O topo da montanha de mais de 15 mil cadáveres, erguida em 40 dias de guerra, é o melhor posto de observação do acordo firmado entre Israel e o Hamas. Os terroristas libertam 50 mulheres e crianças israelenses e recebem em troca 150 mulheres e adolescentes palestinos encarcerados quando Israel cultivava a ilusão de que dispunha de um escudo de ferro intransponível.
Após o escambo de três por um, feito durante um cessar-fogo de exíguos quatro dias, restaurar-se-á a incivilidade. Depois de reduzir o norte da Faixa Gaza a escombros e não conseguir arrancar o Hamas pela raiz, Netanyahu avançará rumo ao sul, para onde mandou os civis correrem.
A pilha de 1.200 cadáveres chacinados pelo Hamas e os 14 mil abatidos pelas forças israelenses escalará o céu antes que o primeiro-ministro admita um novo acordo para trocar mais palestinos presos por reféns que os terroristas mantêm em seus túneis. Ao final do conflito, não fará diferença para os mortos, os órfãos e os despossuídos saber se a destruição insana se deu em nome do extermínio do Estado de Israel, da bandeira do Hamas ou da relutância em aceitar a formação de um Estado palestino.
Num cenário assim, os acordos também servem para escancarar o drama de uma guerra sem vencedor.
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O Brasil nunca teve um presidente digno de elogios, mas alguns ficaram abaixo da crítica. Jânio Quadros, cuja renúncia pavimentou o caminho para o golpe de 64 e a ditadura, e Fernando Collor, o caçador de marajás de fancaria, são bons exemplos.
Em 2002, a vitória de Lula me surpreendeu. Oito anos depois, a eleição de Dilma me pareceu um pesadelo do qual o país despertaria 2014, mas só terminou en 2016, com o impeachment da gerentona de araque.
Depois de 13 anos ouvindo garranchos verbais de um semianalfabeto e frases desconexas de uma destrambelhada, voltamos a ter no Planalto alguém capaz de juntar sujeito e predicado numa frase (e até usar mesóclises). Seria impossível resolver todos os problemas da noite para o dia, mas Michel Temer conseguiu reduzir a inflação, baixar a Selic e aprovar a PEC do Teto dos Gastos e a Reforma Trabalhista.
Como não há mal que sempre dure nem bem que nunca termine, a realidade não demorou a se impor: o ministério de notáveis prometido pelo vampiro do Jaburu se revelou uma notável agremiação de corruptos, que foram caindo como pedras de dominó — o
primeiro defenestrado foi Romero Jucá, que pediu o boné depois que veio a público
uma gravação em que ele defendia um pacto para “estancar a sangria” (referindo-se à Lava-Jato).
O ministro da Transparência caiu semanas depois — ele foi gravado orientando Renan Calheiros sore como se comportar em relação à PGR. Junho levou ministro do Turismo, agosto varreu o advogado geral da União (que bateu boca com o todo-poderoso Geddel Vieira Lima, em cujo apartamento a PF encontrou R$ 51 milhões em caixas de papelão), e por aí seguiu a procissão.
Temer queria entrar para a história como "o cara que recolocou o Brasil nos eixos", mas conseguiu se tornar o primeiro presidente denunciado por crime comum no exercício do cargo. Por mal de nossos pecados, um coro de 251 marafonas da Câmara recrutadas pelo puxa-saco mor, Carlos Marun, entoou o cântico fúnebre enquanto a segunda denúncia da PGR contra o presidente era sepultada.
A honestidade e a lisura no trato da coisa pública são virtudes esperadas de chefes de governo, ministros, parlamentares e políticos em geral, mas há muito que fizeram as malas e partiram do Brasil. Para onde? Ninguém sabe. Ninguém viu. Graças ao compadrio entre políticos corruptos e a alta cúpula do Judiciário, uma dúzia de denúncias em desfavor do senador Renan Calheiros dormitam nos escaninhos do STF.
Devido à péssima gestão de Bolsonaro, togas companheiras descondenaram e reabilitaram politicamente o ex-presidiário mais famoso do Brasil, e 60 milhões de jegues munidos de título eleitoral reconduziram-no ao Planalto, como se não houvesse outra opção senão mais quatro anos sob o alfange do verdugo do Planalto. Mas 580 dias de férias compulsórias na PF de Curitiba não fizeram o Pai dos Pobres e Mãe dos Ricos deixar de ser quem sempre foi — segundo Ricardo Kertzman, um vigarista que enganava as viúvas pensionistas no sindicato, os empresários na FIESP e os trabalhadores grevistas.
O termo vigarista vem de vigário, que o Pai dos Burros define como "padre que substitui o prelado de uma paróquia" e "aquele que trapaceia outrem; velhaco, golpista". O bardo lusitano Fernando Pessoa relatou em 1926, numa crônica batizada de "O Sol", que um proprietário rural chamado Manuel Peres Vigário comprou gado com notas falsas de 100 mil réis, e o episódio ficou conhecido como "os contos de réis do Manuel Vigário" — e, mais adiante, como
conto do Vigário.
Outra explicação reza que, em meio à disputa das paróquias ouro-pretanas de Pilar e da Conceição por uma imagem de Nossa Senhora, um dos vigários sugeriu amarrar a santa a um burro e soltá-lo entre as duas igrejas. Assim foi feito, e a paróquia de Pilar ficou a imagem — até que se descobriu que o dono do burro era o próprio vigário.
A Justiça Eleitoral exige que candidatos a cargos executivos registrem seus planos de governo, e o Código Eleitoral tipifica algumas condutas, mas o estelionato eleitoral não se enquadra em nenhuma delas. Assim, no país onde sobram leis e falta vergonha na cara, prometer em campanha o que não se pretende ou não se pode cumprir não é crime.
Triste Brasil