quarta-feira, 7 de outubro de 2020

CELSO DE MELLO, LUIZ FUX E A SUPREMA TOGA-JUSTA

 


Às vésperas da derradeira sessão da qual participará antes de deixar o STF, o ministro Celso de Mello pediu que o julgamento do recurso que definirá a maneira como o Jair Bolsonaro prestará depoimento no inquérito que o investiga por interferência na Polícia Federal seja pautado para antes de sua aposentadoria. Pedido feito, pedido atendido: o ministro Luiz Fux incluiu o imbróglio bolsonariano na pauta da sessão de amanhã.

Observação: Nesta terça-feira, a derradeira participação do decano nas sessões da 2.ª Turma terminou com despedidas emocionadas, vozes embargadas e olhos rasos d'água. Considerando que o STF é tido e havido como um arquipélago de 11 ilhas, separadas umas das outras por águas permanentemente revoltas, o que se viu foi surpreendente. Sobretudo quando o presidente da Turma, misto de semideus togado, senhor de todos os destinos e dono supremo da soberba e nem sempre justa Justiça tupiniquim, declarou encerrada a sessão. Foi a primeira vez que vi um batráquio chorar.

A título de contextualização, Celso de Mello determinou que Bolsonaro depusesse presencialmente, respaldado no artigo 221 do CPP — segundo o qual tanto o presidente da República quanto o vice e os ministros de Estado direito a depor por escrito, mas desde que figurem nos processos como colaboradores, testemunhas, peritos ou vítimas (o grifo é meu). 

Aproveitando-se da licença médica de Celso de Mello, a AGU recorreu da decisão, e o ministro Marco Aurélio Mello, herdeiro natural dos processos sob a relatoria do decano — “não pelo patronímico, mas por antiguidade”, como o vice decano faz questão de frisar, suspendeu o inquérito da PF até ulterior decisão plenária (a ser tomada em julgamento virtual) e pendurou no despacho seu voto favorável ao pedido da AGU.

O regimento interno do STF dispõe que, em caso de licença do relator, cabe ao ministro imediato em antiguidade lhe fazer as vezes quando se tratar de deliberações sobre medidas urgentes". Ao retornar da licença e reassumir a relatoria do imbróglio, o decano não viu urgência que justificasse a interferência do colega e, portanto, anulou sua decisão, determinando que o julgamento se dê em sessão plenária (por videoconferência, naturalmente, já que as sessões presenciais estão suspensas devido à pandemia).  

Nas sessões plenárias, mesmo que videoconferência, existe espaço para o debate, ao passo que no plenário virtual o relator simplesmente lança no sistema a ementa, o relatório e o voto, e os demais ministros têm até cinco dias para 1) acompanhar o relator; 2) acompanhar com ressalva de entendimento; 3) divergir do relator; 4) acompanhar a divergência.

Segundo Josias de Souza, o pedido de Celso de Mello colocou seus pares numa “toga-justa”. O ministro certamente subirá no caixote para dizer que, numa República que se preze, um presidente investigado não pode receber senão o tratamento dispensado a qualquer outro brasileiro alvejado por um inquérito criminal. E seus pares terão de optar entre a sua posição e a de Marco Aurélio, autor do voto divergente. 

No Supremo, as despedidas costumam ser marcadas por elogios e rapapés. Nesta, especificamente, as mesuras serão sinceras, pois os colegas nutrem pelo decano uma admiração genuína. A eventual imposição de uma derrota ao homenageado seria incomum. Mas pior ainda seria os magistrados permitirem que o apreço pelo colega interfira na eventual formação de uma maioria favorável à concessão a Bolsonaro da prerrogativa de depor por escrito — nos moldes de que foi assegurado ao vampiro do Jaburu, em 2017, pelo ministro Luís Roberto Barroso.

Mantida o depoimento presencial, o capitão será primeiro presidente a depor presencialmente em uma investigação desde o início da "nova república", embora não seja o primeiro a ser alvo de um inquérito. Mas há diferenças importantes a pontuar.

No escândalo PC Farias, Collor respondeu a uma ação penal no Supremo por corrupção passiva, mas a denúncia foi rejeitada pelo plenário em 1994, após algumas provas terem sido consideradas obtidas por meio ilegal. Apesar de a investigação ter começado quando ainda era presidente, o caçador de marajás de araque só prestou depoimento após ter deixado o Palácio do Planalto.

