segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

LUZ SOBRE AS TREVAS

 

Há 35 anos, quando o Congresso Constituinte converteu o Ministério Público numa entidade independente, estabeleceu-se que o Procurador-Geral da República, responsável pela zeladoria dos interesses da sociedade, seria escolhido de forma republicanamente impessoal. 

Indicado e reconduzido ao cargo por Bolsonaro, o antiprocurador Augusto Aras deixou o comando da PGR no final de setembro (e já foi tarde). Na abertura do ano do Judiciário de 2023, sua excelência fez uma tríplice (e patética) declaração de amor no plenário reconstruído do STF: "Democracia, eu te amo, eu te amo, eu te amo"; no discurso de despedida, com uma cara-de-pau de deixar o capetão roxo de inveja, afirmou que as críticas à sua gestão são "falsas narrativas".  

O livro que Aras distribuiu aos amigos vale como um dossiê das culpas. Numa obra que fala sobre a maneira como sua gestão "salvou vidas" durante a pandemia, fica difícil eleger o trecho mais mentiroso. Mas o pior não é o pesadelo, e sim a dificuldade que o Brasil tem de acordar dele. 

Em quatro anos, Aras desceu ao verbete da enciclopédia como o pior procurador-geral da República de todos os tempos. A pretexto de "despolitizar" o MPF, bolsonarizou a chefia do órgão. Visando ao desmonte da Lava-Jato, criou o lavajatismo com sinal trocado, que não denuncia ninguém acima de um certo nível de poder e renda. Para "descriminalizar a política", condescendeu com políticos criminosos. Remunerado pelo contribuinte para defender os interesses da sociedade, optou por defender os interesses de Bolsonaro. Simulando rigor com "averiguações preliminares", arquivou mais de 70 acusações, fechou os olhos para a política de estado letal na pandemia e enterrou os indiciamentos da CPI da Covid. Para abrilhantar ainda mais esse currículo luzidio, associou-se por omissão ao projeto golpista que passou pelo 7 de Setembro e desaguou no 8 de janeiro. 
 
A reboque do insulto de Aras à inteligência alheia, Dias Toffoli — que ganhou a suprema toga de Lula pelos bons serviços prestados ao PT, a despeito de ter bombado em dois concursos para Juiz de Direito — teceu rasgados elogios à atuação do desprocurador, afirmando inclusive que ele defendeu o país de uma ruptura democrática. Abandonado pelo senso do ridículo, o ministro declarou ainda que o homenageado "não usou o cargo como um alpinismo para outros interesses". Pausa para as gargalhadas.
 
Observação: Sob Bolsonaro, dê olho na suprema toga, Aras caprichou no puxa-saquismo; sob Lula, edulcorado pela perspectiva de um terceiro mandato, escalou o antilavajatismo, publicou posts em que se distanciava de Bolsonaro (amealhando inacreditáveis apoios no petismo) e encampou o discurso de que sua gestão foi diligente na fiscalização de atos administrativos e gastos públicos destinados ao combate à Covid. Mas Lula preferiu buscar uma "reencarnação de Aras" no corpo de outro antiprocurador.
 
"Faço essas referências porque são coisas que serão contadas mais à frente da história, que poucas pessoas sabem" disse Toffoli, deixando muita gente sem entender. Mas Rodrigo Rangel lançou luz sobre as trevas. Segundo ele, Aras se gabava de ter feito movimentos discretos, antes do 8 de janeiro, para conter arroubos antidemocráticos no entorno mais próximo do ex-presidente e nos quartéis. Ufanava-se de não ter feito qualquer gesto que pudesse ser interpretado como apoio às maquinações golpistas de aliados próximos do gabinete presidencial. Jactava-se de ter acionado 
contatos, em diversas regiões do país, para deixar claro que o MPF não toleraria ataques às instituições e à democracia, e fez com que o recado chegasse aos quartéis, inclusive os das polícias militares, onde havia também grande concentração de bolsonaristas dispostos a participar de aventuras golpistas.
 
Ainda no cargo, Aras compartilhou essa história várias vezes com pessoas próximas. Algumas delas disseram que foi exatamente a isso que Toffoli se referiu em sua louvação. Na versão que me parece mais realista, o ex-procurador, que ainda 
acalentava a esperança de ser mantido por Lula na PGR, entoou essa cantilena para tentar se descolar minimamente do rótulo de bolsonarista. 

E deu no que deu.