A polarização político-ideológica transformou a eleição presidencial de 2018 num plebiscito em que o esclarecidíssimo eleitorado tupiniquim baniu o lulopetismo corrupto mediante a unção do bolsonarismo boçal. Como não há nada tão ruim que não possa piorar, escorraçar o morubixaba de turno no pleito do ano que vem pode restabelecer o status quo ante, visto que no último dia 8 o ministro Fachin lavou a ficha do ex-presidiário de Curitiba.
Caso a decisão monocrática do magistrado seja chancelada pelo plenário (o julgamento está pautado para o próximo dia 14), Lula poderá concorrer novamente à presidência. Embora o bolsonarismo e o lulopetismo se retroalimentem, Bolsonaro esperava disputar com Haddad ou outro “poste” igualmente patético que o molusco abjeto convertesse em bonifrate. Seja como for, tudo indica que teremos (mais uma vez) de apoiar quem não queremos para evitar barrar quem queremos menos ainda.
Em 2018, unimos forças com os bolsomínions para eleger um dublê de mau militar e parlamentar medíocre que, em 15 anos de quartel e 28 de deputância, foi uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, e uma vez eleito e empossado, fez como os nazistas, que usaram da Constituição de Weimar para chegar ao poder e, mais adiante, destruir seus postulados.
Se os arroubos institucionais desse inimigo visceral das liberdades democráticas tivessem sido levados a sério por seus pares, talvez o então deputado tivesse sido deposto e/ou perdido seus direitos políticos. Mas o diabo mora nos detalhes, e seu maior trunfo, como ensinou Charles Baudelaire, é convencer-nos de que ele não existe.
Bolsonaro sempre defendeu
a ditadura, a censura, o fechamento do STF, do Congresso. Como o escorpião da fábula, é incapaz
de agir contra a própria natureza. Todas as pretensas “mudanças de
comportamento” que ensaiou nos últimos 27 meses foram tão legítimas quanto verazes as
narrativas que ele e sua prole criam para manter acirrados os ânimos da camarilha de trogloditas alienados que batem palma para maluco dançar.
Parte da culpa por descalabro cabe à Constituição Cidadã, promulgada em meio à ressaca da ditadura militar, pois os constituintes pavimentaram o caminho para o parlamentarismo. No art. 2º Título X, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, nossa Carta Magna explicita que: “no dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.” Mais adiante, a emenda nº 2, de 25 de agosto de 1992, antecipou o plebiscito para 21 de abril de 1993 e determinou que seus efeitos vigessem a partir de 1º de janeiro de 1995.
Mas
faltou combinar com os burros, e aí deu zebra. E a zebra emprenhou e pariu
o presidencialismo de coalizão (ou
de cooptação, como queiram).
Observação: No parlamentarismo, o chefe de governo é o primeiro-ministro, que é escolhido entre os membros do partido (ou da coligação) com maior número de cadeiras no parlamento. Caso ele perca o apoio das alianças construídas para sua eleição, seu mandato pode ser interrompido a qualquer momento. No presidencialismo, os remédios constitucionais são o impeachment (por crime de responsabilidade) e a abertura de processo criminal no STF (em caso de infração penal comum), mas ambos são demorados, e sua eficácia depende do Congresso, que funciona como juiz e júri num julgamento eminentemente político.
Resta ao povo — de quem supostamente todo poder emana e em cujo nome deve ser exercido — assistir estarrecido e impotente aos sucessivos crimes de responsabilidade praticados pelo líder da nação. O senador tucano Tasso Jereissati disse com todas as letras: “É preciso parar esse cara”. Mas parar como, se o próprio Jereissati é contra o impeachment?
Em se tratando de Bolsonaro, a renúncia está fora de cogitação. A menos que ele se dê conta de que seus direitos políticos venham a ser ameaçados por um impeachment, como se deu com Collor em 1992. Aliás, tanto no impeachment do caçador de marajás de festim quanto no da gerentona de araque (em 2016), a pressão popular resultante das crises econômica e política estimulou os congressistas a rescindir unilateralmente o contrato de locação do inquilino de turno do Planalto. No contexto atual, porém, existe um fator complicador, que é o isolamento diplomático.
Outra diferença — talvez ainda mais relevante — consiste no fato de o país estar atravessando a pior fase da pandemia sanitária de toda a sua história (e nada indica que o vírus será debelado no curto prazo). Continuar assistindo à derrocada do governo sem nada fazer é um crime de lesa-pátria, até porque, sem ação política, o presidente pode recorrer ao “autogolpe” para implementar um regime de exceção (leia-se ditadura).
Isso nos leva à troca das cadeiras promovida pelo presidente na última segunda-feira, que teve como estopim a substituição do general Pesadelo, no comando da Saúde, pelo cardiologista Marcelo Queiroga, bem como a demissão de Ernesto Araújo (detalhes nas postagens anteriores).
