Sui generis como
quase tudo no Brasil, o foro
privilegiado (ou foro especial por prerrogativa de função,
que é o nome correto) também está presente em outros países, mas em nenhum deles
é estendido a tantos indivíduos quanto no nosso.
Aqui, além dos presidentes do Executivo, Legislativo e
Judiciário, ministros de Estado, senadores, deputados federais, membros dos tribunais
superiores, do TCU, embaixadores, governadores, desembargadores, membros dos
Tribunais de Contas estaduais e municipais e dos Tribunais Regionais, juízes
federais, do Trabalho e de Tribunais Militares, prefeitos e integrantes do
Ministério Público só podem ser julgados
por cortes superiores.
O benefício em questão ― do qual usufruem mais de
40 mil indivíduos ― foi instituído para proteger o exercício de função ou mandato público e cessa
quando o beneficiado deixa de exercer o cargo que o assegura.
No entanto, se o cidadão já
responde a processo quando se elege deputado federal, por exemplo, a ação é
remetida ao STF; findo o mandato,
caso sua excelência ainda não tenha sido julgada (situação mais comum), os
autos baixam para a instância de origem, e tornam a subir para o Supremo se o
réu conseguir se reeleger (o que também é bastante comum).
Essa situação absurda ― para dizer o mínimo ― retarda
barbaramente a ação da Justiça, na medida em que, diferentemente dos juízos de
primeira instância, o STF e as
demais cortes superiores não têm estrutura para analisar provas de processos ou
para receber denúncias, o que torna a tramitação das ações lenta e ineficaz e
aumenta significativamente as chances de impunidade: segundo um
levantamento feito pela revista Exame em 2015, dos 500 parlamentares que
foram alvo de investigação ou ação penal no STF nos últimos 27 anos,
apenas 16 foram condenados; destes, 8 foram presos, e destes últimos, apenas um
continua no xadrez (os demais ou recorreram ou se beneficiaram da prescrição
para se livrar dos processos).
Não é de hoje que se fala em pôr um fim a essa aberração.
Existem dezenas de propostas para
retirar o foro de deputados e senadores. A mais antiga, de 2005, ficou parada
por mais de uma década na CCJ, à espera da designação de um relator. O assunto
voltou à baila com a Lava-Jato, notadamente depois de
Dilma ter nomeado Lula ministro-chefe da Casa Civil, em março do ano
passado, para tirá-lo do alcance do juiz Sérgio
Moro (felizmente, o impeachment da mulher sapiens fez o petralha dar
com os burros n’água).
Considerando que 30% dos senadores e 10% dos deputados
federais figuram na “Lista de Fachin”
― e isso por enquanto, pois a Lava-Jato continua cumprindo seu papel, a
despeito das recorrentes tentativas de “estancar essa sangria” ―, seria
ingenuidade esperar que os parlamentares movessem uma palha para moralizar o
antro que se tornou o Congresso Nacional. Todavia, diante da perspectiva de o
Supremo avocar para si a missão de colocar ordem no galinheiro ― a ministra Cármen Lúcia pautou para o início do
mês que vem o exame de uma proposta interna do ministro Luís Roberto Barroso para acabar com o foro especial ―, os senadores
acharam por bem jogar para a plateia, aprovando por unanimidade, no
primeiro de dois turnos, a proposta de emenda constitucional que restringe a prerrogativa de foro aos presidentes da
República, da Câmara Federal, do próprio Senado e do Supremo Tribunal Federal. Afinal, 54 dos 81 senadores e todos os 513 deputados federais terão de sair em campanha, no ano que vem, para garantir mais quatro aninhos de mamata no Congresso Nacional.
Observação: Num momento em que o Legislativo carece de credibilidade e o Executivo, de respaldo popular, o Judiciário se nos apresenta como a tábua de salvação. No entanto,
por vezes isso é frustrante: em fevereiro, o ministro Marco Aurélio mandou soltar o ex-goleiro do Flamengo e assassino
condenado Bruno Fernandes de Souza;
ontem, Gilmar Mendes acolheu o
pedido de habeas corpus impetrado
pela defesa de Eike Batista e mandou
soltar essa vergonha nacional travestida de megaempresário. Como diz um velho
ditado, “em barriga de criança e cabeça de juiz a gente não pode confiar”.
Daí se infere que a iniciativa dos parlamentares não se deu devido a um inusitado surto de altruísmo. Como naquele
ditado enjoadinho que sugere fazer
limonada com os limões que a vida dá, suas insolências acharam uma maneira
de aproveitar o inevitável para vender uma imagem de lisura, de sintonia com os
desejos da população, que, com exceção da patuleia incorrigível, não aguenta
mais tanta corrupção. Demais disso, como o alcance dessa PEC se estende aos integrantes do Judiciário ― dos ministros do STF a juízes de primeira instância, promotores,
procuradores e assemelhados, que também entra na “suruba”, para usar a
expressão do senador Romero Jucá ―,
a ideia de vendeta é nítida.
Em política, meus caros, as coisas quase nunca são o que
parecem ― aliás, vou mais além: política
e honestidade são conceitos mutuamente excludentes. Mas isso já é outra
história e fica para uma outra vez.
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