domingo, 6 de maio de 2018

SOBRE O FIM DO FORO PRIVILEGIADO DOS PARLAMENTARES



Na última quinta-feira, o STF restringiu o foro privilegiado dos deputados federais e senadores a crimes cometidos durante o mandato em decorrência dele. A despeito do que dizem alguns sabichões, foi uma decisão importante, até porque toda caminhada começa com o primeiro passo. É certo que a decisão dos ministros alcança apenas os 594 parlamentares, e não os cerca de 55 000 beneficiários do foro especial por prerrogativa de função (aí incluídos o presidente da República, os 27 governadores, 5 570 prefeitos, 15 000 magistrados, 13 100 membros do Ministério Público, 476 conselheiros de tribunais de contas estaduais e 139 embaixadores), sem mencionar que é preciso perseguir a eliminação dos outros privilégios que continuam em desacordo com os valores republicanos. Mas uma coisa de cada vez.

Foi a quinta vez que o Supremo se debruçou sobre a questão do foro ― no ano passado, a votação foi interrompida por dois pedidos de vista (primeiro por Alexandre de Moraes, depois por Dias Toffoli). Agora, a aprovação foi unânime, ainda que o plenário divergisse entre o entendimento do ministro Luis Roberto Barroso (que acabou prevalecendo) e de seus pares Alexandre de Moraes e Dias Toffoli. Do jeito que passou a valer, se um congressista não conseguir um novo mandato, o processo a que ele responde baixará para a primeira instância ― a não ser que esteja em fase final, isto é, se a instrução já tiver sido concluída, situação em que permanecerá no STF e lá será julgado.

Observação: Depois que o resultado do julgamento for publicado, cada ministro vai decidir se envia o inquérito para outra instância ou se o processo se enquadra nos critérios de crime cometido no mandato e em função do cargo. Foi o que Toffoli fez ao declinar a competência de seis ações penais e um inquérito que estavam em seu gabinete. A partir de agora, os deputados Alberto Fraga (DEM-DF), Roberto Góes (PDT-AP), Marcos Reategui (PSD-AP), Cícero Almeida (PHS-AL) e Helder Salomão (PT-ES) passam agora a responder as ações penais em outras instâncias. Outros dois casos que tramitam em sigilo ― envolvendo os deputados Takayama (PSC-PR) e Wladimir Costa (SD-BA) ― também foram remetidos pelo ministro para outras instâncias do Judiciário. Segundo informações da Folha, tramitam atualmente no Supremo 399 inquéritos e 86 ações penais, a maioria relativa a deputados federais e senadores.

O foro privilegiado foi criado no brasil monárquico para proteger a sagrada pessoa do Imperador D. Pedro I, que não era nenhum poço de virtudes, mas pairava acima da lei, podendo fazer o que bem entendesse sem estar sujeito a responsabilidade alguma. Nossa Constituição Cidadã (que registra a palavra “direito” 76 vezes, enquanto “dever” aparece apenas 4 vezes) foi promulgada depois de duas décadas de ditadura militar, e talvez por isso tenha se preocupado em conceder esse benefício para que os políticos pudessem exercer suas atividades parlamentares sem pressão ou coação. Mas os constituintes gostaram da brincadeira e foram ampliando a abrangência do foro especial para outras categorias do funcionalismo público que jamais deveriam ter sido contempladas ― daí haver 55 mil brasileiros “mais iguais que os outros” perante a Lei.

Congresso vinha debatendo uma proposta mais abrangente, que visa restringir o foro especial aos presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo. Note que isso não se deve ao elevado elevado espírito cívico dos parlamentares, mas a puro revanchismo, já que a ideia é retaliar o Judiciário suspendendo o benefício de juízes, desembargadores, ministros do Supremo e membros do Ministério Público. Mas aí veio a intervenção federal na Segurança do Rio e essa PEC (a exemplo das demais propostas de emenda à Constituição) só poderá ser votada na próxima legislatura.

De acordo com a FGV, das 404 ações penais concluídas no STF entre 2011 e março de 2016, a condenação ocorreu em menos de 0,7% dos casos, e 68% processos prescreveram ou foram repassadas para instâncias inferiores porque a autoridade deixou o cargo. Um bom exemplo é o caso de Eduardo Azeredo, ex-presidente do PSDB, ex-governador mineiro e protagonista do mensalão tucano, que foi denunciado por peculato e lavagem de dinheiro em 2007 e, em 2014, quando seu processo estava prestes a ser julgado no STF, renunciou ao mandato de deputado federal e conseguiu, assim, que a ação descesse para a primeira instância e voltasse à estaca zero. Na semana retrasada, o TJMG manteve a condenação de Azeredo (a 20 anos e 1 mês de prisão), mas ele ainda não foi preso porque tem recursos a apresentar.

Já o processo em que o senador Renan Calheiros é réu por peculato ilustra a lentidão que favorece os que têm foro privilegiado: os acontecimentos abordados pela PGR ocorreram entre 2004 e 2007, e o julgamento ainda não foi pautado. Para alguns ministros da Corte, a demora se deve às diligências na PF e/ou na PGR, outros criticam a qualidade do trabalho que chega às mãos dos ministros ― em alguns casos, o magistrado fica impossibilitado de condenar porque as provas, depois de anos ou décadas de investigação, tornam-se imprestáveis ou inconclusivas.

Observação: Uma ementa do STJ, emitida em 20 de junho de 2012, depois de repetir 11 vezes que se tratava da análise de embargos de declaração, um sobre o outro, conclui negando o último deles: “embargo de declaração no agravo regimental no recurso especial”. Não é piada, não. Tratava-se do caso de um servidor aposentado do governo de Goiás, que pretendia voltar ao trabalho na mesma administração estadual. Ao primeiro recurso, que chegou ao STJ em abril de 2008, seguiram-se 8 embargos de declaração e 3 recursos e agravos, todos negados por unanimidade nas turmas. A sucessão de chicanas só terminou em agosto de 2012, depois que os magistrados repetiram a mesma decisão 11 vezes.

É certo que a restrição do foro, se combinada com uma eventual mudança de entendimento do STF quanto ao início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância, pode ser catastrófica para a sociedade, mas uma benção para os políticos condenados ― como Lula, Dirceu, Vaccari, Palocci, Cunha, Cabral, etc. ― e para aqueles que ainda o serão. A possibilidade de recorrer em liberdade até decisão final ― ou, em prevalecendo a proposta de Toffoli, até a condenação em terceira instância (STJ) ― manterá fora da cadeia por décadas ― ou ad aeternum, dada a possibilidade de prescrição da pena ― os criminosos de colarinho branco e outros que possam bancar honorários astronômicos de criminalistas estrelados.

O efeito sobre a Lava-Jato também seria nefasto: sem a ameaça de prisão iminente, corruptos e corruptores não teriam razão para delatar; sem as delações, a força-tarefa ainda estaria caçando doleiros em postos de gasolina do Distrito Federal.

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