quarta-feira, 21 de novembro de 2018

VEÍCULOS FLEX: MELHOR USAR GASOLINA OU ÁLCOOL? (Parte 10) — AINDA SOBRE TORQUE E POTÊNCIA


QUANDO VOCÊ TEM TODAS AS RESPOSTAS, ALGUÉM VEM E MUDA AS PERGUNTAS.

O que eu publiquei sobre torque e potência no post da última quarta-feira me pareceu suficiente para dar uma ideia ao leitor do que são e o que representam os valores informados no manual do proprietário dos veículos sob essas rubricas.  Todavia, escrever sobre temas complexos numa linguagem acessível a leigos, mas que não insulte a inteligência dos iniciados, é sempre um desafio, como dá conta o comentário de um visitante assíduo aqui do Blog. Então, em atenção a ele — e a outros leitores que eventualmente ainda tenham dúvidas sobre o assunto —, resolvi esmiuçar melhor essa questão, que realmente é um tanto nebulosa.

Como eu disse na postagem anterior, levar algo de um ponto a outro é trabalho; portanto, torque é trabalho (mesmo sendo uma força com tendência a girar objetos, como eu disse anteriormente). A potência, por sua vez, tem a ver com a rapidez com que esse trabalho é realizado.  

Observação: No âmbito da mecânica automotiva, chamamos torque ao esforço de torção produzido pelo motor. Para medi-lo, acoplamos esse motor a um dinamômetro, aceleramos ao máximo e usamos um freio hidráulico (ou elétrico) para limitar as rotações a 1000, 2000, 3000, e assim por diante. A partir dos valores do torque nesse regimes, calculamos a potência multiplicando-os pelo número de rotações por minuto (rpm) em cada situação específica.

O trabalho que um Fusca 1300 e um Mustang 5.0 realizam ao subir uma ladeira é o mesmo; a diferença é que o Ford se desincumbe da tarefa em bem menos tempo, pois seu gigantesco V8 gera 466 cv de potência a 7.000 rpm e 56,7 kgfm de torque a 4.600 rpm, ao passo que o boxer de 4 cilindros do fusquinha produz 46 cv de potência a 4.600 rpm e 9,1 kgfm de torque a 2600 rpm.

O mesmo raciocínio se aplica à aceleração. Numa hipotética largada conjunta, o Mustang atingiria 100 km/h em apenas 4,3 segundos, enquanto o Fusca levaria intermináveis 31 segundos para alcançar a mesma velocidade. A título de curiosidade, a velocidade máxima do Mustang é de 250 km/h (e isso porque é limitada eletronicamente), enquanto a do Fusca é de 115 km/h (e isso com vento a favor). Daí se conclui que quem tem mais potência realiza o trabalho em menos tempo.

Fugindo um pouco à pergunta do leitor (que agora, suponho, está respondida), acho oportuno aprovetar este ensjo para complementar o que eu já disse em outras postagens desta interminável sequência, mas não neste nível de detalhes:

Nos motores aspirados, a mistura ar-combustível é sugada para o interior da câmara de explosão pela depressão resultante do movimento descendente que o pistão realiza no ciclo de admissão. Na sequência, ela é comprimida (ciclo de compressão) e inflamada pela vela de ignição (ciclo de explosão, gerando as altas pressões internas que empurram o êmbolo para baixo, fazendo o motor funcionar). Finalmente, os gazes resultantes da explosão são expulsos do interior da câmara pelo movimento ascendente do pistão (ciclo de descarga), e aí começa tudo outra vez (mais detalhes nesta postagem). É bom que isso fique bem claro, pois assim ficará mais fácil de entender o funcionamento do turbocompressor, que é o assunto da próxima postagem.

Cabe aos projetistas garantir que a potência palpável (ou utilizável) não apareça somente em regimes muito elevados de rotação. Isso até poderia funcionar nas pistas, mas inviabilizaria a condução do veículo no trânsito urbano, já que para vencer a inércia seria preciso levar o motor a um regime de giros muito elevado — o que, dentre outras coisas, reduziria drasticamente a vida útil dos componentes da embreagem. E é aí que entra o torque.

Observação: A função da embreagem é acoplar ou desacoplar dois sistemas rotativos distintos (o motor e o câmbio, no caso do automóvel), permitindo-lhes girar em conjunto, separadamente, ou em rotações diferentes. O modelo usado nos veículos equipados com câmbio manual é acionado pelo motorista através de um pedal, que leva o garfo a pressionar o rolamento de encosto contra a mola-diafragma do platô, reduzindo a pressão sobre o disco de fricção. Conforme esse pedal é liberado, dá-se o efeito inverso, ou seja, o disco volta a ser pressionado contra o volante do motor, elevando gradualmente a rotação até igualá-la à do eixo piloto. No câmbio automático, um conversor de torque faz o papel da embreagem, e um conjunto de planetárias, auxiliado por um sofisticado mecanismo de apoio, produz as relações de transmissão que são repassadas às rodas motrizes. Já as transmissões automatizadas as mesmas caixas das manuais; a diferença é que o acionamento da embreagem e troca das marchas ficam a cargo de um robô (daí esse sistema ser conhecido também como transmissão robotizada).   

Votando à vaca fria, quanto mais cedo — em termos de rotação — o torque surgir, melhor será o aproveitamento da potência produzida pelo motor. É aí que entra a “curva de torque” — tanto melhor quanto mais “plana” ela for, pois é bom que o torque esteja disponível em rotações baixas, mas também é preciso que ele continue disponível (ou mesmo cresça) à medida que o giro aumenta.

O maior desafio dos projetistas é desenvolver um motor “elástico”, que tenha potência palpável em baixas rotações e muita potência em regimes de giro mais elevados. Contribuem para isso requintes tecnológicos como o aumento do número de válvulas por cilindro, a adoção de comandos variáveis, os sistemas de sobrealimentação — seja através de uma turbina acionada pelos gases expelidos durante o ciclo de descarga, seja por um compressor acionado mecanicamente por um sistema de correia e polias, mas isso já é conversa para uma próxima vez.

É importante ter em mente que o deslocamento volumétrico do motor é apenas um dos responsáveis pelo torque e potência que ele produz. Prova disso é que há tempos os fabricantes vêm investindo no “downsizing” — ou seja, desenvolvendo motores menores, que privilegiam o consumo e reduzem a emissão de poluentes, mas que isso resulte em prejuízos palpáveis ne desempenho. Para desespero dos puristas, os enormes V8 vêm cedendo espaço aos V6, e estes a versões de 4 ou 3 cilindros, geralmente de 1000 cc, mas com performance equivalente (ou até superior). Mas isso já é outra conversa.

Dúvidas? Escreva.