Durante a batida na sala reservada a Bolsonaro na sede do PL, a PF encontrou uma minuta de discurso contendo o anúncio de um decreto de estado de sítio e instituição de uma GLO. A peça deu a seu suposto dono uma aparência de Napoleão suicida, que oferece aos investigadores as pistas que levarão a seu Waterloo criminal. Embora faça pose de vítima de perseguição, Bolsonaro se tornou um imperador autossuficiente: ele mesmo conspira, ele mesmo documenta a trama, ele mesmo produz o rastro que leva os investigadores às provas. E ao se meter no hospício do golpismo, virou um duque de Wellington de si mesmo. Alexandre de Moraes e a PF apenas surfam na onda de evidências que invade o inquérito.
O partido que tem o ex-presidente como presidente de honra atravessa sua maior crise desde o mensalão. De olho na prefeitura de Sampa, Bolsonaro indicou o coronel aposentado e ex-comandante da Rota Ricardo de Mello Araújo para vice na chapa de Ricardo Nunes, que é candidato à reeleição. O negociador da operação foi o próprio Valdemar Costa Neto, que foi preso na operação Tempus Veritatis, mas acabou solto 3 dias depois. A grande dúvida é se Bolsonaro demonstrará seu hipotético talento de cabo eleitoral de luxo antes das eleições de outubro ou depois de ir para a cadeia.
Observação: Mesmo em liberdade provisória, o dono do PL continua preso ao próprio destino. Complicações mais severas estão a caminho, e ele não está livre de uma condenação que lhe renda mais algum tempo na cadeia. Seu partido tem hoje a maior caixa registradora da campanha, mas o plano de eleger o maior número de prefeitos e vereadores foi ameaçado por sua ação golpista, que colocou seu partido a serviço da intentona bolsonarista.
Em sua coluna no UOL, Wálter Maierovitch anotou que críticos de arte consideram o mosaico intitulado "O Cortejo de Teodora" um dos mais belos do mundo. Em outro tipo de mosaico — não artístico, mas criminal —, a PF exibiu Bolsonaro preparando o golpe contra o Estado Democrático de Direito. Nessa obra, em vez da esposa de Justiniano — imperador responsável pela elaboração das regras mantenedoras do estado de direito —, vê-se o ex-presidente como um caricato Justiniano às avessas.
O mosaico criminal montado pelos agentes federais revela toda uma trajetória golpista, e o instituto da delação premiada — tão criticado por muitos criminalista — como ferramenta fundamental em elucidações que envolvem poderosos. Bolsonaro já sabe que será denunciado pela PGR, que a denúncia será aceita pelo STF e que eventuais contorcionismos jurídicos exibidos em plenário pelos ministros Nunes Marques e André Mendonça podem não ser suficientes para evitar a aplicação do princípio "in dubio pro societate".
Escândalos costumam brotar de acontecimentos que provocam espanto, ferindo a rotina como uma lâmina afiada. Nada foi mais assombroso, na reunião de 5 de julho de 2022, do que a normalidade que revestiu o debate sobre o golpe. Na conversa, Bolsonaro expôs ao ministério sua estratégia para subverter o resultado das urnas, e o absurdo foi recebido pelo primeiro escalão do governo com uma doce, persuasiva, admirável naturalidade.
Estava sobre a mesa o golpe, e nenhum dos presentes esboçou surpresa. Se o encontro ministerial fosse um banquete e Bolsonaro servisse um rato ensopado, nenhum dos ministros faria a concessão de um ponto de exclamação. O cardápio é golpe? Pois que seja antes da abertura das urnas, sugeriu o general Augusto Heleno. Ninguém se opôs. O alvo é o TSE? Pois convém intensificar a movimentação das Forças Armadas da "linha de contato" para o início da "operação" de contestação às urnas, sugeriu o general Paulo Sérgio. Nenhuma contestação. O objetivo é deter Lula? Pois "a gente precisa atuar agora", insuflou Anderson Torres, "porque todos vamos se foder (sic)". Nem sinal de objeção. Há o risco de repetir 64? "É muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o país, para que aconteça antes, do que assumir um risco muito maior da conturbação no 'the day after', deu de ombros o general Mário Fernandes. De novo, não se ouviu uma reles contradita. "O TCU já soltou o relatório dizendo que as urnas são seguras", avisou Wagner Rosário, levantando a bola para Bolsonaro cortar a cabeça de Bruno Dantas, autor do documento: "Olhem pra minha cara, por favor. Todo mundo olhou pra minha cara? Acho que não tem bobo aqui."
