sábado, 23 de novembro de 2024

ELE NÃO SABIA DE NADA

QUANDO A GENTE IMAGINA QUE JÁ VIU O PIOR DAS PESSOAS, APARECE ALGUÉM PARA MOSTRAR QUE O MAL É INFINITO.

 

Sob Bolsonaro, o absurdo era tramado com a naturalidade de um batizado. Adorno tétrico da trama, o assassinato de Lula, Alckmin e Moraes forneceria a apoteose necessária para virar a mesa da democracia em grande estilo. Mas o imprevisto costuma ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, e as consequências sempre chegam depois.
 
"Quem espera sempre alcança", reza a sabedoria popular. Sempre que se via em apuros, Bolsonaro recorria ao versículo multiuso: "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" (João, 8:32). A Operação Contragolpe proporcionou seu encontro com a verdade, mas, ao invés de libertá-lo, a verdade o empurrará à cadeia. 

Até o momento, quatro militares de alta patente e um policial federal foram presos. Bolsonaro, Braga Netto e Mauro Cid estão entre os 37 indiciados pela "suposta" tentativa de golpe — "suposta" porque, como sabemos, sempre há a possibilidade de o que tem rabo de jacaré, couro de jacaré, boca de jacaré e dentes de jacaré ser, na verdade, um coelhinho branco.
 
Em junho de 2022, numa reunião em que o presidente foi filmado rosnando contra a democracia e o bobo da corte dizendo que era preciso virar a mesa antes das eleições, o general Mário Fernandes, número dois da Secretaria-Geral da Presidência, fez coro com os insurretos: 
"...É muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o país [...], para que aconteça antes, do que assumir um risco muito maior de conturbação no 'day after', né? Quando a fotografia lá for de quem a fraude determinar". 

Segundo a PF, o "day after" do general incluía uma carnificina que só não aconteceu por falta de adesão da tropa.
 
Bolsonaro perdeu a reeleição e colecionou derrotas nos pleitos municipais. A inelegibilidade o excluiu da cédula de 2026, mas a vitória de Trump o animou a conceder entrevistas em série, pregando uma "pacificação" escorada numa anistia inusitada. A cada vez mais provável condenação criminal pende como uma espada de Dâmocles sobre seu plano de controlar a sucessão no campo da direita.
 
Em público, Valdemar Costa Neto — ex-presidiário do Mensalão e indiciado na última terça-feira — insiste na tese abilolada de que Bolsonaro "não tem nada a ver com nada". Nos bastidores, porém, a cúpula do PL já admite que subiu no telhado a pretensão mimetizar Lula em 2018, registrando uma candidatura legalmente inviável.
 
A esta altura, falar em solidariedade afronta o razoável, mesmo nos insanos territórios da extrema-direita, e a construção de uma chapa conservadora, sem o veneno golpista do "mito", já começa a ser articulada. Mesmo porque os parlamentares do Centrão são conhecidos por carregar o caixão, não por pular na cova com o defunto. 
 
Cabe aos representantes da direita construir uma alternativa sensata, e a Tarcísio de Freitas, o primeiro da fila, tirar a mão da alça do caixão, trocando uma reeleição praticamente certa para o governo de São Paulo pela aventura de concorrer disputar o Planalto em 2026. Na seara da esquerda, Lula diz que concorrerá ao quarto mandato "se tiver saúde" — se tivesse juízo, o macróbio indicaria um sucessor para recompor o arco conservador que o reabilitou, não por gostar dele, mas para se livrar do refugo da escória da humanidade.
 
Indiciado, Bolsonaro renovou a pose de perseguido. Mas demonizar Moraes perdeu o nexo quando quando o delator Mauro Cid, os ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica (que não aderiram ao golpe) os investigadores da PF, as togas que avalizam os despachos de Moraes e o procurador-geral Paulo Gonet se juntaram à hipotética confraria de perseguidores.
 
Em 1986, ainda capitão da ativa, Bolsonaro amargou 15 dias de prisão disciplinar por publicar na revista Veja o artigo "O salário está baixo". No ano seguinte, a mesma revista revelou que ele e outro capitão planejavam explodir bombas nos quartéis se o aumento do soldo ficasse abaixo de 60%. O então ministro do Exército pediu a expulsão dos insurretos, mas o Superior Tribunal Militar acatou a tese da defesa.
 
Bolsonaro trocou a caserna por um mandato de vereador e outros 7 de deputado federal. Em 1991, defendeu o retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso. Em 1994, disse que preferia "sobreviver no regime militar a morrer nesta democracia". Em 1999, afirmou que "a situação do país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente" (incluindo o então presidente FHC). Em 2016, 
ao votar favor do impeachment de Dilma, homenageou o torturador da ditadura Carlos Alberto Brilhante Ustra. 

