soldadesca "deve pautar suas ações pela legalidade e legitimidade". No mesmo texto, a pretexto de "fortalecer as ações voltadas para o bem-estar da família militar", disse ter acionado o Estado Maior para articular medidas "visando à recomposição salarial dos militares". A impressão é de que as FFAA utilizam a brasa do bolsonarista para assar uma pizza integralmente feita de omissão e privilégios.

 
Se Deltan Dallagnol fizesse um power point sobre as investigações atuais como fez com as de Lula há exatos 8 anos, todas as setas apontariam para Bolsonaro. Como em 2016, tudo está sendo confirmado e checado. Em 2016, Lula era a figura central do petrolão; hoje, o capetão é o centro de um fieira interminável de escândalos. 
 
A prisão dos comandantes da PMDF mostra claramente que havia militares atuando em prol do golpe. Em algum momento — que já está tardando —, as FFAA precisam repudiar oficialmente os atos golpistas de 8 de Janeiro. Ficar em silêncio enquanto o país inteiro acompanha uma crise em que militares estão mergulhados até os beiços em ações antidemocráticas não é suficiente. À mulher de César não basta ser honesta; tem de parecer honesta.

Com Merval Pereira e Josias de Souza