Pouca gente botou fé quando Donald Trump anunciou
que iria disputar a presidência dos EUA.
Mas o cara desbancou um a um os demais “pré-candidatos” e, ao final de uma
campanha acirradíssima e de baixíssimo nível, acabou sendo eleito, contrariando
a maioria das pesquisas ― que até a véspera da eleição apontavam Hillary Clinton como provável
vencedora.
As eleições americanas não são como as daqui. Lá, os votos
dos eleitores (ainda que dados para candidatos específicos) servem para eleger os delegados no Colégio
Eleitoral que os representarão na escolha final do futuro presidente. Cada
Estado tem uma quantidade de delegados proporcional à população; no total, são 538 representantes, e são necessários
os votos de 270 deles para eleger um
presidente da República. Na maioria dos casos, a determinação final dos votos
dos Estados é absoluta; ou seja, mesmo que o candidato “A” derrote o candidato
“B” no Estado “X” por 55% contra
45% dos votos válidos, “A” obterá
todos os representantes de “X”, ao
passo que “B” não levará nenhum ao Colégio
Eleitoral (os únicos Estados em que se realiza uma contagem diferente são o
Maine e o Nebraska). Assim, é possível que “B” obtenha mais votos totais que “A” e acabe derrotado no Colégio
Eleitoral por ter perdido a disputa nos Estados mais populosos.
Observação: Vale salientar que não existem apenas dois
partidos políticos nos Estados Unidos. Embora o Democrata e o Republicano
sejam os mais conhecidos, até porque se alternam no poder desde as mais priscas
eras, há dezenas de outras legendas ― como o Partido Libertário, o Partido
Verde, o Partido Novo, o Partido da Montanha, o Partido da Reforma, o Partido dos Trabalhadores (é, lá
também tem), o Partido do Alaska,
o Partido do Havaí, etc. ―, que, por receberem apoio mínimo nas eleições
gerais, não aparecem nas cédulas de todos os Estados (com exceção do Libertário e
do Verde).
Entendeu? Nem eu! Mas sigamos adiante, ou melhor, voltemos
agora ao dia 8, quando o mundo ficou boquiaberto com a vitória de Trump ― ou melhor, com a derrota de Hillary. Até porque os americanos não
escolheram o candidato de que mais gostavam, e sim o que menos detestavam. E, surpreendentemente,
a democrata superou o republicano em
falta de empatia e índices de rejeição.
S
ob alguns aspectos, esse resultado inesperado faz lembrar a
eleição de Doria, que se deveu em
grande parte à manifesta rejeição dos paulistanos à classe política como um
todo ― e o prefeito eleito fez absoluta questão de salientar, durante toda a
campanha, que não era político, mas
gestor e empresário bem-sucedido.
A vitória de Trump
premiou uma das campanhas mais heterodoxas da história e a ambição de um
empresário que venceu na política explorando ao máximo a frustração do público
com os políticos tradicionais. Assim que sua vitória foi confirmada as Bolsas despencaram
na Ásia (quedas de 5,35% em Tóquio e 2,16% em Hong Kong) e o peso mexicano caiu 10,2% ― uma desvalorização que
não se via desde a crise global de 2008.
Desafiando o consenso de que não chegaria longe devido à
inexperiência na política e ao linguajar vulgar, a despeito da divulgação de um vídeo em que
afirmava que era famoso e podia “pegar
as mulheres pela xoxota”, de uma dúzia de acusações de assédio sexual, das promessas de
sobretaxar as importações, construir um muro na fronteira com o México e deportar de cerca de 11
milhões de imigrantes ilegais (só para citar alguns exemplos notórios), Trump não só chegou ao final da disputa
disparando impropérios e barbaridades e destilando ódio, mas também a venceu,
vendendo-se como o forasteiro político capaz de desafiar um sistema corrupto
que tem na concorrente ora derrotada seu maior símbolo de decadência. Aliás, quando
tudo parecia perdido para o republicano, uma ajudinha do diretor do FBI fez a diferença: no finalzinho de
outubro, Comey reabriu a investigação sobre Hillary ter usado um servidor privado
de e-mail quando era secretária de Estado. O FBI reiterou sua decisão anterior às vésperas da
eleição, mas aí o estrago já estava feito.
