Impossível fugir a essa dura realidade: a eleição presidencial americana foi indubitavelmente o assunto da semana. Biden, ao longo da apuração dos votos, pediu paciência ao povo (e ao mundo). A minha, porém, já havia se esgotado.
Desde terça-feira, 3, que não se ouviu falar de outra coisa. Até a indefectível evolução da pandemia, que os telejornais parecem se comprazer em atualizar todas as
noites, perdeu espaço para a contagem dos
votos nos estados do Arizona, Geórgia, Nevada
e Pensilvânia. E para as bravatas de Donald Trump, que se revela
(mas não surpreende) um péssimo perdedor.
Eram cerca de 2h da tarde de ontem quando finalmente foi confirmada a vitória de Biden. Pela manhã, segundo as projeções da Associated Press, faltavam pelo menos 6 votos no colégio eleitoral para o democrata alcançar o "número mágico" (270 dos 538 votos possíveis) e sagrar-se vencedor. Com a vitória projetada na Pensilvânia, Biden obteve 284 votos. Outros veículos, como o "Times", ainda não haviam declarado sua vitória no Arizona, que tem 11 delegados, mas os 20 votos eleitorais da Pensilvânia liquidaram a fatura e a apuração no Arizona perdeu o protagonismo.
Para Vilma Gryzinski, o coronavírus já foi precificado e seu custo cruel, em doenças e fatalidades, absorvido. Basta olhar qualquer grande publicação nos países onde ele ainda persiste (ou tenta rebrotar). Só com muito esforço os veículos de comunicação conseguem “empurrar” o assunto para as manchetes — noves fora, evidentemente, a expectativa em relação à vacina, ou vacinas, o público já está em outra. E os motivos principais são dois: uma espécie de ressaca emocional com uma doença que só traz más notícias e os mecanismos de proteção psicológica acionados por grandes crises.
“O homem é uma criatura que se acostuma com tudo e acho que esta é a sua melhor definição”, resumiu Dostoievski ao retratar, de forma tão genial e tão dolorosa, a teia de relações humanas num campo de trabalhos forçados na Sibéria, onde ele próprio penou durante quatro anos.
Acostumar-se às adversidades é um ato de reafirmação da vida e não um desprezo pelos mortos. Comparar uma doença com letalidade relativamente baixa à Batalha da Inglaterra seria um despautério, não fosse o fato de os combates aéreos terem sido transmitidos ao vivo pela BBC, e a cobertura — minuto a minuto, inclusive pelas redes sociais — da disseminação do coronavírus e seus efeitos deletérios ter criado uma epidemia paralela: a do medo. Um medo tão intenso que virou um desafio aos governos que entendem a catástrofe da catatonia econômica. Nesse sentido, perder a paciência com tanta notícia ruim pode ser uma coisa boa.
Voltando às eleições americanas, Franklin D. Roosevelt dizia que o salão oval [da Casa Branca] oferece a quem o ocupa um “bully pulpit”, usando o termo “bully” como sinônimo de “notável”, “excelente”, e não com o sentido de “assédio”, que se popularizou entre nós nos últimos tempos. Josias de Souza acrescenta que “de um bom presidente espera-se que aproveite a vitrine do bully pulpit (que ele traduz como “vitrine privilegiada”) para irradiar confiança e bons exemplos”. Mas não é o que faz o candidato à reeleição naquele país.
Aparentemente acometido pela síndrome do que está por vir, o doidivanas trombeteia denúncias de fraude eleitoral — sem exibir uma mísera prova que embase tais acusações — e tacha de "ilegais" os votos que aproximam seu adversário da vitória. "Vão tentar roubar a eleição da gente", declarou Trump, antes de desqualificar a votação pelo Correio, prevista em lei. "É um sistema que torna as pessoas corruptas."
“O poder corrompe e o poder absoluto corrompe
absolutamente”, ensinou o historiador britânico Lord Acton, para
quem “a liberdade não é um meio para um fim político, mas o mais elevado fim
político”. Abraham Lincoln, por seu turno dizia que “pode-se
enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas
não se pode enganar a todos por todo o tempo”.
Os discursos de Trump exsudam derrota por todos os
poros. Menos pelo que o lunático verbaliza expressamente e e mais pelo que fica implícito nas entrelinhas, isto é, que a reeleição está sendo roubada, que o sistema eleitoral da superpotência que ele preside há
quatro anos está eivado de corrupção. Na prática, o ídolo de Bolsonaro
nivela seu país a uma republiqueta do porte da Venezuela: ou as
instituições reagem, ou Juan Guaidó acabará se autoproclamando
presidente paralelo do país.
Com a vitória de Biden, começam dois novos problemas. Um deles vai durar dois meses e meio. O outro, quatro anos. A posse do presidente dos Estados Unidos ocorre em 20 de janeiro, e até lá Trump dá as cartas. Na transição de um governo para o outro, o presidente derrotado é chamado de “lame duck” (pato manco, que é como os americanos se referem a políticos que chegam ao final do mandato desgastados a ponto de os garçons palacianos demonstrarem seu desprezo servindo-lhes o café frio).
Trump se parece mais com um elefante ferido, solto no salão oval. Abater o paquiderme não é fácil, mas mais difícil é remover o corpo. Sobretudo quando o bicho ainda respira — e espalha mentiras criminosas.
Vencida a fase das batalhas judicial e política, estreará a
administração de quatro anos de Biden. Tomado pelo estilo, o
personagem é o avesso de Trump. Mas a agenda de problemas e as obsessões
do país serão as mesmas: a pandemia, a crise econômica, a encrenca
da imigração, a guerra comercial com a China, a pinimba com a Venezuela,
as pendências com o Irã...
Os Estados Unidos precisam civilizar a si mesmos. Uma
parte do país parece considerar que o processo civilizatório passa pela
retirada de Trump do poder, mas a ação de despejo vem a conta-gotas, expondo
a decomposição de uma democracia.