quarta-feira, 4 de novembro de 2020

JESUS CRISTO, OLHAI PARA ISTO!

 


As eleições municipais estão aí. Há mais de três semanas que o medonho cast de feira de horrores travestido de postulantes à prefeitura e à Câmara Municipal de 5.570 municípios faz nosso ouvido de penico no horário eleitoral gratuito — uma excrescência implementada pela Lei nº 9.504/1997, artigo 47, caput, e artigo 51.

Esse Circo Marambaia custa bilhões de reais — pagos pelos contribuintes, naturalmente, seja através da sem-vergonhice que atende por “fundo eleitoral” (não confundir com o fundo partidário, que existe desde 1965 e serve para bancar as atividades corriqueiras dos partidos), seja arcando com a “gratuidade” da propaganda política no rádio e na TV mediante a isenção fiscal concedida às emissoras em troca do espaço cedido aos políticos durante a campanha eleitoral (vale lembrar que o caixa do governo é dinheiro do povo, porque o governo não gera os recursos que administra).

No auge da ditadura militar, Pelé, então no auge da fama, proferiu a seguinte pérola de sabedoria: "o povo brasileiro ainda não está em condições de votar por falta de prática, por falta de educação e ainda mais porque se vota em geral mais por amizade nos candidatos." Choveram críticas, mas tempo provou que o eterno “Rei do Futebol” estava coberto de razão.

Dedo podre e cabeça oca dos eleitores, somados à péssima qualidade dos políticos — que se elegem para roubar e roubam para se reeleger —, produziram, desde o final da ditadura, uma dose cavalar (5 anos) da incompetência de Sarney; três quartos de dose da safadeza de Collor; um quarto da ingenuidade de Itamar; a matreirice de FHC em dose dupla; a canalhice de Lula em dose tripla e meia; e meia dose da vigarice do Vampiro do Jaburu (não, não me esqueci “dela”, se não a mencionei, foi porque encontrei uma maneira publicável de reverenciá-la).

Deve-se também a essa deplorável conjunção de vicissitudes a eleição do atual morubixaba da aldeia. Em 2018, depois que a récua de muares munidos de título eleitoral limou da disputa as poucas alternativas que poderíamos ter testado (situações desesperadores exigem medidas desesperadas), só nos restou apoiar vocês sabem quem para evitar a volta de vocês também sabem ao Palácio do Planalto. E deu no que deu.

Após rechear a Esplanada dos Ministérios com sectários do astrólogo-ideólogo Olavo de Carvalho, o dublê de militar expelido da corporação e deputado medíocre por 7 mandatos — que “não nasceu para ser presidente, mas sim para ser militar”, segundo o próprio — manteve um pé no palanque (com vistas à reeleição em 2022) e outro no pântano das articulações espúrias, com o fito de blindar-se a si e aos seus de investigações na Justiça Criminal. De passagem, mas com o mesmíssimo propósito, loteou cargos-chave na PGR e nas Cortes Superiores entre esbirros, taifeiros e lambe-botas

O capitão-cloroquina da caverna sem luz tornou-se um vulto, uma pálida sombra do candidato que se apresentava pronto e disposto a comandar uma implacável cruzada contra a corrução e as maracutaias do que chamava de "velha política" — mais uma bandeira de campanha que se junta ao sem-número de outras que sua excelência enrolou e enfiou em local incerto e não sabido quando subiu a rampa do Palácio.

No melhor estilo “Vampiro do Jaburu”, nosso herói se amancebou com os ímprobos parlamentares do Centrão — marafonas do Congresso que vendem seus favores a quem se dispuser a pagar, sem se preocupar com ideologia, lisura e que tais —, a pretexto de “garantir a governabilidade”, mas de olho nos 170 votos de que precisa para barrar na Câmara um dos mais de 50 pedidos de impeachment que acumulam pó sobre a mesa do deputado Rodrigo Maia, ou um processo no STF por crimes de responsabilidade.

Voltando às eleições municipais, depois de receber apoio expresso de Bolsonaro, o candidato a prefeito de São Paulo Celso Russomano, do Republicanos, despencou e perdeu a liderança para o tucano Bruno Covas, que disputa a reeleição. Já o petista Jilmar Tatto, mesmo com o apoio do criminoso de Garanhuns, registra míseros 4% das intenções de voto e está na quinta colocação, segundo pesquisa do Datafolha realizada no final de outubro. Diante desse resultado, setores da esquerda e até estrelas petistas passaram a defender a ideia de que Tatto desista de concorrer e o partido apoie Guilherme Boulos, do PSOL, que aparece em terceiro lugar, com 14%. Se a desistência for consumada, a quadrilha que já elegeu três prefeitos em São Paulo, trocará o antigo sonho de hegemonia pela pragmática posição de satélite. Sinal dos tempos.

