quarta-feira, 22 de outubro de 2025

O TEMPO PERGUNTOU AO TEMPO QUANTO TEMPO O TEMPO TEM… (QUARTO CAPÍTULO)

WHAT'S DONE CANNOT BE UNDONE

Prosseguindo de onde paramos no capítulo anterior, se retirarmos todos os acontecimentos, restará somente o tempo em sua forma pura, sem conteúdo. Mas será que no próprio tempo existem presente, passado e futuro? 


Para tentar responder a essa pergunta, devemos ter em mente que o conceito de flecha do tempo, — proposto pelo astrônomo britânico Arthur Eddington com base na Segunda Lei da Termodinâmica — se baseia no aumento irreversível da entropia para sustentar a unidirecionalidade do tempo. 


Ocorre que a entropia é a única lei da física com forte direcionalidade temporal que perde essa característica quando trata de coisas muito pequenas — ou seja, a flecha do tempo só avança irreversivelmente do passado para o futuro quando nos afastamos do mundo microscópico em direção ao macroscópico.


CONTINUA DEPOIS DA POLÍTICA


Lula nasceu em 1945. Nos anos 1950, o Brasil de Getúlio Vargas tinha o rádio como grande meio de comunicação. Francisco Alves e René Bittencourt lançaram o disco com uma valsa que faria enorme sucesso na voz de um coro infantil: “Criança feliz, feliz a cantar, alegre a embalar, seu sonho infantil”. A alegria estava decretada no céu porque todos tinham percebido que Jesus havia sido criança. Mas a criança feliz mudou. 

A infância encolheu. Nossas avós brincavam com bonecas na idade em que as crianças de hoje já pensam em baladas. E encolheu também na demografia: o Brasil envelheceu, e há menos filhos por casal. Segundo nosso censo, em 2000, havia uma média de 2,43 filhos por casal; em 2020, o número caiu para 1,66. A família encolheu, e a geriatria tem mais nosso futuro do que a pediatria.

Antes, havia “adultos pequenos” sem roupas específicas, sem restrições como censura ou limites judiciais de responsabilização. O avanço da infância foi enorme desde o século 19. Efeitos? O Natal e a Páscoa foram “infantilizados”. Sai Jesus (recém-nascido ou recém-ressuscitado) e aumenta a imagem do Papai Noel e do Coelho. 

Sem rebentos, a festa em família parece estar esvaziada. As violências contra crianças foram condenadas e proibidas. A palmatória sumiu das escolas. O tapa materno ou paterno foram barrados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A criança consome e é alvo de campanhas publicitárias. A pedagogia revestiu-se de positividade e a erotização de crianças choca a todos. No apogeu da proteção, começam a escassear as crianças em si. Resta saber quem habitará a redoma sagrada e protegida que nossa consciência edificou para as crianças.

No mesmo mês do “dia da criança” existe o dia do “idoso”. Mas a infância é idealizada, ao passo que a maturidade é evitada e disfarçada. Encurtamos a infância e ampliamos o ideal de juventude. Há poucas crianças, mas ninguém quer ser velho. 

Viramos imortais de pele boa porque estamos na “melhor idade”. Nesse ritmo, em 2055 o Brasil estará sem crianças e tomado por septuagenários felizes com o verão interminável tapado pela peneira da publicidade e da medicina. 

A criança era “feliz, feliz a cantar” em 1952. No ano anterior, a música mais cantada era Bota o retrato do velho outra vez (Haroldo Lobo e Marino Pinto), destacando a volta de Getúlio Vargas ao poder. Os autores exaltavam que “O sorriso do velhinho faz a gente trabalhar”. 

Sabem a idade do “velhinho” Getúlio ao ser eleito em 1950? Ele tinha 69 anos. Trump fez 79 anos no dia 14 de junho, e Lula completará 80 no próximo dia 27. Ambos os Macróbios almejam a reeleição. Somem os “babies” e ficam os “boomers”...

Pelo jeito que as melancias vão se ajeitando na carroça do tempo, logo não haverá crianças. Resta saber o que fazer com esta vida que teima em se alongar para um crepúsculo interminável... Esperança? Só com “meu bom Jesus, que a todos conduz”. 

Segundo a Bíblia, Jesus saiu da casa da mãe aos 30 anos — o primeiro “millennial”. Haja colágeno!

