terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

SOBRE A MANIFESTAÇÃO DO ÚLTIMO DOMINGO


Se ainda restavam dúvidas de que a extrema-direita é uma espécie de gênio do mal que não volta mais para a garrafa, elas foram dissipadas no último domingo por um número extraordinário de rato dançando ao som da flauta do "golpista de Hamelin" ao longo de 7 quadras da mais paulista das avenidas. Como o dono do circo franqueou o ingresso, as estimativas de público variam de algumas dezenas de milhares a quase um milhão

Mestre de cerimônia da função, o mesmo Bolsonaro que comparou sua vitória em 2018 a uma "cagada do bem" e exortou seus paus-mandatos a "virar a mesa" acedeu ao picadeiro, digo, subiu no carro de som e discursou num timbre de ex-BolsonaroEmbriagado de si mesmo, o orador disse que é preciso "passar uma borracha" no passado e anistiar os "pobres coitados" condenados pelo 8 de janeiro. 

O chamamento à mobilização por anistia aos selvagens (e por extensão ao próprio ex-presidente, que, assim, se inclui na roda dos defensores da ruptura) não tem a menor chance de prosperar: ainda que tivesse apoia da sociedade, não passaria pelo Congresso; se passasse, morreria no STF.

Observação: Convém lembrar que o alimento do bolsonarismo raiz é a agressividade. A exacerbação de ânimos é o seu motor, que perde tração quando chamado à moderação — que precisará ser duradoura se o capitão da tropa não quiser se complicar ainda mais e afugentar políticos que só subiram no trio elétrico porque a promessa era de fogo baixo.
 
A lengalenga do devoto da cloroquina (tome um Plasil e clique aqui para ver o vídeo) não só explicitou sua intenção de salvar a própria pele como deu a impressão de que ele se vê numa posição parecida com a de Lula em 2017, quando o STF avalizou sua prisão e o TSE o declarou inelegível. Isso sem mencionar que o apego oportunista à serenidade evidencia (não que pairassem dúvidas) a má intenção do ex-mandatário quando, confirmada sua derrota nas urnas, encastelou-se no Alvorada e, 40 dias depois, picou a mula para os EUA, onde aguardou, homiziado na cueca do Pateta, o desenrolar dos acontecimentos urdidos aqui por seus comparsas de conspirata golpista. 

Quem sabe ouvir nas entrelinhas percebeu que o sonho de Bolsonaro é evitar que seus piores pesadelos se tornem realidade  ou por outra, sonhar o mesmo sonho que o Lula realizou ao saltar do degredo judicial para um novo mandato no Planalto. A alturas tantas, o discursante como que calçou os sapatos do petista: "Não podemos pensar em ganhar as eleições afastando os opositores do cenário político." A lamúria contém um quê de ridículo, já que o lamuriento foi o grande beneficiário da exclusão do adversário das urnas em 2018. 

Coube a Tarcísio de Freitas reforçar a analogia afirmando que seu padrinho político "já não é apenas uma pessoa, tornou-se a personificação do movimento que lotou a Paulista", e que representa "todos aqueles que descobriram que vale a pena brigar pela família, pela pátria, pela liberdade." Lula soou parecido horas antes de se entregar à PF, em 2018. Ao discursar para a militância, declarou: "Eu não sou um ser humano, sou uma ideia" — uma "ideia" que passou 580 dias na cadeia, mas que a Vaza-Jato livrou das sentenças e que os quatro anos ruinosos de Bolsonaro ajudaram a compor o "arco democrático" que lhe deu o terceiro mandato. 

A diferença é que o pesadelo do ex-presidente golpista é 100% construído no STF, e que lhe falta um hacker para invadir as comunicações do ministro Alexandre de Moraes e quatro anos de uma gestão tão ruinosa quanto a sua (pior seria impossível). Mas o mais provável é que ele seja acordado desse sonho pela voz de prisão de um agente da PF.

Discursando em defesa de Bibo Pai, Bobi Filho perorou que "o inquérito conduzido por 'Xandão' é um grande teatro". Vale lembrar que foi sob a presidência de Moraes que o TSE condenou o filho do pai (não uma, mas duas vezes) a oito anos de inelegibilidade. Se for condenado pelos crimes de tentativa de golpe de Estado, abolição do Estado democrático de Direito e associação criminosa, Bolsonaro terá de se candidatar para um cargo no inferno (como ele completa 69 anos daqui a menos de um mês e pode amargar 23 anos de prisão e ser banido das urnas por mais de 30...). 

Observação: O castigo cairia sobre a biografia do "mico" das rachadinhas e das mansões milionárias como uma lápide, o que explica esse apreço momentâneo e oportunista pela "pacificação" e esse desejo incontido de manusear uma "borracha" capaz de apagar seu passado criminoso. 
 