No limite, o ambiente capturado pelo vídeo do Planalto evoca uma expressão cunhada pela filósofa alemã Hannah Arendet, que, ao analisar a história do criminoso nazista Adolf Eichmann, enxergou no comportamento do personagem traços de uma "banalidade do mal". Assim como os auxiliares do capitão, Eichmann era tido como bom funcionário, um exemplar cumpridor de ordens. Durante o seu julgamento em Jerusalém, ele contou que, quando os chefes da SS foram convocados para planejar a execução dos judeus, foram servidos aperitivos e um almoço. Nas palavras do servidor de mostruário do regime nazista, foi "uma pequena e íntima reunião social". Nada mais normal.
O pedaço do encontro do Planalto captado pela filmagem durou uma hora e 33 minutos. Paulo Guedes entrou mudo e saiu calado. Se um assessor lhe perguntasse: "Como foi a reunião?", ele talvez respondesse: "Nada de novo". Não seria despropositado supor que Marcelo Queiroga, então ministro da Saúde, tenha engolido uma dose cavalar de antiácido para evitar os efeitos gástricos dos cafezinhos que sorveu enquanto silenciou para o absurdo. Ou que Joaquim Álvaro Pereira Leite tenha retornado impassível ao ministério do Meio Ambiente após testemunhar as tramoias palacianas para subverter o ambiente inteiro. Ou que José Carlos Oliveira, então ministro do Trabalho, tenha parado numa padaria para comprar pão e leite antes de se entregar ao repouso doméstico.
Nenhum espelho reflete melhor a imagem de um homem do que suas palavras. Durante a reunião ministerial do golpe, houve dois momentos em que os oradores pressentiram que não conspiravam apenas contra a democracia, mas contra a própria autoimagem. O general Paulo Sérgio, titular da Defesa, disse a alturas tantas considerar conveniente que "os comentários fiquem entre a gente". Rosário, chefe da Controladoria, teve a ilusão de que poderia fugir ao controle social impunemente: "A reunião está sendo gravada?", indagou. Braga Netto acenou negativamente com o dedo, e Bolsonaro assegurou que mandara gravar apenas sua exposição inicial. Graças a uma cilada do destino, o delator Mauro Cid guardou no seu computador a íntegra das imagens. Capturada pela PF, a peça foi jogada no ventilador por Alexandre de Moraes.
Presenteado com a possibilidade de comprovar a normalidade que permeou o ocaso de Bolsonaro, o Brasil é levado a concluir que algo de muito anormal precisa ocorrer para restabelecer a sanidade nacional. A imposição de um lote de sentenças criminais que interrompam o ciclo de impunidade do capetão e seus cúmplices já seria um bom começo.
No total, 16 militares caíram no alçapão da Hora da Verdade. A número sobe para 17 quando se inclui o delator Mauro Cid, já encalacrado. Seis tiveram de ser afastados porque estavam na ativa. Dos que tiveram a prisão decretada, dois foram presos imediatamente. Faltava recolher o coronel Romão Corrêa Netto, cuja prisão retardatária causou ainda mais constrangimento ao Exército. Primeiro, porque ele precisou ser repatriado dos Estados Unidos depois que PF bateu à porta dos enrolados; segundo, porque continuava matriculado no Colégio Interamericano de Defesa 14 meses depois da chegada de Lula, cuja posse o braço golpista do bolsonarismo tentou impedir.
O alto comando do Exército alega que desconhecia os meandros da investigação, mas a oxidação produzida por Bolsonaro na imagem das Forças Armadas é o preço acrescido de juros e multa cobrado dos fardados, que não pagaram em dia suas parcelas de respeito à Constituição. Ao retardar a limpeza dos seus quadros, as FFAA assumem as prestações mais pesadas do crediário da desmoralização.
Ao culpar o general Heleno pela iniciativa de infiltrar espiões da Abin durante a campanha eleitoral, Bolsonaro joga o velho amigo numa frigideira criminal. Ele demora a notar, mas foi justamente sua mania de se esquivar de responsabilidades que produziu a delação de Mauro Cid. O ex-ajudante de ordens viu como ele carbonizou, em 2021, o general Fernando Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, e três comandantes militares, e assistiu à fritura de Gustavo Bebianno e do general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Quando os escândalos das joias sauditas e da fraude dos cartões de vacinação explodiram, o tenente-coronel percebeu que as manifestações do chefe, não raro desconexas e contraditórias, caíam sempre no seu colo. Já bem passado, farejou o cheiro de queimado; ao sentir o hálito da PF em sua nuca, abriu o bico. E deu no que está dando.
Heleno chefiava o GSI e tinha a Abin sob o seu guarda-chuva, mas a mobilização de um aparato clandestino para espionar campanhas durante a Presidência de Bolsonaro era areia demais para seu caminhão. A lealdade subserviente o impediu de acordar uma delação premiada, mas outros encrencados podem enxergar na sua combustão um estímulo para seguir as pegadas de Cid.
A conferir.
