Se não houve consenso sobre o número de municípios em que o
povo saiu às ruas no último domingo, seria esperar demais que as opiniões dos
analistas fossem convergentes em relação ao resultado. Para alguns, o governo
saiu fortalecido; para outros, a adesão ficou abaixo do esperado. Como na velha
história do copo pela metade, pode-se dizer que ele está meio cheio ou meio
vazio, a critério de cada um. Há quem diga que os protestos fariam mal de
qualquer jeito, fossem volumosos, fossem pífios.
Particularmente, concordo com José Nêumanne, para quem a impressão que elas deixaram, não tendo
sido espetaculares como os bolsonaristas esperavam nem mínimas como previam seus
adversários, é que a cidadania em marcha traz sempre bons resultados para
a democracia e produzem um equilíbrio maior entre os Poderes da República. Os
que são contra o governo recorrem a soluções estapafúrdias e covardes, como o
recall planejado no Senado à sombra de Davi
Alcolumbre, que ainda não deu conhecimento ao público da fraude transmitida
para todo o País em sua escolha para o lugar antes ocupado por Renan Calheiros. Os atos trouxeram como
novidade para os dois lados da dicotomia política brasileira nomes de ministros
apoiados aos berros nas concentrações populares numa advertência de que o povo
sabe mesmo o que quer. O presidente deveria aprender a governar para todos e os
mandachuvas do Congresso, a ficarem no espaço restrito de suas cumbucas.
Guilherme Fiúza,
mais incisivo, publicou o seguinte texto: “E eis que o debate nacional, cada
vez mais dominado pela picaretagem intelectual, chega à suprema impostura: em
nome da democracia, as novas vozes da resistência cenográfica decretam que uma
manifestação de rua — ou, mais precisamente, a ideia de uma manifestação de rua
— é autoritária! Nunca se viu nada parecido em tempos democráticos. A rua agora
tem dono, que decide quem pode sair de casa. Fascistas são os outros. Nem Lula, que depenou o país e tentou
transformá-lo em quintal do PT, ousou atacar a legitimidade de qualquer
manifestação no país — fossem meia-dúzia de gatos pingados mandando-o ir para
Cuba ou milhões de pessoas pedindo o impeachment de sua sucessora. Você jamais
ouviu de Lula uma palavra contra o
direito de qualquer pessoa sair à rua para se manifestar sobre o que bem
entendesse. Podia dizer que era coisa da elite branca etc., mas ele jamais
alegou que um ato de protestar em público era expressão de autoritarismo. Nem Fernando Collor, talvez o governante
mais prepotente que o país já teve, vendo um número cada vez maior de pessoas
ocupando as ruas pela sua queda, se atreveu a dizer que havia algo de
autoritário ou antidemocrático nas manifestações. E olhem que entre os
manifestantes havia gente como José
Dirceu, Lindbergh Faria e outros
famosos impostores — o que não tirava a legitimidade do movimento popular que
levou, de forma democrática, ao impeachment dele. Pois bem. Essa democracia que
já sobreviveu a prepotentes e larápios tem agora uma novidade quente:
personagens que sempre se disseram liberais aparecem dizendo que a manifestação
“A” pode, mas a manifestação “B” não pode. Como não têm coragem de dizer que
não pode, dizem que um determinado ato público — que eles não poderiam saber o
que é antes de acontecer — contém motivação autoritária; que pode ser um golpe
contra as instituições; que é mais democrático ficar em casa. Como eles sabem
de tudo isso? Nem Dilma, a famosa
vidente que previu os tiros contra a caravana de Lula, ousou insinuar que qualquer das inúmeras manifestações de rua
contra ela desaguaria num golpe institucional. Sendo que nem mesmo ela — Dilma, a única —, espalhando por aí até
hoje que foi vítima de um golpe, se atreveu a sugerir que as manifestações de
rua fossem, em si, uma orquestração autoritária. Nem mesmo ela teve a
petulância de intervir nas intenções alheias, de decretar qual protesto é
legítimo ou não é. Agora o mais grave (sim, é pior ainda): esses novos
democratas de butique sabem muito bem que a agenda de reformas — que eles
sempre defenderam — está em implantação (da forma que eles sempre pediram) e
está também sob risco de sabotagem. Não por divergência de mérito, mas por
disputa de poder. E quando surge a iniciativa de pressionar o Congresso contra
a sabotagem da agenda que eles sempre pregaram, de que lado eles ficam? Ficam
do lado da sabotagem, dizendo que estão lutando contra a ameaça de fechamento
do Congresso. A lógica personalizada é boa por isso: se o dono mandar, ela
rebola até o chão, na boquinha da garrafa, e não tem que dar satisfação a
ninguém. Todo mundo viu o que a imprensa amiga do PT fez na época do impeachment: fotografava faixas de grupinhos
pedindo intervenção militar no meio da multidão pedindo a deposição de um
governo corrupto e botava na manchete “o viés antidemocrático” do protesto. É
horrível isso, não é? Covarde, canalha, etc., certo? Pois é exatamente o que
vocês estão fazendo agora, caros liberais arrependidos. Aliás, vocês estão
ajudando a esconder a agenda positiva da equipe do Paulo Guedes (que vocês veneravam até anteontem) com a sua chocante
indiferença perante ações cruciais como a MP da Liberdade Econômica — engolida
e soterrada em meio a esse falatório periférico que vocês travestem todo dia de
crise governamental. Parece que tem muita gente querendo protestar contra a
sabotagem das reformas (que é um risco) e da informação (que é uma realidade).
