A substituição de Castello Branco por Silva e Luna na presidência da Petrobras (que ainda precisa ser chancelada pelo conselho de administração) não foi a primeira intromissão indevida de Bolsonaro. Ao longo de sua desditosa gestão, o capitão reafirmou ad nauseam sua autoridade com frases como "quem manda sou eu", "minha caneta funciona" e “não sou um presidente banana”, e interferiu a mais não poder em órgãos e outras áreas ligadas ao governo. Só para relembrar:
- Em 2019, Bolsonaro mandou a Petrobras romper contratos com o escritório de advocacia do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, seu desafeto, cujo pai desapareceu durante a ditadura militar.
- Ainda em 2019, Bolsonaro avançou sobre decisões internas da PF ao antecipar a substituição do então superintendente do órgão no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi. A PF divulgou que Saadi seria substituído por Carlos Henrique Oliveira, mas Bolsonaro disse que havia acertado previamente que o cargo seria ocupado pelo superintendente da PF do Amazonas, Alexandre Silva Saraiva. Em setembro do mesmo ano, indicou o substituto de Raquel Dodge sem levar em conta a lista tríplice do MPF, comprometendo a independência do Ministério Público com a nomeação de um PGR que, por gratidão ou por ambicionar uma vaga no STF, tornou-se um pau mandado do chefe do Executivo.
- Em 27 de abril de 2020, cinco dias depois da fatídica reunião de Bolsonaro com seu ministério e três depois de o ex-juiz Sergio Moro desembarcar do governo, a PGR abriu (muito a contragosto) um inquérito para investigar se o presidente violou a autonomia da PF. A investigação está em curso, falta o STF decidir se Bolsonaro vai depor presencialmente ou por escrito.
- Bolsonaro fez campanha para Arthur Lira na disputa com Baleia Rossi pela presidência da Câmara. "Vamos, se Deus quiser, participar, influir na presidência da Câmara, com estes parlamentares, de modo que possamos ter um relacionamento pacífico e produtivo para o nosso Brasil.", disse ele, e, para enfunar as velas da campanha do deputado, prometeu cargos a congressistas e acenou com a liberação de recursos de emendas parlamentares e até a recriação de ministérios para acomodar indicados do Centrão.
- Ao tomar conhecimento do anúncio de
um plano de demissão voluntária e do encerramento de 361 unidades do Banco do
Brasil, Bolsonaro pediu a cabeça do presidente do órgão, André Brandão, mas foi demovido pelo ministro Paulo Guedes e pelo presidente do Banco Central. A medida de
reestruturação que irritou o capitão tinha o apoio de Guedes e de outros membros da equipe econômica. Brandão permanece no cargo e disse que
houve “um problema de comunicação”.
- Em outro episódio
envolvendo o BB, Bolsonaro mandou tirar do ar uma
campanha publicitária do banco, dirigida ao público jovem, com atores que
representavam a diversidade racial e sexual, além de ordenar o afastamento do
diretor de marketing da instituição, responsável pela aprovação das propagandas. Devido ao
ocorrido, o presidente chegou mesmo dizer que empresas estatais
deveriam submeter previamente à avaliação da Secom campanhas de natureza mercadológica, mas a medida contraria
a Lei das Estatais, e ele acabou
recuando.
- Em fevereiro de
2020, Bolsonaro anunciou ter
"implodido" o Inmetro com
a demissão de integrantes da diretoria e a troca do presidente e do órgão por um militar. As exonerações na autarquia federal, vinculada ao Ministério da
Economia, foram decididas porque o capitão estava insatisfeito com mudanças que
envolveriam tacógrafos e, supostamente, provocaram reclamações de motoristas e
taxistas.
- Em diferentes
momentos, Bolsonaro requisitou a AGU para tarefas que podem ser
consideradas uma extrapolação do escopo institucional do órgão. Entre outras
está a declaração feita neste mês, de que acionou
a AGU para tomar providências sobre a reclamação de que seguidores não estariam
conseguindo postar fotos em sua página oficial no Facebook. O jornal "Folha de S.Paulo" revelou que o recurso
de envio de fotos por comentários estava desativado no perfil do capitão na
rede social.
- Bolsonaro também usou a AGU para
entrar com uma ação no STF contra a
decisão do ministro Alexandre de Moraes
de suspender contas de redes sociais de apoiadores do governo investigados em
inquérito da corte. Em 2020, ele desautorizou a AGU no episódio da posse do delegado Alexandre Ramagem no comando da Polícia Federal, barrada por Moraes,
e mandou o órgão recorrer da decisão, mesmo depois de José Levy divulgar uma nota informando que não contestaria o ato do
STF. "Quem manda sou eu, e eu quero o Ramagem lá." O recurso
foi impetrado e devidamente rejeitado pelo ministro.
- Bolsonaro mobilizou o Ministério da Justiça para impetrar um habeas corpus
em favor do ex-ministro da Educação Abraham
Weintraub, intimado pelo STF
para explicar ataques feitos à Corte. A petição, assinada por André Mendonça, foi considerada algo
insólito, já que a tarefa, em tese, caberia à AGU ou a um advogado pessoal. Membros do governo disseram que
enviar um documento com a assinatura de Mendonça foi uma maneira de dar um
caráter político, e não técnico, à manifestação. E num momento em que o
Executivo estava em atrito com o Judiciário.