Moraes vê a bandeira branca içada pelo capetão como um flerte com o apaziguamento que deu asas ao regime nazista de Hitler. A referência histórica encosta a tentativa de golpe no Brasil na Conferência de Munique. No despacho em que determinou o afastamento de Ibaneis Rocha do governo do DF, o ministro anotou que a democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil politica de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Ao
 assegurar que todos serão responsabilizados civil, política e criminalmente pelos atos atentatórios à democracia e às instituições, ele evoca uma das célebres frases de Churchill: "Um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado." 

Observação:O destrambelho seletivo de Bolsonaro não só desnuda suas intenções anteriores como evidencia quão escassos são seus instrumentos de reação em busca de proteção — que, na real, se resumem a apenas um: a fotografia da multidão que não aliviará em um milímetro as agruras judiciais dele e de seus cúmplices. Quando ordenou a batida de busca e apreensão nos endereços do deputado bolsonarista Carlos Jordy, Moraes pontuou que "a democracia brasileira não será submetida à ignóbil política de apaziguamento à moda de Chamberlain" Ou seja: se depender do togado, o desejo do capitão de "passar uma borracha no passado" será tratado como uma tese natimorta.
 
Ao reiterar seu apoio ao padrinho político, Tarcísio de Freitas desperdiçou a melhor chance que a conjuntura já lhe proporcionou para se credenciar como alternativa política da direita civilizada. Ser grato pela ascensão ao governo de São Paulo é uma coisa, esticar o convívio com alguém que coleciona inquéritos criminais é outra. Ele disse que atendeu a convocação para "celebrar o verde e amarelo, o amor ao nosso país, o Estado Democrático de Direito", mas na verdade ascendeu ao picadeiro como coadjuvante de um número apoteótico concebido por um golpista contumaz para posar de vítima. Herdeiro potencial dos votos que levaram Bolsonaro ao Planalto em 2018, o afilhado soa como se acreditasse que o sonho do padrinho de liderar a direita que retirou do armário em 2018 continua intacto. Só que não.
 
A direita paleolítica que congestionou a Paulista já havia demonstrado no 8 de janeiro quão profundas são suas raízes, mas a direita civilizada que ajudou a defenestrar Bolsonaro em 2022 continua órfã de uma alternativa que o ora inquilino do Palácio dos Bandeirantes se recusa a personificar. Se ele espera que o
 Messias que não miracula o declare seu herdeiro, deve puxar uma cadeira. Ou um ronco, pois o discurso do padrinho deixa clara sua pretensão de voltar às urnas. Mas o detalhe — e o diabo mora nos detalhes — é que o mesmo STF que propiciou a Lula o sonho da anulação das sentenças está prestes a impor a Bolsonaro o pesadelo da condenação.

Faltou ao governador perspicácia para traçar um risco no chão, separando sua biografia dos crimes atribuídos àquele emporcalhou o principal cartão postal de Sampa com o rastro pegajoso de meia dúzia de processos à espera da suprema sentença — além da tentativa de golpe, há o escândalo das joias sauditas, a fraude no cartão de vacinas, as perversões da pandemia, o vazamento de inquérito sigiloso e o aparelhamento da PF. Abstendo-se de estabelecer a fronteira a partir da qual não avançaria e encerrando seu discurso com um "muito obrigado, Bolsonaro, sempre estaremos juntos", Tarcísio vincula-se aos indiciamentos, denúncias, ações penais e sentenças que estão por vir. Enfim, a vida é feita de escolhas, escolhas têm consequências, e as consequências sempre vêm depois.
 
Ricardo Nunes não discursou, mas o fato de ter participado da arlequinada bolsonarista ensejou críticas de seus principais adversários na disputa pela prefeitura paulistana. Guilherme Boulos classificou de "vergonhoso" alguém que se elegeu vice do democrata e anti-bolsonarista Bruno Covas defender um ataque à democracia; Tábata Amaral não só lamentou que o evento tenha sido um incentivo à polarização como acusou o o prefeito de "topar qualquer negócio para se manter no cargo".
 
Valdemar Costa Neto — que se amancebou com o verdugo do Planalto a despeito dos prejuízos de encampar a extrema direita e sua luta antidemocrática contra as urnas eletrônica — é um jogador de grandes tacadas, e sabe que ganhar ou perder faz parte do jogo. Mas sua aposta só se sustenta porque a mídia e os adversários continuam a dar palanque a Bolsonaro.
 
Em qualquer democracia que se dá ao respeito, a incompetência não funciona como atenuante em golpes fracassados. No Brasil, a justiça não só tarda como muitas vezes não chega, e políticos poderosos sempre acham um caminho para contornar obstáculos (volto a lembrar o caso de Lula, que foi condenado, preso, descondenado, reabilitado politicamente e eleito presidente da banânia pela terceira vez). 
 
É difícil alguém chegar a algum lugar por meio de uma sucessão de derrotas e lances equivocados. Esse privilegio é exclusivo de fanáticos religiosos que veem os sofrimentos como degraus da longa escadaria que leva ao reino dos céus. E não me consta que a Papuda seja exatamente o Paraíso.

A conferir.