O demiurgo de Garanhuns não respondeu a inquérito enquanto presidente nem tampouco foi feito réu pelo STF. Fora do cargo, porém, chegou a ser alvo de condução coercitiva. Já sua cria e pupila foi expelida do Palácio do Planalto, mas não prestou depoimento em inquéritos policiais enquanto conspurcou o cargo. Quando foi denunciada ao STF por Rodrigo Janot, ela já era ex-presidente, e como tal prestou depoimento presencial à PF.

Tanto Fachin quanto Barroso concederam ao então presidente Michel Temer a prerrogativa de depor por escrito — o primeiro no inquérito baseado na delação de executivos da JBS (“tem de manter isso, viu?”), e o segundo no chamado Inquérito dos Portos, que apurava desvios de dinheiro público envolvendo nomes do MDB. As duas denúncias apresentadas contra o vampiro do Jaburu por Rodrigo Janot não tiveram autorização da Câmara dos Deputados para seguir adiante (prefiro não abusar da paciência dos leitores nem azedar meu fígado relembrando a estratégia do egun mal despachado para se escudar das “flechadas” do PGR).

Considerando que a aposentadoria do decano guindará o vice ao posto de titular (que Marco Aurélio ocupará até junho do ano que vêm, a não ser que o imprevisto tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos), seguem umas poucas linhas sobre a trajetória do exemplo pronto e acabado de como o patrimonialismo atravessou incólume todas as tentativas de superá-lo e resiste, como entulho, no terreno das instituições republicanas, acentuando suas imperfeições e demolindo a reputação de seus agentes.

Marco Aurélio, o ministro dos "tempos estranhos", ingressou na carreira pública como procurador na Justiça do Trabalho — uma invenção de Getúlio Vargas para funcionar como elo no aparelho de poder de um tipo de populismo latino-americano conhecido como "trabalhismo". O cargo não foi obtido por concurso público, mas por nomeação patrocinada pelo pai, Plínio Affonso de Farias Mello, que até hoje é reverenciado no ambiente do sindicalismo patronal como uma espécie de benemérito da classe dos representantes comerciais. 

O prestígio de Plínio era tal que o último presidente do regime militar, João Figueiredo, manteve aberta uma vaga no TST até Marco Aurélio completar 35 anos — idade mínima para ingressar nos Tribunais Federais e no TCU —, onde Fernando Affonso Collor de Mello o encontrou e de onde o promoveu a ministro do STF.

No Supremo, o primo de Collor, que sempre foi voto vencido e notório espírito de porco, encontrou um rumo depois que Dilma, a inolvidável, nomeou Letícia, filha do ministro, desembargadora no Tribunal Regional da 3.ª Região, numa demonstração de como o nepotismo se perpetua. Desde então o campeão das causas perdidas abraçou cruzadas que atendem aos interesses petistas e de nababos da advocacia de Brasília, que cobram honorários nababescos para as calendas a condenação de sua clientela, composta majoritariamente por políticos corruptos de alto coturno.

Entre suas proezas mais notórias, Marco Aurélio, inconformado com a não inclusão na pauta de julgamentos da Corte das duas ADCs sob sua relatoria que poderiam reverter a jurisprudência sobre a prisão em segunda instância, esperou o início do recesso do Poder Judiciário, no final de 2018, para assinar uma liminar que determinava a soltura de 169 mil condenados em segunda instância que aguardavam na cadeia o julgamento de seus recursos, entre eles o criminoso Lula

O então presidente da Corte, Dias Toffoli, cassou a estapafúrdia liminar de Marco Aurélio, mas o furdunço deu azo à discussão de alternativas para o preenchimento de vagas no STF que não a indicação pelo chefe do Executivo de turno com o aval do Senado Federal após sabatina (eminentemente protocolar).

Eleição direta dos ministros, concurso público para admissão e indicação por notáveis ou mesmo associações da classe jurídica forma algumas opções suscitadas, mas, infelizmente, o assunto caiu no esquecimento. 

O que nos leva à indicação do desembargador piauiense Kássio Nunes, feita por Jair Messias Bolsonaro, o impoluto, para a poltrona do ministro Celso de Mello. Mas falaremos sobre isso numa próxima postagem.