- Ainda na gestão do
ex-juiz Sergio Moro na pasta, um dos
primeiros focos de tensão do então ministro com o presidente da República se
deu em torno da nomeação da especialista em segurança pública Ilona Szabó como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, em 2019. Moro
teve que recuar da escolha de Ilona
após campanha de bolsonaristas nas redes sociais. Os apoiadores lembraram que, além de divergir de Bolsonaro
em temas como armamento e política de drogas, ela havia se posicionado contra o
então candidato na campanha eleitoral de 2018. Bolsonaro confirmou
publicamente, em duas ocasiões, ter pressionado Moro pela suspensão da nomeação, afirmando que Ilona possui posicionamentos incompatíveis com o governo — e que
"não foi fácil" conseguir
a saída dela devido à resistência do então ministro (que declarou em depoimento
à PF que a revogação do convite foi
pedida por Bolsonaro e que ele
relutou em aceitar a ordem, mas teve que ceder).
- Devido à divulgação dos dados referentes ao aumento do desmatamento na Amazônia, Bolsonaro ordenou ao ministro Marcos Pontes a exoneração de Ricardo Galvão da diretoria do Inpe. "Eu não peço, certas coisas eu mando", afirmou sua alteza, que queria que as informações fossem discutidas previamente com ele antes de ser tornadas públicas.
Os primeiros sinais de interferência do Planalto na Receita Federal, sobretudo na unidade do Rio de Janeiro, começaram no primeiro ano do governo, em 2019. As pressões se referem principalmente à troca de servidores em postos de comando do órgão.
Em meio a apurações que atingem autoridades e
também familiares e pessoas próximas a Bolsonaro,
um subsecretário-geral do posto fluminense chegou a ser substituído pelo
governo, por se posicionar de forma contrária às intervenções. Questionado na
época sobre as ingerências na Receita
e na PF, o presidente afirmou:
"Está interferindo? Ora, eu fui
[eleito] presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para
ser um banana ou um poste dentro da Presidência, tô fora".
Em fevereiro de 2019 — relembra a colunista do UOL Taís Oyama —, Paulo Guedes anunciou a morte da “velha política” "As estatais não vão mais alimentar uma forma equivocada de fazer política, esse excesso de gasto do governo que corrompeu a democracia e travou o crescimento da economia". Mas até agora o supeministro reabixado a ministro quese demissionário não deu um pio sobre o manifesto desejo de seu chefe de "dar um gás na popularidade" baixando artificalmente a conta de luz, à custa do uso de um fundo setorial e tributos federais.
Em abril daquele ano,
tentando consertar uma "gafe" de presidente em início de mandato, o
então porta-voz-general Otávio do Rêgo
Barros disse aos jornalistas: "Uma frase que o nosso presidente disse
logo no início da reunião: 'Eu não quero e não tenho direito de intervir na
Petrobras'".
Pouco antes, ao saber
que a petrolífera havia anunciado o aumento do preço do diesel, Bolsonaro ordenou o cancelamento. A
divulgação dessa ingerência causou um princípio de incêndio no mercado — as
ações da Petrobras despencaram 7,5%.
Guedes se apressou a bancar o
bombeiro e o general-porta-voz garantiu que o presidente havia entendido as explicações
do ministro e não iria mais intervir na estatal. Detalhe: o interlocutor no
telefonema em que o capitão reclamou que a Petrobras
estava "jogando diesel" no seu chope era Paulo Castello Branco, penabundado
dias atrás, depois do anúncio de mais um aumento no preço dos combustíveis.
Em setembro do ano
passado, falando sobre o auxílio emergencial em sua live semanal, also sprach Zarathustra, digo, Bolsonaro:
"Quando foi criado era para três
meses. Passamos para cinco. Alguns querem para mais quatro. Impossível. Quebra
o Brasil, perdemos a confiança". Bastou sua popularidade despencar
para levar com ela a preocupação do grande estadista com o risco de “quebrar o
Brasil”.
Para um líder
populista, há sempre uma solução simples para um problema complexo. Para
reduzir a inflação, congela-se o preço dos alimentos. Para acabar com a
escassez de carne, manda-se a Polícia Federal caçar bois no pasto. Para baixar
o preço da gasolina e da conta de luz, demite-se o presidente da Petrobras e
arromba-se um pouquinho mais os cofres públicos.
O populismo tende a
vicejar nas crises porque se baseia na ideia de um permanente confronto entre
"o povo e as elites". Assim, toda vez que o negócio aperta para o
lado do governante populista (o "protetor do povo"), os culpados já
estão nominados. São, claro, "as elites", cuja cara pode mudar
dependendo da situação: ora é o Congresso, ora o Supremo, ora a imprensa. Agora
parece ser "o pessoal do lucro" que "não tem coração".
O ano passado marcou
o oitavo ano consecutivo que estrangeiros retiraram investimentos do Brasil (em
2020 foram 51 bilhões de dólares líquidos que fugiram pela janela), o que é bem
fácil de entender. Um investidor estrangeiro, ao constatar que seu dinheiro
está num país governado por um presidente impulsivo, que acredita em cloroquina
como cura da Covid e não tem pudor em interferir na gestão de empresas autônomas,
muda seu dinheiro de lugar e pronto.
Para os brasileiros
que aqui ficam a coisa é mais complicada. Se não é possível mais confiar no
investimento estrangeiro para facilitar a retomada do crescimento e do emprego,
tampouco se pode contar para isso com a possibilidade de investimento público
ou do setor privado, um inexistente e o outro, asfixiado.
Nunca houve amor
verdadeiro entre o nacionalista-populista Jair
Bolsonaro e o liberal Paulo Guedes
— mas, a essa altura, isso é o de menos. Como um casamento de conveniência,
esse pode até sobreviver. Quem está arriscado perecer é o Brasil.
Com Thais Oyama