E, por mais que vocês queiram, essa gente não vai pedir licença a vocês.
Encerro com a avaliação de Ricardo Noblat e um vídeo de Caio Coppola. Começando por Noblat:
Foi uma manifestação fake, a de ontem. Simples de
demonstrar. O que disseram a propósito os seus organizadores? E o que disse à
noite o presidente Jair Bolsonaro em
uma entrevista chapa branca à Rede Record de Televisão? Organizadores e
Bolsonaro disseram que milhares de pessoas foram às ruas de mais de 150 cidades
para cobrar a aprovação da reforma da Previdência, do pacote anticrimes do
ex-juiz Sérgio Moro, e renovar seu
apoio ao governo. Fosse verdade, não teria havido espaço para bonecos gigantes
que ridicularizaram o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Afinal, ninguém mais do que Maia batalha pela aprovação da reforma. E isso todos reconhecem. Bolsonaro, não, só finge apoiá-la. Faz
as declarações de praxe. E vez por outra fraqueja, deixando às claras seu raso
compromisso com ela. O ministro Paulo
Guedes, autor da proposta de reforma, até ameaçou ir embora porque o
presidente mais atrapalha do que ajuda. O mercado financeiro dá por seguro que
a reforma passará no Congresso e em tempo razoável. Então, por que milhares de
brasileiros trocariam a praia e o descanso do domingo para suarem a sol a pino
em defesa de uma reforma que não inspiraria tantos cuidados? De resto, em que
lugar do mundo multidões se reuniriam alegres e ruidosas para comemorar a
supressão de direitos conquistados e menos dinheiro no bolso? Ora, por toda
parte, reforma da Previdência é sinônimo de confusão e de gente zangada nas
ruas. É fato que a violência por aqui ultrapassou o limite do tolerável. E que
o Congresso faz restrições ao pacote de medidas desembrulhado por Moro. Mas isso está longe de significar
que o pacote irá para o lixo. Convenhamos: cabe ao Congresso aperfeiçoá-lo, não
o engolir a seco. E aqui mora o busílis: na verdade, Bolsonaro e seus devotos querem que o Congresso apenas referende os
projetos para ali enviados pelo governo. E que a Justiça se comporte como um
poder amigável, dócil às suas vontades, e garantidor de suas iniciativas. Assim,
começa a fazer sentido o que se viu e se ouviu, ontem, nas ruas – os bonecos de
Maia, faixas e cartazes com duras
críticas aos políticos e aos ministros do Supremo Tribunal Federal, palavras de
ordem que exaltavam o Mito, o Messias, o presidente, ou simplesmente Jair. Sem financiamento empresarial,
sem incentivo de partidos ou dos movimentos sociais organizados, a estudantada
surpreendeu o governo e todo mundo no último dia 15 ocupando as ruas de 220
cidades para protestar contra o corte de verbas para a Educação.
Bolsonaro chamou
os jovens de “idiotas úteis”. Pois os “idiotas úteis” obrigaram o governo a
devolver parte do dinheiro cortado. Usados por Bolsonaro como massa de manobra
contra o Congresso e a Justiça, os “patriotas” do dia 26 não terão o que
celebrar. Congresso e Justiça não recuarão um passo de suas posições. Darão um
tempo para só depois retaliar o governo. Conforme-se Bolsonaro com as regras da democracia. Ou então peça para sair.
Com a palavra, Caio Coppola:
Que cada um tire suas próprias conclusões.