 

Se considerarmos o tempo como um trem que segue pelos trilhos em velocidade constante, do antes para o depois, o hoje é o amanhã de ontem e o ontem de amanhã. O presente é o ponto transitório entre o passado (ontem) e o futuro (amanhã), e a sucessão dos eventos segue uma ordem linear que conhecemos, como as datas do Réveillon, Carnaval, Páscoa, Corpus Christi e Natal, por exemplo. 


Vale ressaltar que essa direção unívoca do tempo não se encaixa na física quântica, onde sistemas podem existir em múltiplos estados ao mesmo tempo (superposição) até a medição, sem que haja uma definição clara e única de presente, passado ou futuro até que a observação ocorra. 


A metáfora do Gato de Schrödinger destaca isso ao sugerir que o estado do gato (vivo e morto simultaneamente) só se define quando abrimos a caixa e fazemos a observação. Assim, se o sistema não segue a flecha temporal clássica nos seus estados definidos antes da observação, o presente pode estar em múltiplos pontos no tempo — ou não estar restrito a um ponto temporal específico. Mas e quanto a nós? 


A priori, nada indica como ficamos. Como o que realmente importa é a relação entre os acontecimentos, poderíamos estar em qualquer ponto e ver o mundo e seus acontecimentos expostos diante de nós como se estivéssemos fora do tempo. Ou imersos no ˝rio do tempo˝, onde o tempo escoa ao redor de nós, do futuro que está adiante para o passado que está atrás, enquanto nós ficamos no presente, presos a esse ˝agora˝. 


Observação: Estar no rio do tempo significa envelhecer à medida que o tempo passa. O presente nunca é o mesmo, mas estamos presos a ele e não podemos voltar ao passado nem avançar para o futuro senão um dia de cada vez.


O trem e o rio compartilham da mesma topologia de tempo linear, unidimensional, unidirecional e sem lacunas. Mas há duas diferenças importantes. No caso do trem, a flecha do tempo impõe datações objetivas — o sábado vem antes do domingo, janeiro, antes de fevereiro, e assim por diante —, ao passo que no rio as datações são relativas ao falante — duas horas atrás, daqui a duas horas, ontem, hoje, amanhã,, presente, passado e futuro.


A flecha do tempo e o trem nos informam objetivamente sobre a relação entre os acontecimentos e a maneira como eles se situam uns em relação aos outros — antes, depois, e até mesmo simultaneamente. O rio nada nos diz sobre a relação entre os eventos, apenas sobre a posição subjetiva que eles ocupam em relação a nós — ou seja, se existem ao mesmo tempo em que falamos ou existimos, se existem anteriormente a nós, ou se existem posteriormente ao nosso presente.


Essas duas metáforas soam contraditórias. No caso do trem, o tempo parece seguir no sentido contrário ao do rio. Olhamos da esquerda (passado) para a direita (futuro), ou seja, os eventos seguem do passado para o presente e deste para o futuro, mas no rio o futuro vem até nós, torna-se presente e se afasta como passado. Isso nos leva às seguintes perguntas: 1) Seria o tempo como a flecha que vemos passar ou como o rio em que estamos? 2) O futuro é o que vem ao nosso encontro ou o que deixamos para trás? 


De certo modo, a resposta para a segunda pergunta está na primeira,, onde há relações temporais (anterior/posterior/simultâneo), mas não há presente. Na segunda há propriedades temporais absolutas (presente/passado/futuro), mas nós estamos fora da flecha do tempo e dentro do rio do tempo. 


O que chamamos tempo, na flecha, é o fato de as coisas mudarem ou os acontecimentos se sucederem. No rio, vemos o desenrolar do tempo a partir da posição fixa que ocupamos no presente — que é sempre o mesmo enquanto presente; mas sempre outro em seu conteúdo. 


O que chamamos ˝tempo˝, no rio, é o fato de o mesmo presente ter sempre um conteúdo distinto, como se houvesse um ponto fixo em relação ao qual a flecha iria em sentido inverso, com os acontecimentos se tornando passado conforme o tempo passa.


A partir daí se colocam duas questões: 1) Qual seria a melhor representação do tempo? 2) O presente, o passado e o futuro existem objetivamente ou apenas subjetivamente? 


Se não há passado nem futuro, a ideia de que o passado é necessário e de que diversos futuros são sempre possíveis é em si mesma uma ilusão devida à nossa condição de seres temporais. Mas isso é assunto para o próximo capítulo.