NE SUTOR SUPRA CREPIDAM
A frase que abre esta postagem significa “NÃO VÁ O
SAPATEIRO ALÉM DAS CHINELAS” e é atribuída ao pintor grego Apeles (século
V a.C). Consta que ele havia deixado um quadro secando ao sol, quando um sapateiro que
por ali passava observou um defeito qualquer na sandália calçada pela
figura. O artista agradeceu e fez a correção sugerida, o que estimulou o sapateiro
a propor novos reparos. A frase se popularizou em latim por ter sido registrada
pelo escritor romano Valério Máximo (século I a.C) num dos
volumes de FATOS E DITOS MEMORÁVEIS.
O motivo dessa introdução — que cheira a cultura inútil — é
o debate
entre os candidatos à presidência dos EUA, que diversas emissoras
levaram ao ar na noite da última terça-feira. Apesar ter assistido a boa parte
da transmissão com tradução simultânea e revisto alguns trechos no idioma original,
não entendi patavinas.
Observação: Essa expressão, “patavinas”, surgiu por
conta da cidade de Patavium (que corresponde atualmente à cidade
italiana de Pádua), onde nasceu o famoso historiador Tito Lívio,
que era muito criticado por não empregar o Latim, mas sim o dialeto local, para
registrar suas obras. Como não entendiam o Lívio escrevia, os críticos reclamavam
da “patavinidade” do autor, daí usarmos a expressão “não entendi
patavinas” quando queremos dizer que não compreendemos algo que ouvimos ou
lemos. Mais cultura inútil, mas enfim...
Voltando ao debate, a sensação que me ficou foi a de ter assistido a um espetáculo circense de quinta categoria, onde o atual presidente — que Biden chamou de palhaço — ora debatia com seu oponente, ora com o mediador. Foram 90 minutos repletos de interrupções — levando Biden, que já havia chamado Trump também de mentiroso, a mandá-lo calar a boca. O ponto alto — ou o mais baixo, dependendo de como encaramos o troço — foi quando o candidato republicano acusou o filho do adversário de usar cocaína e de ter ganhado fortunas de uma empresa ucraniana, sugerindo irregularidades que podem envolver o próprio candidato democrata.
Segundo a Folha, debate marcou um duelo agressivo, cheio de interrupções, xingamentos e gritaria entre dois
candidatos que tentavam cada qual desconstruir o adversário e se consolidar como o nome
mais capacitado para governar os EUA. Trump manteve sua estratégia
diversionista, defendendo seu governo com informações falsas e tentando
desconcentrar Biden, que atacou a condução do republicano diante da pandemia, e
também sua política ambiental, quando fez críticas, inclusive, ao Brasil.
Maurício Moura, CEO da Ideia Big Data, disse que “uma a cada três pessoas que começaram a assistir abandonou o debate antes do final em seis estados considerados chave para a eleição (Florida, Ohio, Michigan, Wisconsin, Arizona e Pensilvânia)”, o que é incomum nesse tipo de debate, que costuma prender a atenção do expectador até o final.
A polarização política nos Estados Unidos transformou a campanha deste ano em uma espécie de disputa de torcidas organizadas. A parcela de indecisos é muito baixa — entre 7% e 10% — e formada por aqueles que menos se interessam por política e dificilmente sairão para votar no dia 3 de novembro. Até porque, a depender desse vergonhoso confronto, onde debatedores e moderador falavam ao mesmo tempo, como que querendo ganhar “no grito”, eles continuam sem candidato.
Um dos pontos desperdiçados por Biden foi o
escândalo do imposto de renda de Trump, que segundo o Times,
pagou US$ 750 em 2016 e outros US$ 750 em 2017, não pagou um centavo sequer em 10
dos quinze anos anteriores à sua eleição e ainda recebeu uma restituição de
US$ 72 milhões. Biden tentou sensibilizar a classe trabalhadora, dizendo
que Trump pagou menos impostos do que professores, mas perdeu a oportunidade de
desconstruir a imagem de empresário brilhante e super bem-sucedido, sobre a
qual o republicano se elegeu.
Na qualidade de profundo desconhecedor da política norte-americana
e de seu confuso sistema eleitoral — onde acontece de o candidato que obtém menos
votos nas urnas acabar eleito, como se viu em 2016 na disputa entre Trump
e Hillary Clinton —, acho melhor não ir além do que já disse, sob pena
de fazer como o sapateiro que se arrogou o direito de ir além das
chinelas. Mas acho que é consenso que a discussão acalorada entre os dois
postulantes à Casa Branca nada trouxe de útil, apenas reforçou a impressão de que também na mais economia do mundo a política anda uma merda.
Falando em governo de merda, voltemos ao nosso próprio
quintal, onde o ministro Celso de Mello, nos
estertores de seu decanato, retirou da pauta do plenário virtual do STF
o recurso contra a decisão que ele havia tomado anteriormente, determinando que Bolsonaro preste depoimento presencial no inquérito em que é
investigado por “suposta” interferência na Polícia Federal.
Durante a ausência do decano, nosso indômito capitão — “que nada tem a temer nem muito menos a esconder” — determinou à Advocacia Geral da União que recorresse da decisão. Bem mandado, José Levi argumentou que o STF deve conferir ao Messias que não miracula tratamento isonômico ao que dispensou ao vampiro do Jaburu em 2018.
O ministro Marco Aurélio, a quem cabe cuidar dos
processos que estão sob a relatoria de Celso de Mello durante a ausência do decano — “não
pelo patronímico Mello, mas por antiguidade”, segundo o primo de Collor, que já disse não aceitar designação a dedo, mas que, “como os tempos são estranhos,
tudo é possível” —, não só determinou o envio do recurso ao plenário
virtual como antecipou seu voto, dizendo-se favorável ao depoimento por
escrito.
Cumpre ressaltar que nas sessões plenárias, mesmo realizadas por videoconferência, como vem acontecendo por causa da Covid-19,
os decisores têm como debater o assunto sub judice quase como fariam numa
sessão presencial. No plenário virtual, cada qual vota remotamente, por
escrito, e envia o voto pela intranet do STF no prazo pré-definido
(que no caso em tela começaria amanhã e terminaria no próximo dia 9). Não há, portanto, como debater o tema.
Ainda que o regimento interno da Corte preveja que o relator seja substituído pelo togado imediato em antiguidade em caso de licença "quando se tratar de deliberação sobre medida urgente", Celso de Mello, ao retornar da licença e reassumir a relatoria do inquérito, entendeu que não havia urgência que justificasse a interferência do colega, e simplesmente anulou sua decisão.
Parafraseando Camões, “cesse tudo que a antiga musa canta, pois um poder mais alto se alevanta”. Cabe agora ao ministro Luiz Fux, atual presidente do STF, incluir o processo na pauta. Dada a natureza do assunto — considerado politicamente delicado, não apenas devido aos entendimento divergente do vice-decano em relação ao do decano, mas sobretudo por colocar o Supremo em confronto com o Palácio do Planalto —, Fux certamente consultará os colegas antes de definir a data, e não está afastada a possibilidade de o julgamento ocorrer somente depois do dia 13, quando o decano já tiver deixado o STF.
Observação: Vale relembrar que, à luz do artigo
221 do CPP — que assegura tanto ao presidente da República quanto a
ministros e ao vice-presidente a prerrogativa de depor por escrito, mas desde
que figurem nos processos como colaboradores, testemunhas, peritos ou vítimas (o
grifo é meu) —, o depoimento de Bolsonaro deve ser presencial.