domingo, 16 de maio de 2021

COISAS DO BRASIL


Começo a postagem deste domingo (que redigi de véspera) com algumas perguntas retóricas: Quem imaginaria que o candidato vitorioso à prefeitura de São Paulo em 2020, que mal ingressou na confraria dos quarentões, estaria, dali a seis meses, desenganado pelos médicos e aguardando o minuto fatal de sua passagem por este vale de lágrimas? (Me ocorreu escrever “com o pé na cova”, mas achei a expressão desrespeitosa, sem mencionar que resultaria num trocadilho infeliz e de muito mau gosto).

Observação: Bruno Covas morreu às 8h20 deste domingo (16) aos 41 anos. Ele foi diagnosticado com a Covid em julho do ano passado, quando a doença já havia matado quase 5.600 pessoas no estado de São Paulo, mas não resistiu a câncer no sistema digestivo com metástase no fígado, contra o qual vinha lutando desde 2019. Minhas condolências à família do falecido.

Ou que um ex-presidente condenado a mais de 20 anos de cadeia (da qual saiu pela porta da frente graças a uma manobra espúria de seus sectários no STF) seria guindado à bizarra situação de “ex-corrupto” e reabilitado politicamente a tempo de disputar em carne e osso a próxima eleição presidencial? Ou quão desastrosa seria para esta republiqueta de bananas a vitória do dublê de mau militar e parlamentar medíocre (com pitadas de psicopatia, se me permitem parafrasear o ministro Luiz Roberto Barroso, um dos poucos que se salvam no supremo ninho de urubus) sobre o bonifrate do ex-presidiário no pleito de 2018? Ou, ainda, que um vírus genocida (falo do Sars-CoV-2, porque há outros por aí, com nome, endereço e CPF) dizimaria quase 0,2% da população tupiniquim em “apenas” 15 meses de pandemia?

Todas elas levam a situações em que o imprevisto teve voto decisivo na assembleia dos acontecimentos. Aliás, sempre que imagino ter visto de tudo neste caldeirão de merda que atende por cenário político nacional, surge um episódio ainda mais surreal, como que para me dizer que eu ainda não vi nada. 

Não bastasse o cheiro pútrido que emana dos fatos revelados pela CPI da Covid — sem mencionar os que ainda virão à luz, considerando que o ex-ministro Eduardo Pesadelo prestará depoimento na próxima quarta-feira, a não ser que consiga arrumar outra desculpa para não dar o ar de sua graça (quem sabe uma caganeira como a que acometeu D. Pedro I há quase 200 anos) —, aflorou do mar de lama do Planalto, graças a um trabalho exaustivo e minucioso do jornal O Estado de S. Paulo, a monumental maracutaia vem sendo chamada de Tratoraço das Emendas Secretas.

A matéria apresenta fortes indícios de que o governo montou um esquema paralelo para o manejo das emendas parlamentares ao Orçamento da União a fim de assegurar apoio no Congresso. Pouco antes disso surgiram na CPI evidências sobre o uso do mesmo tipo de recurso obscuro no Ministério da Saúde, onde a gestão da pandemia conta com um grupo de aconselhamento do presidente da República que atua à margem das orientações da estrutura oficial.

Muito antes, mais exatamente em maio do ano passado, o país tomou conhecimento de que numa reunião ministerial ocorrida no mês anterior (22 de abril de 2020) o presidente da República revelara contar com um “sistema particular de informações” por não se sentir atendido pelas instâncias formais da área, tais como a Polícia Federal, a Agência Brasileira de Inteligência e até o setor de inteligência das Forças Armadas.

Voltando ainda mais no tempo, desde o início do mandato de Jair Bolsonaro sabemos da atuação, digamos, informal, de filhos e correligionários do presidente na comunicação governamental, motivo, inclusive, de atritos com aqueles oficialmente nomeados para funções nesse setor. Alguns saíram, outros preferiram ficar, simulando não perceber a impropriedade — quando não o risco do flerte com a ilegalidade — dessa maneira oficiosa de lidar com assuntos oficiais. Ali viceja o chamado gabinete de ódio, de composição e atuação envoltas em sombras.

Isso é o que por ora conhecemos sobre o conjunto de sujeitos ocultos em ação no que poderíamos chamar de Planalto profundo. Ainda que não se estabeleça com isso a existência de um governo paralelo como algo extensivo a todas as áreas, é o suficiente para constatar a predileção do presidente Bolsonaro por trabalhar, desorganizada e indisciplinadamente, com instâncias montadas à margem da máquina do Estado.

Se confirmados os indícios de uma reserva de bilhões de reais do Orçamento da União para o atendimento privilegiado (e sem transparência) de deputados e senadores, teremos a ocorrência de um crime de responsabilidade. Isso, no máximo. No mínimo, ficará demonstrada a adesão do governo aos costumes da velhíssima política.

Vestidas com roupa nova, as mesmas práticas que há quase trinta anos ensejaram uma CPI cujo resultado foi a cassação de seis deputados e a renúncia de outros quatro entre os 37 investigados, conhecidos como “anões do Orçamento”. Na gestão da crise sanitária, as posições do presidente contrárias às orientações da ciência pareciam ser fruto exclusivo da cabeça dele. A CPI da Covid vem nos mostrando que Bolsonaro bebia também em outras fontes, buscando respaldo em gente que nada tinha a ver com a equipe presidencial. Pessoas que desconheciam procedimentos normativos, como ocorreu no caso do preparo daquela minuta de decreto para incluir na bula da hidroxicloroquina o tratamento para a Covid, ao arrepio das exigências legais.

O episódio da notória reunião do fatídico 22 de abril foi o mais explícito sobre os métodos presidenciais de operação, fundados no aconselhamento de uma rede de conhecidos que compartilham das posições dele. Ali o presidente, sem imaginar que a gravação viria a ser de conhecimento público, criticou fortemente a Polícia Federal (“não me dá informações”), “as inteligências das Forças Armadas” e a Abin. Todas por não o atenderem de acordo com seus desejos e poderes que ele acredita ter.

Daí foi que revelou a existência de um “sistema particular de informações”. Ele mesmo tratou de descrever o perfil e o funcionamento do tal sistema. “É o sargento do batalhão do Bope do Rio de Janeiro, é o capitão do grupo de artilharia lá de Fortaleza, é o policial civil que tá em Manaus, é meu amigo que tá na reserva e me traz informação da fronteira”, disse ele, ressaltando a eficácia do assessoramento e ao mesmo tempo atribuindo a ineficiência das instâncias formais ao “aparelhamento das instituições”.

A solução encontrada pelo presidente, ao que se viu e se vê agora de maneira ampliada, foi montar aparelhos paralelos para exercer a chefia da administração federal como quem toca uma reforma em casa sob critérios de vontade e de conveniências pessoais. Um indubitável desvio dos ditames a que está submetido o exercício da Presidência da República.  

Com Dora Kramer