quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

INTERFERÊNCIA? EU?

 


A substituição de Castello Branco por Silva e Luna na presidência da Petrobras (que ainda precisa ser chancelada pelo conselho de administração) não foi a primeira intromissão indevida de Bolsonaro. Ao longo de sua desditosa gestão, o capitão reafirmou ad nauseam sua autoridade com frases como "quem manda sou eu", "minha caneta funciona" e “não sou um presidente banana”, e interferiu a mais não poder em órgãos e outras áreas ligadas ao governo. Só para relembrar: 

- Em 2019, Bolsonaro mandou a Petrobras romper contratos com o escritório de advocacia do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, seu desafeto, cujo pai desapareceu durante a ditadura militar.

- Ainda em 2019, Bolsonaro avançou sobre decisões internas da PF ao antecipar a substituição do então superintendente do órgão no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi. A PF divulgou que Saadi seria substituído por Carlos Henrique Oliveira, mas Bolsonaro disse que havia acertado previamente que o cargo seria ocupado pelo superintendente da PF do Amazonas, Alexandre Silva Saraiva. Em setembro do mesmo ano, indicou o substituto de Raquel Dodge sem levar em conta a lista tríplice do MPF, comprometendo a independência do Ministério Público com a nomeação de um PGR que, por gratidão ou por ambicionar uma vaga no STF, tornou-se um pau mandado do chefe do Executivo. 

- Em 27 de abril de 2020, cinco dias depois da fatídica reunião de Bolsonaro com seu ministério e três depois de o ex-juiz Sergio Moro desembarcar do governo, a PGR abriu (muito a contragosto) um inquérito para investigar se o presidente violou a autonomia da PF. A investigação está em curso, falta o STF decidir se Bolsonaro vai depor presencialmente ou por escrito.

- Bolsonaro fez campanha para Arthur Lira na disputa com Baleia Rossi pela presidência da Câmara. "Vamos, se Deus quiser, participar, influir na presidência da Câmara, com estes parlamentares, de modo que possamos ter um relacionamento pacífico e produtivo para o nosso Brasil.", disse ele, e, para enfunar as velas da campanha do deputado, prometeu cargos a congressistas e acenou com a liberação de recursos de emendas parlamentares e até a recriação de ministérios para acomodar indicados do Centrão.

- Ao tomar conhecimento do anúncio de um plano de demissão voluntária e do encerramento de 361 unidades do Banco do Brasil, Bolsonaro pediu a cabeça do presidente do órgão, André Brandão, mas foi demovido pelo ministro Paulo Guedes e pelo presidente do Banco Central. A medida de reestruturação que irritou o capitão tinha o apoio de Guedes e de outros membros da equipe econômica. Brandão permanece no cargo e disse que houve “um problema de comunicação”.

- Em outro episódio envolvendo o BB, Bolsonaro mandou tirar do ar uma campanha publicitária do banco, dirigida ao público jovem, com atores que representavam a diversidade racial e sexual, além de ordenar o afastamento do diretor de marketing da instituição, responsável pela aprovação das propagandas. Devido ao ocorrido, o presidente chegou mesmo dizer que empresas estatais deveriam submeter previamente à avaliação da Secom campanhas de natureza mercadológica, mas a medida contraria a Lei das Estatais, e ele acabou recuando.

- Em fevereiro de 2020, Bolsonaro anunciou ter "implodido" o Inmetro com a demissão de integrantes da diretoria e a troca do presidente e do órgão por um militar. As exonerações na autarquia federal, vinculada ao Ministério da Economia, foram decididas porque o capitão estava insatisfeito com mudanças que envolveriam tacógrafos e, supostamente, provocaram reclamações de motoristas e taxistas.

- Em diferentes momentos, Bolsonaro requisitou a AGU para tarefas que podem ser consideradas uma extrapolação do escopo institucional do órgão. Entre outras está a declaração feita neste mês, de que acionou a AGU para tomar providências sobre a reclamação de que seguidores não estariam conseguindo postar fotos em sua página oficial no Facebook. O jornal "Folha de S.Paulo" revelou que o recurso de envio de fotos por comentários estava desativado no perfil do capitão na rede social.

- Bolsonaro também usou a AGU para entrar com uma ação no STF contra a decisão do ministro Alexandre de Moraes de suspender contas de redes sociais de apoiadores do governo investigados em inquérito da corte. Em 2020, ele desautorizou a AGU no episódio da posse do delegado Alexandre Ramagem no comando da Polícia Federal, barrada por Moraes, e mandou o órgão recorrer da decisão, mesmo depois de José Levy divulgar uma nota informando que não contestaria o ato do STF. "Quem manda sou eu, e eu quero o Ramagem lá." O recurso foi impetrado e devidamente rejeitado pelo ministro.

- Bolsonaro mobilizou o Ministério da Justiça para impetrar um habeas corpus em favor do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, intimado pelo STF para explicar ataques feitos à Corte. A petição, assinada por André Mendonça, foi considerada algo insólito, já que a tarefa, em tese, caberia à AGU ou a um advogado pessoal. Membros do governo disseram que enviar um documento com a assinatura de Mendonça foi uma maneira de dar um caráter político, e não técnico, à manifestação. E num momento em que o Executivo estava em atrito com o Judiciário.