No Rio de Janeiro, o risco de o candidato apoiado por Bolsonaro não chegar ao segundo turno é ainda maior. Também filiado ao Republicanos, o prefeito papa-dízimo Marcelo Crivella — que reza cegamente pela bíblia bolsonarista numa tentativa de deslanchar — está empatado tecnicamente com Martha Rocha (PDT) e Benedita da Silva (PT), devido, entre outros motivos, à rejeição estratosférica que lhe serve de âncora. O líder, com folga, é o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM).

Falando no Rio: 

O que acontece no Rio de Janeiro frequenta o terreno do inacreditável, senta praça no campo do inaceitável e disso dão conta os fatos: seis governadores acusados de corrupção, um deles na cadeia condenado a quase 300 anos de prisão; o atual sob risco de impeachment tendo sido afastado do cargo no âmbito de investigação que envolve o vice e o presidente da Assembleia Legislativa; inclui a contaminação das instâncias administrativas e políticas pelo crime organizado em milícias/narcotráfico; e mostra um quadro de finanças e serviços públicos deteriorados.

Acrescente-se à tragédia a inventividade malsã de um prefeito que achou por bem organizar algo nunca visto: uma gangue de brutamontes para, em nome dele, intimidar cidadãos na porta de hospitais a fim de impedi-los de relatar à imprensa as deficiências (para dizer o mínimo) de que são vítimas duplamente: na falta de atendimento adequado à saúde e na ausência de voz ativa junto ao poder público.

Não é pouco nem tampouco a população do estado governado a partir da cidade que por natureza segue maravilhosa haveria de querer mais. Sim, a culpa é dos governantes que sucessivamente integram e se entregam a uma rotina de ilicitudes, inépcia, conivência e indiferença ao bem-estar coletivo. Mas a responsabilidade é também da população.

Não só daquela composta de eleitores, cujos equívocos guardam semelhança com inúmeros cometidos Brasil afora. Regional e nacionalmente falando. O pecado original aqui é o da complacência alimentada pelo mito de que cariocas somos bacanas, dados a uma risonha malandragem, vocacionados a estreitar laços de amizade com a transgressão.

Em termos de generalização a ideia é falsa, embora contenha uma meia verdade lamentavelmente forte o bastante para nos trazer até esse poço em que nos encontramos encalacrados sem ainda enxergar o fundo. O problema não se limita ao voto, mas se estende à maneira como governantes e governados lidam com a cidade. Falemos dela, pois é a parte mais visível da questão e para o restante do estado serve de modelo.

Houve um tempo, e foi longo porque um buraco desse tamanho não se cava do dia para a noite, em que o carioca achava normal a convivência com bicheiros tratados na imprensa como celebridades, festejados publicamente por políticos sob a indiferença geral sobre a real natureza da atividade. Longe de inocente, era o cerne da organização dos criminosos.

Houve um tempo em que o carioca bem-vestido, alimentado e estudado da Zona Sul tratava chefões de tráfico como ídolos, aplaudia fugas de presídios e não via nada de anormal na participação deles (por interpostas pessoas) em campanhas eleitorais.

Houve um tempo em que governantes consideravam ofensa pessoal a denúncia de que havia territórios dominados pelo crime em formação acelerada nas favelas que se expandiam à revelia da atuação do estado. Quem, transitando do Leblon em direção a São Conrado, não via a expansão espantosa dos morros do Vidigal e da Rocinha? Todos víamos, mas fazíamos de conta que não enxergávamos o significado daquilo e suas subjacentes consequências. Governados motivados por uma visão equivocadamente romântica da coisa. Governantes por uma perspectiva propositadamente conveniente sob a óptica eleitoral.

Houve um tempo, e não faz muito, em que um tipo como Sérgio Cabral era abraçado pela elite bem-pensante como ícone da modernidade e expressão da salvação da lavoura. Viu-se depois o que havia por trás da pujança marqueteira em causa própria.

Houve todo esse tempo em que a podridão se acelerou e se instalou, mas já é tempo de esse tempo passar. A despeito de todas as homenagens a ser prestadas ao realismo, há razões para fazer concessão ao otimismo.

A rapidez com que a Câmara Municipal, o Ministério Público e a Polícia Civil reagiram às investidas da gang de Marcelo Crivella é uma delas. Outra diz respeito às cobranças feitas aos referidos governadores sobre as quais estão sendo obrigados a prestar contas. Cada vez com velocidade maior. A maioria foi pega depois do fim dos mandatos. Dois mais recentes (Luiz Fernando Pezão e Wilson Witzel), chamados “aos costumes” em pleno exercício do cargo.

E assim vai ganhando tração o bom combate cujo efeito é a redução da margem de manobra da turma da pilantragem. Cabe ao eleitor não mais lhe prestar reverência a fim de enxergarmos a luz no fim do túnel que, queira o Redentor, ainda vai desembocar na retomada dessa maravilha de cenário que é o meu, o nosso, Rio (*).

(*) Texto de Dora Kramer publicado em VEJA #2703