Precisamos falar um pouco sobre regime militar no Brasil,
porque em nosso país, ao contrário do que em geral acontece no resto do mundo,
a História vai ficando mais incerta com o passar do tempo. É a velha tirada do
ex-ministro Pedro Malan: o Brasil é
um país tão difícil que aqui não dá para prever nem o passado.
Apareceram na praça, pouco tempo atrás, mais informações
sobre o período do “regime militar” ou “ditadura militar”, conforme o lado da
rua em que o cidadão está — e o tema, que periodicamente sai do
túmulo, circula pelos meios de comunicação e volta a ser enterrado, ganha de
novo seus quinze minutos de fama. Desta vez, fomos informados que os generais
que mandavam no governo, inclusive um presidente da República, seu sucessor e
outros colossos das Forças Armadas, autorizaram a “execução sumária” de
“opositores do regime”.
A informação é de um documento da CIA, a agência de espionagem dos Estados Unidos, e não esclarece se
os seus espiões ouviram, de vivo ouvido, a conversa em que os chefes militares
decidiram dar essas ordens. Seja como for, as dúvidas não vêm mais ao caso. A
“denúncia da CIA” morreu de inanição pouco depois de ter
nascido — não chegou a impressionar os especialistas e, menos ainda,
a interessar os indiferentes ao assunto.
A curiosidade, neste último episódio de viagem ao passado,
não é a falta de um ponto de chegada. O esquisito é a repetição da tentativa de
manter vivos um mundo e uma época que estão mortos — apesar dos
resultados cada vez mais frouxos que se obtém com esses esforços de
ressurreição. Pretende-se estabelecer a “verdade” sobre o
passado — chegaram a criar até uma “comissão nacional” para esta
tarefa. A cada tentativa, naturalmente, não se estabeleceu verdade nenhuma.
Como seria possível, se o centro da questão está em fatos que aconteceram há 50
anos? As responsabilidades teriam de ter sido apuradas lá atrás. Mas para isso
seria indispensável que os militares tivessem perdido seu combate contra os
grupos que queriam derrubá-los — só assim poderiam ter sido presos,
julgados e condenados. (Ou “executados sumariamente”, talvez.) Acontece que os
militares não perderam. Saíram do governo porque quiseram e foram em boa ordem
para as suas casas, protegidos por uma lei de anistia legalmente aprovada. Não
passou pela cabeça de ninguém, na hora, chamar o general Pedro ou o coronel
Paulo para responder a inquérito nenhum. Caso encerrado, então. Punições deste
tipo ou vêm imediatamente após o encerramento do conflito, ou não vêm nunca
mais. Não dá para reabrir o Tribunal de Nuremberg ou os Processos de Tóquio.
Não dá para descobrir a verdade sobre a Guerra dos Farrapos. Pode até
dar — mas é inútil.
O que acaba acontecendo, na vida real, é que a cada
expedição arqueológica feita para descobrir a “verdade histórica”, o passado se
torna mais obscuro, e não mais claro. Em vez de se saber mais, fica-se a saber
menos. No caso do regime que existiu de 31 de março de 1964 até 30 de dezembro
de 1978, quando foi revogado o Ato
Institucional Nº 5, a passagem do tempo torna as coisas especialmente mais
vagas para o brasileiro comum. O período é descrito pelos fiscais da História
nacional como o mais negro de toda a existência do Brasil —os tais “anos
de chumbo”, piores que qualquer desgraça que o país já tenha vivido até hoje.
Mas a cada dia que passa, mais ralo vai ficando este caldo.
Hoje, só cidadãos que já estão com 72 anos de idade, ou
mais, tinham chegado aos 18 e eram adultos em 1964. Todos os oficiais
atualmente na ativa nas Forças Armadas eram crianças na época, ou nem tinham
nascido. Dos que sobreviveram, muitos não acham que aqueles foram “anos de
chumbo” — ou sequer lembram de algum incômodo causado em seu
dia-a-dia pelo “regime”. Mais de 60% da população atual do Brasil, ou acima de
125 milhões de pessoas, têm até 40 anos de idade. Nenhuma delas era viva quando
o AI-5 foi revogado e as liberdades públicas e privadas foram restabelecidas.
Porque essa gente toda iria achar que o governo militar é uma questão
fundamental em suas vidas? Não é. Não vai ser nunca.
Os chefes militares foram responsáveis por mortes, torturas
e prisões ilegais. Claro que foram: o AI-5 não aboliu o Código Penal, nem
tornou legal o homicídio. Como cometer crimes sem autorização superior? Todos
achavam, aliás, que estavam fazendo muito bem — na sua visão, havia
simplesmente um inimigo a eliminar. Não vão mudar de ideia. Esperam, ao
contrário, que o tempo traga cada vez mais gente para o seu lado.
Por J.R. Guzzo — Publicado na edição impressa de VEJA
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