No limite, o ambiente capturado pelo vídeo do Planalto evoca uma expressão cunhada pela filósofa alemã Hannah Arendet, que, ao analisar a história do criminoso nazista Adolf Eichmann, enxergou no comportamento do personagem traços de uma "banalidade do mal". Assim como os auxiliares do capitão, Eichmann era tido como bom funcionário, um exemplar cumpridor de ordens. Durante o seu julgamento em Jerusalém, ele contou que, quando os chefes da SS foram convocados para planejar a execução dos judeus, foram servidos aperitivos e um almoço. Nas palavras do servidor de mostruário do regime nazista, foi "uma pequena e íntima reunião social". Nada mais normal.
O pedaço do encontro do Planalto captado pela filmagem durou uma hora e 33 minutos. Paulo Guedes entrou mudo e saiu calado. Se um assessor lhe perguntasse: "Como foi a reunião?", ele talvez respondesse: "Nada de novo". Não seria despropositado supor que Marcelo Queiroga, então ministro da Saúde, tenha engolido uma dose cavalar de antiácido para evitar os efeitos gástricos dos cafezinhos que sorveu enquanto silenciou para o absurdo. Ou que Joaquim Álvaro Pereira Leite tenha retornado impassível ao ministério do Meio Ambiente após testemunhar as tramoias palacianas para subverter o ambiente inteiro. Ou que José Carlos Oliveira, então ministro do Trabalho, tenha parado numa padaria para comprar pão e leite antes de se entregar ao repouso doméstico.
Nenhum espelho reflete melhor a imagem de um homem do que suas palavras. Durante a reunião ministerial do golpe, houve dois momentos em que os oradores pressentiram que não conspiravam apenas contra a democracia, mas contra a própria autoimagem. O general Paulo Sérgio, titular da Defesa, disse a alturas tantas considerar conveniente que "os comentários fiquem entre a gente". Rosário, chefe da Controladoria, teve a ilusão de que poderia fugir ao controle social impunemente: "A reunião está sendo gravada?", indagou. Braga Netto acenou negativamente com o dedo, e Bolsonaro assegurou que mandara gravar apenas sua exposição inicial. Graças a uma cilada do destino, o delator Mauro Cid guardou no seu computador a íntegra das imagens. Capturada pela PF, a peça foi jogada no ventilador por Alexandre de Moraes.
Presenteado com a possibilidade de comprovar a normalidade que permeou o ocaso de Bolsonaro, o Brasil é levado a concluir que algo de muito anormal precisa ocorrer para restabelecer a sanidade nacional. A imposição de um lote de sentenças criminais que interrompam o ciclo de impunidade do capetão e seus cúmplices já seria um bom começo.
No total, 16 militares caíram no alçapão da Hora da Verdade. A número sobe para 17 quando se inclui o delator Mauro Cid, já encalacrado. Seis tiveram de ser afastados porque estavam na ativa. Dos que tiveram a prisão decretada, dois foram presos imediatamente. Faltava recolher o coronel Romão Corrêa Netto, cuja prisão retardatária causou ainda mais constrangimento ao Exército. Primeiro, porque ele precisou ser repatriado dos Estados Unidos depois que PF bateu à porta dos enrolados; segundo, porque continuava matriculado no Colégio Interamericano de Defesa 14 meses depois da chegada de Lula, cuja posse o braço golpista do bolsonarismo tentou impedir.
O alto comando do Exército alega que desconhecia os meandros da investigação, mas a oxidação produzida por Bolsonaro na imagem das Forças Armadas é o preço acrescido de juros e multa cobrado dos fardados, que não pagaram em dia suas parcelas de respeito à Constituição. Ao retardar a limpeza dos seus quadros, as FFAA assumem as prestações mais pesadas do crediário da desmoralização.
Ao culpar o general Heleno pela iniciativa de infiltrar espiões da Abin durante a campanha eleitoral, Bolsonaro joga o velho amigo numa frigideira criminal. Ele demora a notar, mas foi justamente sua mania de se esquivar de responsabilidades que produziu a delação de Mauro Cid. O ex-ajudante de ordens viu como ele carbonizou, em 2021, o general Fernando Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, e três comandantes militares, e assistiu à fritura de Gustavo Bebianno e do general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Quando os escândalos das joias sauditas e da fraude dos cartões de vacinação explodiram, o tenente-coronel percebeu que as manifestações do chefe, não raro desconexas e contraditórias, caíam sempre no seu colo. Já bem passado, farejou o cheiro de queimado; ao sentir o hálito da PF em sua nuca, abriu o bico. E deu no que está dando.
Heleno chefiava o GSI e tinha a Abin sob o seu guarda-chuva, mas a mobilização de um aparato clandestino para espionar campanhas durante a Presidência de Bolsonaro era areia demais para seu caminhão. A lealdade subserviente o impediu de acordar uma delação premiada, mas outros encrencados podem enxergar na sua combustão um estímulo para seguir as pegadas de Cid.
A conferir.