Impulsionadas pelo agravamento da pandemia, essas mudanças sinalizam três movimentos preocupantes. Num, Bolsonaro afaga o Centrão, entregando a coordenação política à inexperiente deputada Flávia Arruda, filiada ao partido do mensaleiro Valdemar da Costa Neto e cupincha do réu que ora preside a Câmara. Noutro, aperta as Forças Armadas trocando o ministro da Defesa. Num terceiro lance, tenta proteger a prole colocando no comando da pasta da Justiça um delegado federal licenciado que amigo da filharada.
Mas o mais surpreendente foi a substituição do general Fernando Azevedo e Silva pelo até então ministro chefe Casa Civil, general Braga Netto, no comando da Defesa, e a transferência do general Luís Eduardo Ramos da articulação política para a Casa Civil.
Nesse ambiente, prevalece uma máxima que o próprio Bolsonaro criou: "Ministros são como fusíveis. Para não queimar o presidente, eles se queimam". A questão é saber com que propósito Bolsonaro promoveu as mudanças. Por enquanto, a única certeza que se tem é a de que não há sobre a mesa nada que se pareça com interesse público.
O ministério da Defesa foi criado no segundo mandato de FHC para explicitar a subordinação das Forças Armadas, que são uma instituição de Estado, não de governo. Nunca antes na história deste país essa pasta foi usada politicamente para reforçar a prevalência dos militares sobre o poder civil — ou, nas palavras de Merval Pereira, como uma ameaça de autogolpe.
Na divisão do butim do Orçamento de 2021, a quota-parte que tocou à Defesa superou a soma das verbas destinadas à Saúde e à Educação. E como Bolsonaro não dá ponto sem nó, salta aos olhos que a contrapartida esperada é a ampla, geral e irrestrita lealdade dos fardados.
Donde a demissão
do general Azevedo e Silva, que anotou em sua nota de despedida sempre ter preservado as Forças Armadas como
instituições de Estado, deixando claro seu incômodo em ter de respaldar o presidente quando ele usava o Exército para fins político-eleitoreiros.
Aliás, foi por essas e outras que o general
Edson Pujol ameaçou deixar o comando do Exército no ano passado — e só
não o fez porque foi dissuadido por Azevedo
e Silva.
Ontem, após se reunirem com o general Braga Netto, sucessor de Azevedo
e Silva no ministério da Defesa, os
três comandantes das Forças Armadas renunciaram. Eles reafirmaram que os
militares não participarão de nenhuma aventura golpista, mas buscam uma
saída de acomodação para a maior crise na área desde a demissão do então ministro do Exército
Sylvio Frota. Braga Netto
tentou dissuadi-los, mas pesou demais a demissão inesperada de Azevedo, que funcionava como pivô entre as alas militares no
governo, o serviço ativo e o Judiciário.
Observação: Há um temor de agitação nos quartéis nesta quarta (31),
quando o golpe de 1964 completa 57 anos. O episódio envolvendo Frota é lembrado pelos
oficiais-generais — todos formados em turmas em anos próximos —, embora seja
preciso ter em mente que em 1977 vivia-se uma ditadura em abertura por Geisel, e Frota foi demitido porque se opunha a isso. Além do mais, ele era ministro do Exército — como dito linhas atrás, a pasta da
Defesa só viria a ser criada em 1999 e foi comandada por civis até 2018, embora
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de seus 12 titulares até aqui tenham saído de forma conturbada.
Resta agora a Braga
Netto acertar uma acomodação de nomes. Para Marinha e Aeronáutica, que têm menor peso relativo, a sucessão deve ser menos nevrálgica do que no
Exército. Mas nada indica que o general aceite participar de uma ação de exceção,
a despeito de sua lealdade a Bolsonaro. E
ainda que isso acontecesse, não haveria respaldo no Alto-Comando do Exército
para um autogolpe. Ou pelo menos é o que se espera.
O Brasil vive uma crise com características especiais, diz o historiador e professor Marco Antonio Villa. Não há na história republicana nenhum paralelo. Tudo pelo que passamos até hoje foram crises pontuais, mas agora convivemos com um processo de tensão permanente, que atinge amplos setores da vida nacional. É a crise mais longa e profunda de toda a nossa história. Longa pela extensão no tempo; profunda por ter alcançado uma amplitude muito maior do que conhecemos em 132 anos de República. E pior: em nenhuma das crises anteriores havia na Presidência um genocida, psicopata e beócio, conclui o professor Villa.
Esperar que Bolsonaro se converta à democracia é, no mínimo, um grave equívoco. Como
parlamentar, o capitão das trevas sempre deixou claro seu descompromisso com os valores
democráticos e com a Constituição de 1988. Não se pode esquecer que ele
planejou — enquanto militar da ativa — um conjunto de ações terroristas que, se realizadas, levariam a um morticínio. No Parlamento, permaneceu por quase 3 décadas defendendo torturadores, ditaduras, insuflando a guerra
civil e até advogando o fuzilamento de um presidente da República.