Hillary foi primeira-dama entre 1993 e 2001, senadora pelo estado de Nova York entre
2001 e 2009 e secretária de Estado
entre 2009 e 2013. Ainda assim, ela é vista como uma pessoa com duas condutas ―
uma a portas fechadas, para apoiadores importantes e doadores de recursos de
campanha, e outra, pública, para os eleitores médios do partido democrata.
Alguns fatores relacionados a sua vida pessoal explicam essa “natureza secreta”
― como os traumas dos anos 1990, quando as finanças e a vida íntima dos Clinton foram expostas e divulgadas. No
cômputo geral, parece que sua aura de pessoa fria, inacessível, distante e com
pendor para os segredos suplantou as credenciais de décadas na vida pública que
a qualificavam como uma das candidatas mais preparadas para concorrer à Casa
Branca.
Trump nasceu rico
e tornou-se bilionário (para muitos, ele é “apenas” multimilionário) com
empreendimentos de sucesso no setor imobiliário e, dizem, mediante sonegação de
milhões de dólares em impostos através de manobras legalmente questionáveis.
Fala-se também que ele coleciona falências e vários fracassos nos negócios,
como uma companhia aérea entregue aos credores, jogos de tabuleiro que não
venderam e hotéis e cassinos luxuosos falidos, e que enfrenta duas ações
coletivas de ex-alunos da Trump
University por estelionato, além de ser tido e havido como um mentiroso de
marca maior: um jornal canadense checou 253
informações do republicano em 33 dias e constatou que ele não passa um dia sem mentir ― chegando
a contar 25 lorotas num único dia! Ao
fim e ao cabo, as diferenças entre os dois lados da campanha resultaram numa
das eleições com maior polarização
política e tensão racial da história ― e, por que não dizer, uma das mais
sujas, com várias empreitadas polêmicas, a maioria delas protagonizada por Trump, que, após 14 temporadas à frente
do programa de TV "O Aprendiz",
introduziu o estilo "reality show"
na campanha presidencial, capitalizou a "raiva" de grande parte do
público contra o governo e acabou derrotando todos os adversários, inclusive Hillary, numa virada monumental
ocorrida no próprio dia da eleição.
Por essas e outras, a disputa foi dominada por acusações
mútuas, com menos tempo dedicado a propostas e mais às personalidades de dois dos candidatos mais impopulares da
história.
A meu ver, venceu o pior, mas Trump também não deverá ser facilmente engolido pelas lideranças internacionais, já
que disparou contra muçulmanos, mexicanos, chineses, japoneses e coreanos,
entre outros, gerando incertezas sobre suas posições e propostas. Espera-se que
ele perceba o quanto seria arriscado adotar as medidas drásticas alardeadas
durante a campanha, como o abandono unilateral do Nafta, os acirramentos com o México
e a China e a combinação de cortes
de impostos e aumento de gastos com potencial para expandir o déficit público
americano em até US$ 5 trilhões em
dez anos.
Em política, é comum
dizer o contrário do que se pensa e fazer o oposto do que se diz. Logo após
sua inesperada vitória, o pato Donald
assumiu um tom conciliatório em seu discurso: “Agora é hora de os EUA curarem as feridas
da divisão, de promover a união. A todos os republicanos, democratas e
independentes de todo o país, digo que é hora de nos unirmos como um só
povo", disse o presidente eleito, em sua versão “paz e amor”. Passados
4 dias, as atenções se voltam para as políticas que ele adotará como
presidente, mas fazer uma análise dessa questão neste momento seria mero
exercício de futurologia. Melhor deixar a poeira assentar e voltar ao assunto
daqui alguns dias ― ou semanas.
(Com conteúdo da Folha).