quarta-feira, 17 de junho de 2020

ATÉ QUE PONTO VAI CHEGAR?


Os domingos passaram de “dia de futebol” a dia de manifestações, tanto contra quanto a favor de Bolsonaro. No último (14), o frio e da garoa esvaziaram os protestos em São Paulo. Mesmo assim, a PM contabilizou 100 apoiadores no Viaduto do Chá e cerca de 1.000 opositores na mais paulista das avenidas. E isso em meio a uma pandemia sanitária de proporções épicas, causada por um vírus contra o qual não há vacina nem fármaco de eficiência comprovada.

Na noite do sábado 13, depois que o governo do DF desmontou um acampamento de apoiadores do presidente, um grupelho — autodenominado “300 do Brasil”, embora não tenha nem 30 integrantes — lançou fogos de artifício em direção ao prédio do STF, aos brados de: “Se preparem, Supremo dos bandidos, aqui é o povo que manda. Está entendendo o recado?” A ativista Sara (Winter) Fernanda Giromini, principal porta-voz dessa choldra, foi presa pela PF na manhã da última segunda-feira .

Ulysses Guimarães — um dos principais articuladores da campanha pelas Diretas-Já — dizia que “a única coisa que mete medo em político é o povo nas ruas”. E com efeito. A pressão popular havia criado uma ruptura irreversível na base governista quando a emenda Dante de Oliveira foi arquivada, devido à pressão dos militares. Assim, o sonho dos brasileiros de voltar a votar para presidente não foi sepultado, apenas adiado por seis anos (vale lembrar que um colégio eleitoral ungiu Tancredo Neves primeiro presidente civil desde o golpe de 1964, mas o político mineiro foi hospitalizado horas antes da cerimônia de posse e morreu 38 dias e 7 cirurgias depois).

Protestos populares também foram determinantes nos impeachments de Collor, em 1992, e de Dilma, em 2016 — no caso da petista, o estopim foi um aumento de R$ 0,10 na tarifa do transporte público, em meados de 2013, com o qual a gerentona de araque nada tinha a ver. Mas há que ter em mente que  manifestações democráticas perdem adesão (e legitimidade) quando o vandalismo entra em cena e a violência assume o lugar das demandas justas. E é justamente isso o que se vê nos atos em apoio ao governo. Os manifestantes, não raro truculentos, portam faixas e cartazes defendendo o fechamento do Congresso e do STF, a volta da ditadura (com o “mito” no poder), a reedição do AI-5, e por aí vai.

O mestre de cerimônias do Circo Marambaia — um caso clássico de situs inversus (que tem os intestinos no lugar do cérebro) — tem participado dos atos subversivos, embora negue que apoie os manifestantes (talvez por viver num mundinho só dele, onde os fatos não são como são, mas como ele quer que sejam ou pensa que são). Ao atiçar seus rebentos e a choldra de miquinhos convertidos — minguada e teatral, mas fanática e violenta — contra o Legislativo e o Judiciário, o presidente força uma ruptura institucional, talvez para pavimentar o caminho para o autogolpe (tomara que eu esteja errado).

Nesse entretempo, como que para afastar o foco de suas verdadeiras intenções, Bolsonaro mantém acéfalo o ministério da Saúde, e a pilha de cadáveres produzida pelo coronavírus cresce a passos largos sob a batuta de um “ministro interino” que não é médico, farmacêutico nem enfermeiro, mas general de divisão do Exército e expert em logística. E como se não bastasse, reluta em demitir o ministro da Educação sem-educação, que deveria ter caído há muito tempo, senão por péssimo desempenho, pelas ofensas dirigidas aos ministros do STF (que vem reiterando desde a fatídica reunião ministerial de 22 de abril, quando chamou os magistrados de vagabundos e defendeu sua prisão).

Bolsonaro, sempre boquirroto e grandiloquente, não deu um pio sobre o assunto. Mas terá de extirpar o câncer antes que vire metástase (se é que já não virou). Weintraub, por seu turno, certamente politizará sua demissão, de modo a não ser lembrado somente pelo péssimo desempenho no comando da Pasta.

De novo: manifestações organizadas da sociedade civil em defesa da democracia são bem-vindas, mas o mesmo não se aplica ao estímulo à confrontação — que, além de desaconselhável, é desproporcional ao tamanho do “inimigo” do outro lado da trincheira das vias públicas. É o caso dos grupos de baderneiros comandados pelo militar da reserva Paulo Felipe e os retrocitados “300 do Brasil”, capitaneados pela “ativista” Sara Winter (PhD em terrorismo pelas melhores escolas da Ucrânia). Juntos, eles reúnem algumas dezenas de gatos-pingados, mas o que lhes falta em quantidade sobra em estridência e aporrinhação.