A questão que se coloca é que os sucessivos ataques ao Estado democrático de Direito, nesta conjuntura, são ainda mais graves, sobretudo em meio à pandemia da Covid. A perversa combinação de tais fatores, associada a uma profunda recessão econômica, joga o Brasil à beira do caos social.
A economia está à deriva. Todas as
condições para uma explosão social ao estilo das antigas jacqueries
— que assolaram o mundo rural francês no final da Idade Média — estão
colocadas, posto que não há, como no final do século anterior, organizações
populares que poderiam sistematizar, articular e conduzir ações políticas.
O impasse tem de ser enfrentado e resolvido. A iniciativa política precisa vir dos setores democráticos. Agir reativamente não basta. Há que construir um amplo arco de alianças no Parlamento e fora dele. É preciso agir, pois simples lamentos não adiantam de nada. E a ação tem de ser rápida.
Diversamente das crises anteriores, esta tem um componente único: a vida dos
milhões de brasileiros. Se Bolsonaro
não for rapidamente vencido, a pandemia continuará a ceifar milhares de vidas todos
os dias.
Dirigentes e líderes de partidos de centro temem que o presidente venha a radicalizar seu discurso (e suas ações) caso se sinta ameaçado, diz Monica Bergamo em sua coluna na Folha. Na visão dos parlamentares, afirma a jornalista do Globo, Bolsonaro, ao mesmo tempo que tenta consolidar o apoio do centrão, testa os limites da governabilidade, como se preparasse um plano B.
Para Ministros do STF, o que
minimiza o temor de atos mais autoritários é o fato de os próprios fardados
de alto escalão estarem reagindo ao capitão. Além disso, o presidente está em um momento de
fraqueza política e não receberia aval para levar adiante medidas polêmicas,
como, por exemplo, decretar estado de sítio.
De todo modo, causou surpresa geral a forma como se deu a demissão do ministro da Defesa e a nítida impressão de que o chefe do Executivo quer usar as Forças Armadas em seu espúrio projeto de poder.
Embora tenha feito acenos ao Centrão colocando
uma deputada do grupo para
comandar a Secretaria de Governo, a inflexão que a cúpula do Congresso e
empresários esperavam de Bolsonaro não ocorreu nem vai ocorrer: mesmo flertando com
discursos ponderados de combate à Covid e usando máscara, o presidente seguirá numa toada radical, falando mais para sua base radical e
menos com o Parlamento.
O governador de São Paulo, João Doria lembrou que “as Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo”. Flávio Dino, do Maranhão, avaliou que a substituição dos comandantes reforça o diagnóstico de que a troca na Defesa não foi corriqueira ou poderia ser vista como trivial. “Na verdade, é uma tentativa do Bolsonaro de subalternizar as Forças Armadas para seus intentos delirantes e despóticos”, disse Dino, para quem as Forças Armadas, o Congresso e o Judiciário precisam se opor às tentativas do capitão de “transformar as Forças Armadas em milícias desse poder que ele exerce.”
Observação: O Estado é uma estrutura e como tal tem caráter permanente. O governo, representado por aqueles escolhidos para gerir a máquina do Estado, é transitório. Dito de outro modo: enquanto o Estado serve à nação de uma maneira mais ampla, apartidária, impessoal, o governo está ligado a partidos políticos e a indivíduos.
A preocupação
ganhou corpo na reunião de ontem, após o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, apresentar um projeto que daria poderes a Bolsonaro para decretar mobilização
nacional em questões de grave problema de saúde pública — como a pandemia. Protocolado na Câmara há cinco dias, a proposta foi vista como uma tentativa de
criar um mecanismo legal para que a União pudesse interferir direto nas ações
de estados e municípios, em meio a atritos entre o Executivo Federal,
governadores e prefeitos. O Congresso teria que dar autorização ao decreto
presidencial, mas, mesmo assim, o timing causou inquietação no Parlamento.
Na avaliação do deputado Rodrigo Maia, o projeto do deputado bolsonarista é flagrantemente inconstitucional. “Ele busca criar um novo instituto de emergência constitucional fora da Constituição”, critica o ex-presidente da Câmara, que deixou de “herança” a seu sucessor mais de 60 pedidos de abertura de processo de impeachment contra o capitão-calamidade. Maia pondera que, apesar de ser necessário obter autorização do Parlamento, o quórum de votação é baixo. Mas salienta que o projeto não teve consenso da maioria dos presentes e não foi incluído na pauta da sessão da tarde de ontem. Disse ainda o deputado que "Bolsonaro está cada vez mais parecido com Chávez e Maduro. Logo mais começam a expropriar. E muita gente, na elite principalmente, acha que é uma opção contra o PT. É muito mais do que isso. Um autoritário sempre será autoritário".
A pergunta é: por que Maia não faz o que poderia — e deveria — ter feito quando presida a Câmara e, portanto, tinha a faca e o queijo nas mãos?