- Ainda na gestão do ex-juiz Sergio Moro na pasta, um dos primeiros focos de tensão do então ministro com o presidente da República se deu em torno da nomeação da especialista em segurança pública Ilona Szabó como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em 2019. Moro teve que recuar da escolha de Ilona após campanha de bolsonaristas nas redes sociais. Os apoiadores lembraram que, além de divergir de Bolsonaro em temas como armamento e política de drogas, ela havia se posicionado contra o então candidato na campanha eleitoral de 2018. Bolsonaro confirmou publicamente, em duas ocasiões, ter pressionado Moro pela suspensão da nomeação, afirmando que Ilona possui posicionamentos incompatíveis com o governo — e que "não foi fácil" conseguir a saída dela devido à resistência do então ministro (que declarou em depoimento à PF que a revogação do convite foi pedida por Bolsonaro e que ele relutou em aceitar a ordem, mas teve que ceder).

- Devido à divulgação dos dados referentes ao aumento do desmatamento na Amazônia, Bolsonaro ordenou ao ministro Marcos Pontes a exoneração de Ricardo Galvão da diretoria do Inpe. "Eu não peço, certas coisas eu mando", afirmou sua alteza, que queria que as informações fossem discutidas previamente com ele antes de ser tornadas públicas.

Os primeiros sinais de interferência do Planalto na Receita Federal, sobretudo na unidade do Rio de Janeiro, começaram no primeiro ano do governo, em 2019. As pressões se referem principalmente à troca de servidores em postos de comando do órgão. 

Em meio a apurações que atingem autoridades e também familiares e pessoas próximas a Bolsonaro, um subsecretário-geral do posto fluminense chegou a ser substituído pelo governo, por se posicionar de forma contrária às intervenções. Questionado na época sobre as ingerências na Receita e na PF, o presidente afirmou: "Está interferindo? Ora, eu fui [eleito] presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidência, tô fora".

Em fevereiro de 2019 — relembra a colunista do UOL Taís Oyama —, Paulo Guedes anunciou a morte da “velha política” "As estatais não vão mais alimentar uma forma equivocada de fazer política, esse excesso de gasto do governo que corrompeu a democracia e travou o crescimento da economia". Mas até agora o supeministro reabixado a ministro quese demissionário não deu um pio sobre o manifesto desejo de seu chefe de "dar um gás na popularidade" baixando artificalmente a conta de luz, à custa do uso de um fundo setorial e tributos federais.

Em abril daquele ano, tentando consertar uma "gafe" de presidente em início de mandato, o então porta-voz-general Otávio do Rêgo Barros disse aos jornalistas: "Uma frase que o nosso presidente disse logo no início da reunião: 'Eu não quero e não tenho direito de intervir na Petrobras'".

Pouco antes, ao saber que a petrolífera havia anunciado o aumento do preço do diesel, Bolsonaro ordenou o cancelamento. A divulgação dessa ingerência causou um princípio de incêndio no mercado — as ações da Petrobras despencaram 7,5%. Guedes se apressou a bancar o bombeiro e o general-porta-voz garantiu que o presidente havia entendido as explicações do ministro e não iria mais intervir na estatal. Detalhe: o interlocutor no telefonema em que o capitão reclamou que a Petrobras estava "jogando diesel" no seu chope era Paulo Castello Branco, penabundado dias atrás, depois do anúncio de mais um aumento no preço dos combustíveis.

Em setembro do ano passado, falando sobre o auxílio emergencial em sua live semanal, also sprach Zarathustra, digo, Bolsonaro: "Quando foi criado era para três meses. Passamos para cinco. Alguns querem para mais quatro. Impossível. Quebra o Brasil, perdemos a confiança". Bastou sua popularidade despencar para levar com ela a preocupação do grande estadista com o risco de “quebrar o Brasil”.

Para um líder populista, há sempre uma solução simples para um problema complexo. Para reduzir a inflação, congela-se o preço dos alimentos. Para acabar com a escassez de carne, manda-se a Polícia Federal caçar bois no pasto. Para baixar o preço da gasolina e da conta de luz, demite-se o presidente da Petrobras e arromba-se um pouquinho mais os cofres públicos.

O populismo tende a vicejar nas crises porque se baseia na ideia de um permanente confronto entre "o povo e as elites". Assim, toda vez que o negócio aperta para o lado do governante populista (o "protetor do povo"), os culpados já estão nominados. São, claro, "as elites", cuja cara pode mudar dependendo da situação: ora é o Congresso, ora o Supremo, ora a imprensa. Agora parece ser "o pessoal do lucro" que "não tem coração".

O ano passado marcou o oitavo ano consecutivo que estrangeiros retiraram investimentos do Brasil (em 2020 foram 51 bilhões de dólares líquidos que fugiram pela janela), o que é bem fácil de entender. Um investidor estrangeiro, ao constatar que seu dinheiro está num país governado por um presidente impulsivo, que acredita em cloroquina como cura da Covid e não tem pudor em interferir na gestão de empresas autônomas, muda seu dinheiro de lugar e pronto.

Para os brasileiros que aqui ficam a coisa é mais complicada. Se não é possível mais confiar no investimento estrangeiro para facilitar a retomada do crescimento e do emprego, tampouco se pode contar para isso com a possibilidade de investimento público ou do setor privado, um inexistente e o outro, asfixiado.

Nunca houve amor verdadeiro entre o nacionalista-populista Jair Bolsonaro e o liberal Paulo Guedes — mas, a essa altura, isso é o de menos. Como um casamento de conveniência, esse pode até sobreviver. Quem está arriscado perecer é o Brasil.

Com Thais Oyama