Esse clima de permanente confronto provoca um incomodativo déjà-vu. Na truanice protagonizada no domingo 31, Bolsonaro, admirador confesso do autoritarismo e dos torturadores, acenou a manifestantes montado em um cavalo, emulando os gestos do general Newton Cruz, que por ordem do ditador João Figueiredo cavalgou por Brasília contra as manifestações das “Diretas-já”. Está no DNA do capitão o flerte com práticas autoritárias e a necessidade de criação de um inimigo — e é aí que mora o perigo. Na eleição, o vice Hamilton Mourão aventou a ideia de um autogolpe para conter uma situação de anarquia. Isso para não falar das incontáveis vezes que os primeiros-filhos falaram em rompimento institucional.

Bolsonaro nega a intenção de uma intervenção militar no Brasil, apesar de sua constante participação nas manifestações antidemocráticas. “Como darei um golpe se sou presidente da República e chefe supremo das Forças Armadas?”, questionou o capitão em entrevista à Band News. Os generais negam o golpismo e reafirmam o compromisso com a democracia — enquanto reiteram que o golpe de 1964 salvou a democracia. Mas a cúpula do Exército cerrou fileiras com o capitão ao enxergar em movimentos de outras instituições uma tentativa de esvaziar os poderes do chefe do Executivo.

Os generais Heleno e Ramos frequentam atos golpistas; Ramos adverte ministros do STF e arroga às Forças Armadas o papel de “guardiãs da Constituição”; Heleno solta nota com a ameaça de “consequências imprevisíveis”; o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, apoia a nota de Heleno e sobrevoa manifestação golpista; o general Braga Netto atua como factótum do presidente; o general Mourão assina artigos em que chama o decano do STF de “irresponsável” e “intelectualmente desonesto”, e faz críticas pesadas ao Supremo, ao Congresso, à imprensa, à oposição — mas silencia sobre os abusos de Bolsonaro. Os generais da ativa (com exceção de Ramos) não falam, mas os relatos não tranquilizam.

Um dia depois que o ministro Luiz Fux concedeu liminar afirmando que as Forças Armadas não podem atuar como poder moderador entre os Poderes, e de Bolsonaro dizer que "as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas", militares da Força Aérea Brasileira compuseram um manifesto crítico ao ministro Celso de Mello, no qual afirmam, dentre outras coisas, que "nenhum Militar é comissionado para cumprir missão importante, se não estiver preparado para levá-la a bom termo". O texto a seguir foi publicado ontem pela Folha.

Ao Sr. José Celso de Mello Filho.

Ninguém ingressa nas Forças Armadas por apadrinhamento. Nenhum Militar galga todos os postos da carreira, porque fez uso de um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade. Nenhum Militar recorre à subjetividade, ao enunciar ao subordinado a missão que lhe cabe executar, se necessário for, com o sacrifício da própria vida. Nenhum Militar deixa de fazer do seu corpo uma trincheira em defesa da Pátria e da Bandeira. Nenhum Militar é comissionado para cumprir missão importante, se não estiver preparado para levá-la a bom termo. Nenhum Militar tergiversa, nem se omite, nem atinge o generalato e, nele, o posto mais elevado, se não merecer o reconhecimento dos seus chefes, o respeito dos seus pares e a admiração dos seus subordinados. E, principalmente, nenhum Militar, quando lhe é exigido decidir matéria relevante, o faz de tal modo que mereça ser chamado, por quem o indicou, de general de merda.

Rio de janeiro, 13 de junho de 2020.

OBSERVAÇÃO: O manifesto foi uma iniciativa de dois coronéis da Força Aérea Brasileira e recebeu a assinatura de 52 integrantes da Aeronáutica, 16 da Marinha e dez do Exército — todos da reserva. Também assinam o documento 30 civis e um oficial da PM do Rio. Entre os signatários estão 12 brigadeiros, cinco almirantes e três generais. Celso de Mello foi chamado de "juiz de merda" pelo ex-ministro da justiça Saulo Ramos, que o indicou a Sarney para preencher uma vaga no STF.

Como dizia o então deputado Jair Bolsonaro: “Quem pretende dar golpe não avisa que vai dar”.