sábado, 15 de maio de 2021

A QUE PONTO CHEGAMOS...

 

Pesquisa do Datafolha (feita recentemente, de forma presencial, com 2.071 pessoas em 146 municípios) traduziu em números a superpolarização em que está metida a política brasileira. Se a eleição fosse hoje, Lula teria 51% das intenções de voto entre os entrevistados que declararam ter ensino fundamental e 47% na faixa de renda de até dois salários-mínimos.

O índice cai para 30% entre quem declarou ter ensino superior e 18% na faixa de quem tem renda maior do que dez salários-mínimos. Bolsonaro teria 36% dos votos dos entrevistados que declararam estar vivendo normalmente, mesmo com a pandemia. Dessa mesma faixa do eleitorado, Lula abocanha 33%. Entre quem afirmou estar seguindo as recomendações de isolamento social, 58% apoiam o candidato do PT e 8% disseram votar no atual presidente.

Resumo da ópera: Ressuscitado pelo Supremo, o agora “ex-corrupto” prevaleceria com folga sobre o seu (aparentemente) único rival. No primeiro turno, Lula venceria por 41% a 23%; no segundo, por 55% a 32%.

Observação: O que o STF fez ao inocentar Lula foi mostrar o grande erro da Lava-Jato: recusar-se a obedecer a lei máxima nacional segundo a qual roubar não é crime se você é um picareta festejado por estrelas cadentes da MPB e por uma legião de inocentes úteis e inúteis.  Aí foi só correr para o abraço das togas esvoaçantes, exuberantes como asas de urubu em perfeita coordenação para envolver e proteger a carniça, e voilà: Lula livre! A intelectualidade de cabresto, a burguesia decadente, as subcelebridades e a bandidagem do bem alertaram desde sempre os homens da lei: para Lula não há lei. E o escândalo do mensalão era a prova cabal disso (ou científica, como se diz hoje nos melhores fundos de quintal): José Dirceu foi preso por montar um propinoduto entre empresas estatais e o PT para comprar deputados e outras bugigangas — e Lula saiu assobiando numa boa, porque Dirceu era seu braço direito, mas nem todo mundo sabe o que o seu braço direito faz. Nem a sua mão boba. Agora ninguém segura. Lula seria eleito com 171% dos votos, prevê o Instituto DataVenia. E você tem duas opções: arrumar um padrinho na cleptocracia ou se levantar daí e avisar que não vão te assaltar de novo.

Além de acentuar o peso dos extremos, a pesquisa escancara a debilidade da chamada “terceira via”. Fala-se muito no centro, mas falta informar como se chega ao centro. Abaixo de Lula e Bolsonaro há um bololô de presidenciáveis ou pretensos candidatos. Alguns deles, embora já jurados de morte pela conjuntura, percorrem os bastidores como se estivessem cheios de vida.

Estão colados nos fundões do palco Sergio Moro (7%), Ciro Gomes (6%), Luciano Huck (4%) e João Doria (3%) que, mesmo brandindo a CoronaVac, só não é o lanterninha porque abaixo dele estão Henrique Mandetta e João Amoêdo, empatados em 2%. Ciro Gomes se sai melhor entre os entrevistados com ensino superior (11%) e com os mais ricos (13%).

Outros 9% informaram que votariam em branco, nulo, ou em nenhum candidato, e 4% estão indecisos. O Datafolha destaca ainda que, no segundo turno, Lula herdaria votos dados a Doria, Ciro e Huck, e Bolsonaro teria os de Moro. Lula ganharia de Moro (53% a 33%) e Doria (57% a 21%) caso enfrentasse esses candidatos no segundo turno. Bolsonaro empataria tecnicamente com Doria (39% a 40%) e perderia para Ciro (36% a 48%).

Com a CPI do genocídio nos calcanhares, o caos na vacinação, a economia paralisada, denúncias de grossa corrupção na compra de parlamentares e o auxílio emergencial de fome, o que faz Bolsonaro para reagir? Vai a Alagoas para reinaugurar obras, não convida o governador Renan Filho, coloca o Exército nas ruas para fazer a sua segurança, chama o relator da CPI de “vagabundo” — como fez seu primogênito na véspera, durante a sessão da Comissão — e Lula de “ladrão de nove dedos (se os qualificativos foram ou não bem colocados, isso já é outra conversa). “Se Jesus teve um traidor, temos um vagabundo inquirindo pessoas de bem em nosso país. É um crime o que vem acontecendo com essa CPI. Se quer fazer um show tentando me derrubar, não fará. Somente Deus me tirará daquela cadeira”, completou nosso indômito capitão.

Bolsonaro sabe que, respeitadas as atuais regras do jogo, está mais perto de perder o mandato do que de ganhar a reeleição. Aliás, um dado em particular do Datafolha deve ter assombrado o Palácio do Planalto: 54% dos entrevistados responderam que não votariam no presidente de jeito nenhum, e rejeição acima de 50% inviabiliza qualquer candidatura.

