quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A QUADRILHA DAS ÁRVORES


As árvores cometeram vários crimes em São Paulo. O crime de simplesmente existir poderia ser considerado simples contravenção se elas não tivessem se multiplicado e deixado 4 milhões de domicílios sem energia elétrica em 27 municípios do Estado de São Paulo — para a maioria deles, o acinte durou mais de 70 horas. O governador Tarcísio de Freitas foi ao ponto: o grande vilão desse episódio foi a questão arbóreaMas a vilania não ficou restrita às árvores. O presidente da Enel identificou um segundo culpado: "Não é para nos desculparmos, não. O vento foi absurdo!

Em conluio com a ventania, as árvores foram mais longe em sua vocação criminosa: converteram-se em vítimas. Num claro desafio à ordem e abandonando qualquer tipo de escrúpulo, tombaram sobre a fiação elétrica. Tarcísio acusou: "Foi questão da quantidade de árvores que, por falta de manejo adequado, acabaram caindo sobre a rede." Para que não restasse dúvida, Nicola quantificou as árvores que desafiaram as autoridades, caindo por entre os postes: "De 1.400 [que caíram na cidade], umas mil [feneceram sobre os fios]. Mobilizamos todas as equipes. Ficamos no centro de controle para estabilizar o atendimento. Trabalhamos noite adentro." 
 
Organizando-se, as árvores pisotearam uma velha tradição das autoridades brasileiras: o deixa-pra-lá. No Brasil, nenhum problema é tão grande que não caiba no dia seguinte. Mas a vileza arbórea forçou as autoridades a fazerem alguma coisa. Nem que fosse uma cara de nojo. O velho deixapralaísmo nacional perdeu o nexo. 
Ciente de que a melhor maneira de fugir do instinto criminoso das árvores seria enterrar os fios, o prefeito Ricardo Nunes saiu-se com uma solução emergencial. No terceiro dia de breu, ele disse que cogitava a criação de uma taxa para financiar o enterramento da fiação elétrica. Houve grande estrépito.
 
As árvores não falam. Já o homem possui o dom da palavra. De um prefeito paulistano não se exige que fale a língua de Dante, de Goethe ou de Shakespeare, mas que fale com clareza a língua Camões. Desnorteado pela conspiração das árvores com os ventos, o alcaide descobriu da pior maneira que na administração pública, como na vida, a fronteira entre o improviso e a imprudência é muito tênue. 

Menos de 24 horas depois de jogar a contribuição no ventilador, Nunes declarou que não haveria hipótese de impor semelhante suplício aos paulistanos, que sua ideia seria estimular os moradores da capital a se cotizarem voluntariamente para enterrar os fios por conta própria, e que, se os moradores de uma determinada rua ou região da cidade se animassem a colocar a mão no bolso, a prefeitura participaria da vaquinha.
 
A poda das árvores é uma responsabilidade do município financiada pelo contribuinte. Em 2023, a capital paulista reservou R$ 328 milhões para a manutenção de áreas verdes e vegetação na cidade — mais do que os R$ 289 milhões gastos no ano passado. Quando os galhos roçam a fiação, a concessionária de energia também pode realizar a poda. O preço já está embutido na conta. 

O diabo é que as árvores fizeram uma opção criminosa pela existência exorbitante, forçando Nicola Cotugno — o doutor que comanda a Enel — a realizar exibições públicas de malabarismo verbal: "A [rede elétrica] de São Paulo é 98% aérea. No deserto, esse tipo de rede é segura, mas onde há árvores, com muita chuva e vento, ela fica exposta a danos."
 
Na opinião do luminar (sem trocadilho), a vaquinha para enterrar os fios não pode ser municipal, mas nacional: "Já há discussões sobre possíveis ações, entre elas, enterrar a rede. Mas isso demanda coordenação, investimentos e tempo. A rede de São Paulo tem mais de 40 mil quilômetros. Inúmeras vezes se falou em enterrar os fios, mas não se chega a consenso de quanto vai custar nem de quem vai pagar. Por isso tem que ser um projeto de país, com custos compartilhados." 
 
O governador cuidou de amenizar a inépcia coletiva. Disse que as prefeituras arrostam dificuldades para fazer o manuseio dos galhos. Que há inadequação de árvore por porte, de acordo com a via e localização das redes. Vítima da mesma dificuldade do prefeito de lidar com o português, enfiou na prosa uma expressão da língua inglesa: "É uma questão que a gente vai estruturar. Vamos pegar o benchmark [referência] de outros Estados que aprovaram legislações, como o Paraná, que ajudam o prefeito nesse manejo." A solução, segundo ele, seria o envio à Alesp de um projeto de lei para disciplinar o corte das árvores.
 
O serviço de energia elétrica é uma concessão da União. Em 1996, criou-se a Aneel — uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia — que deveria fiscalizar os contratos de concessão, cobrando eficiência dos prestadores privados do serviço. Levada ao balcão, politizou-se. Sob Bolsonaro, foi terceirizada ao Centrão. Em São Paulo, delegou a fiscalização à Arsesp, sua congênere estadual. 

No Brasil, como se sabe, a iniciativa privada e o Estado consideram-se isentos de falhas. Governadores e prefeitos são infalíveis. Agências reguladoras, federais ou estaduais, exibem competência inexcedível. O único crime cometido por empresas como a Enel é o excesso de eficiência. 

Observação: Cotugno produziu um tipo sui generis de autoanálise, uma autocrítica a favor: "Não teve negligência nossa. Não é para nos desculparmos, não. Foi algo excepcional. Quando chega um furacão no Texas, o problema não é a empresa elétrica, é o furacão. Aqui, estamos acostumados com eventos menores. Mas, se olharmos de uma forma racional e não emocional, a gente está fazendo um trabalho incrível por um fenômeno pelo qual não tivemos controle."
 
Resta investigar o conluio que uniu as árvores e o vento na sabotagem aos consumidores de energia do maior e mais próspero estado da federação. Se a investigação for levada às últimas consequências, decerto serão identificados outros cúmplices invisíveis — os cupins e fungos, por exemplo.
 
A julgar pelo excesso de eficácia da concessionária privada e pelas inexcedíveis boas intenções das autoridades, não há mais dúvidas: que desligou São Paulo da tomada foi um apagão fitossanitário decorrente da formação de uma quadrilha arbóreo-climática. Polícia nas árvores.
 
Com Josias de Souza