Sem outra fonte de renda além do salário de parlamentar, a "Famiglia Bolsonaro" comprou mais de 100 imóveis, 51 dos quais foram pagos total ou parcialmente em espécie. Em "O Negócio do Jair", a jornalista Juliana Dal Piva revela o método usado pelo clã para acumular milhões de reais e construir um projeto político iniciado com o emprego de parentes e coordenado pela segunda esposa. O livro detalha ainda as relações da família com o ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega, que virou chefe da milícia de Rio das Pedras e do Escritório do Crime, e acabou executado em 2020 por policiais militares baianos e fluminenses.  
 
Em meio à pandemia, Bolsonaro desdenhou do vírus, disse que a reação da população e da imprensa era "histeria", chamou a Covid de "gripezinha de nada" e demitiu Mandetta da Saúde porque o médico "estava se achando estrela", nomeou um sucessor que não durou um mês no cargo, e colocou em seu lugar o general Eduardo 
"um manda e o outro obedece" Pazuello. 
 
relatório da CPI da Covid apontou uma dúzia de crimes, mas o genocida saiu ileso graças à subserviência do antiprocurador Augusto Aras, e escapou de 140 pedidos de impeachment porque Rodrigo Maia "viu erros, mas não crimes de responsabilidade", e Arthur Lira avaliou que "todos os pedidos que analisou eram inúteis". 

Ao longo de toda a gestão, o pior mandatário desde Tomé de Souza não só incentivou como participou de atos antidemocráticos, chamou Moraes de canalha e Barroso de filho da puta, transformou o 7 de Setembro em apologia ao golpe de Estado, e por aí afora. Mas o dito ficou pelo não dito. 
 
Derrotado nas urnas, o capetão-golpista se encastelou no Alvorada até a antevéspera da posse de Lula. Mestre em tirar a castanha com a mão do gato, escafedeu-se para a Flórida (EUA) e se homiziou na cueca do Pateta por 89 dias, retornando somente quando poeira dos atos terroristas do 8 de janeiro já havia baixado. 

Observação: Se Bolsonaro não conspirasse 24/7 contra a democracia, não se associasse à a Covid, não rosnasse para o Legislativo e o Judiciário, não se amancebasse com QueirozZambelli, Collor, milicianos e que tais, talvez o ex-tudo (ex-retirante, ex-metalúrgico, ex-sindicalista, ex-presidiário, ex-condenado etc.) ainda estivesse gozando férias compulsórias na carceragem da PF em Curitiba. Mas de nada adianta chorar sobre o leite derramado.
 
Desde a última terça-feira que só se fala na Operação Contragolpe e seus impactos na situação do ex-presidente — uma novela que começou há anos e deve entrar pelo ano que vem, já que novidades surgem dia sim, outro também, e a última peça nunca fica pronta. 

Moraes deve enviar a PGR, nesta segunda-feira, o relatório de 884 páginas que recebeu da PF, mas Gonet dificilmente denunciará os indiciados até o final do ano, e o tempo necessário para alinhar todas as investigações conduzidas pode empurrar a denúncia para depois do recesso judiciário. O recebimento da denúncia pelo STF abrirá prazo para a instrução da ação penal. 

Espera-se que a sentença saia ainda em 2025, para não contaminar as eleições de 2026. Com as penas impostas aos envolvidos no 8 de janeiro variando entre 16 e 18 anos, é provável que, em caso de condenação, o Messias que não miracula permaneça inelegível por mais tempo que os anos que lhe restam de vida. 

Bolsonaro disse a Veja que "jamais compactuaria com qualquer plano para dar um golpe". Lavou as mãos sobre o plano que previa o assassinato de Lula, Alckmin e Moraes. Se alguém cometeu algum crime, ele não sabia. Collor também não sabia do esquema PC, e Lula, do Mensalão. O "eu não sabia" é um velho conhecido dos brasileiros, que reaparece sempre que algum personagem capaz de tudo pede à nação que o veja como como um incapaz de todo.
 
O Brasil terá que aprender a conviver com um Bolsonaro inelegível, indiciado e indefensável. Não será fácil, e ficará mais difícil à medida que o indiciamento evoluir para denúncia, ação penal e provável condenação. Essa convivência pode ser longa, já que a Justiça, conhecida por tardar mas não falhar, move-se em solo brasileiro a velocidade de um cágado perneta. 

O fato de a deusa Themis ter sido retratada sentada diante do STF indica que quem recorre àquela corte precisa ter paciência de : dependendo de quem julga e de quem é julgado, a sentença pode demorar 20 horas ou 20 anos (haja vista as condenações de Maluf, de Collor e do próprio Lula).

Triste Brasil.