Está entendido que o negacionismo da pandemia cobra a conta de Bolsonaro. Por contraste, Lula retorna ao palco como se nada tivesse sido descoberto sobre ele. Quem busca uma alternativa qualquer à dupla está em apuros. O eleitor vai à urna mais ou menos como quem entra numa loja de roupas. Não se pode escolher senão entre as peças que estão expostas no cabide. Se o Datafolha serviu para alguma coisa, foi para realçar o seguinte: Unido, o centro talvez se credencie para desafiar a polarização. Separados, os candidatos alternativos chegarão a 2022 entoando Noel Rosa: "Com que roupa eu vou..." Nessa hipótese, o eleitor será convidado para um samba no qual terá de optar entre um candidato sem futuro e um oponente com um enorme passado pela frente.

Em vez de comprar vacinas, Bolsonaro preferiu boicotá-las; para se proteger do impeachment, comprou parlamentares com o “Tratoraço das emendas secretas”. Somente agora, 14 meses após o início da pandemia, o Ministério da Saúde está lançando uma campanha de vacinação, mesmo sabendo que ainda não há vacinas para todos. Sem um plano econômico para o pós-pandemia, só restará ao capitão xingar os adversários e fazer provocações. E no que mais ele poderá radicalizar, além de chamar o “meu Exército” — uma ameaça tão repetida que já não assusta mais ninguém —, depois de perder as bandeiras do combate à corrupção e à “velha política” e cair nos braços do Centrão? Vai fazer como o filho 03, que ameaçou fechar o STF com um jipe, um cabo e um soldado?

Observação: Bolsonaro tenta mobilizar suas bases mais radicais para conter a erosão de sua popularidade e a ascensão de seu maior adversário. Acossado pela CPI, que expõe as entranhas de sua macabra gestão da pandemia, ele participará neste sábado de um ato convocado por agricultores conservadores, à qual chegará a cavalo, enquanto umas cem cidades serão palco de uma “Marcha da Família Cristã pela Liberdade” (o nome remete aos protestos que, em 1964, propiciaram o golpe militar e a instalação de uma ditadura que durou 21 anos). As probabilidades de que as investigações produzam a defenestração do inquilino do Planalto são próximas de zero, mas o desfile de testemunhas que reforçam a ideia de que seu negacionismo macabro, se não produziu diretamente os 430 mil cadáveres que assombram a nação, ao menos contribuiu de forma determinante para que o “genocídio” acontecesse. Sua base “raiz” ainda o apoia, mas perdeu parte do ímpeto coma a demissão do chanceler de fancaria e o amancebamento do capitão com o Centrão (o que pode vir a ser sua perdição). Para ser reeleito, Bolsonaro terá que reunir os mesmos setores que lhe garantiram a vitória em 2018 — possibilidade que parece mais distante a cada dia. Se essa estratégia fracassar, restará ao fracassado se inspirar em Donald Trump, que até hoje nega sua derrota nas urnas para Joe Biden. Sinais disso não faltam, a começar pelo questionamento em relação ao voto eletrônico e as ameaças recentes às instituições democráticas. A conferir.

Na quinta-feira, Bolsonaro viajou até Alagoas para inaugurar obras cujas fitas já haviam sido cortadas. Ao lado dos réus Fernando Collor e Arthur Lira, chamou de “vagabundo” e “picareta” outro réu, ecoando o primogênito Flávio, eminente senador da República que resolveu dar o ar da graça na CPI da Covid para afrontar o relator, que devolveu a gentileza acusando o filho do pai de “roubar dinheiro do pessoal do seu gabinete”.

ObservaçãoA plateia tem dificuldade para distinguir quem é quem. É mais ou menos como uma confusão entre dois gambás. Nesse tipo de briga, mesmo o vencedor sai cheirando mal.

A esse ponto chegamos: acusam-se mutuamente de vagabundagem e ladroagem a família Bolsonaro, com a imagem já bem rachadinha, e o colecionador de inquéritos Renan Calheiros. Assaltada (ops!) pela sensação de que os dois lados podem ter razão, a plateia toma o partido da briga. Numa das reinaugurações estreladas por Bolsonaro, a claque ecoou o orador. Ouviu-se um coro de “Renan vagabundo”. Entusiasmado, o capitão aproveitou para desancar um aliado de Renan. Em desvantagem no Datafolha, chamou Lula de “ladrão de nove dedos”.

Trava-se ao redor da CPI uma espécie de gincana entre sujos e mal lavados. Uma competição na qual a decência é um valor secundário. Antes de derramar baldes de lama sobre Renan, Bolsonaro articulou uma aproximação com o dono do enredo a ser contado no relatório final da investigação sobre a pandemia. Primeiro, o presidente telefonou para Renan Filho, governador de Alagoas, e manifestou o desejo de conversar com o pai do interlocutor. Foi “uma ligação amistosa”, contou Renanzinho. “Ele disse até assim: 'olha, Renan, estou com saudade daquelas nossas peladas do futebol'.”

Na sequência, Bolsonaro visitou em Brasília a mansão de José Sarney, o xamã da tribo do MDB. Novamente, queria estabelecer uma ponte que o levasse aos ouvidos de Renan. Não funcionou. O presidente faria um bem a si mesmo se explicasse à plateia o que desejava obter com esse estreitamento da inimizade com um “vagabundo”.

Com Josias de Souza