terça-feira, 4 de maio de 2021

JÁ NÃO ERA SEM TEMPO

 

Bolsonaro admite atuar na contramão do desejo da maior parte dos brasileiros quando desafia o país a convencê-lo a mudar de comportamento — “Devo mudar meu discurso, me tornar mais maleável, devo ceder? Fazer igual à grande maioria? —, mas, como o escorpião da fábula, é incapaz de agir contra a própria natureza — “Se me convencerem, faço, mas não me convenceram ainda”.

Sob o comando do mau militar e parlamentar medíocre que a parcela pensante do eleitorado foi obrigada a apoiar para impedir a volta do lulopetismo corrupto, amargamos há 28 meses um bolsonarismo boçal, comandado por um mandatário que disse textualmente que não nasceu para ser presidente, nasceu para ser militar (e nem isso conseguiu, pois foi expelido dos quadros da Escola de Oficiais por indisciplina e insubordinação), e que, após subir a rampa do Planalto, encarnou uma curiosa versão “Dilma de calças” — sem Lula na retaguarda, mas com uma dose generosa de crueldade.

É fato que nenhum outro inquilino do Planalto teve desafios tão complexos como os que caíram no colo do mito de araque, mas também é fato que nenhum deles era dotado de uma miopia política tão desastrosa quanto a do atual (com a possível exceção da pseudo gerentona, mas isso é outra conversa). Diante disso, a economia afunda, a população empobrece e o desemprego atinge proporções gigantescas num cenário de hospitais e postos de saúde lotados. E da feita que o pior líder mundial a lidar com o coronavírus vestiu a carapuça, cabe ao Congresso assumir sua função precípua de órgão governativo e fiscalizador em defesa dos interesses mais sagrados da sociedade brasileira.

A CPI da Covid deve responsabilizar agentes públicos que por negligência, ignorância assumida, má-fé ou tibieza deixaram de seguir o óbvio interesse coletivo no combate aos efeitos da pandemia. Na correlação de forças, a bancada não alinhada com o Planalto soma sete votos. Minoritário, o esquadrão de Bolsonaro, que dispõe de quatro votos, encolheu na sessão inaugural. Ciro Nogueira, visto como uma espécie de general da tropa do Planalto no Senado, ornamentou com o seu voto a eleição do “independente” Omar Aziz para a presidência da CPI e a escolha do “oposicionista” Renan Calheiros para o posto de relator da investigação legislativa. Os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich devem depor nesta terça, e amanhã será a vez do o general Eduardo “é simples assim: um manda e o outro obedece” Pazuello.

A revista eletrônica Crusoé  desta semana mostra como Bolsonaro pode se encrencar — e muito — por conta de seu comportamento execrável em relação ao enfrentamento do vírus. Daí o indisfarçável desespero do Planalto diante da prestação de contas. Um dos pontos mais sensíveis é a propaganda contínua que o presidente fez — e faz — da cloroquina. O remédio é comprovadamente ineficaz no tratamento da Covid e pode causar sérios efeitos colaterais, mas o ministério da Saúde mandou comprar, produzir e distribuir como panaceia, enquanto outras nações preocupavam-se em adquirir vacinas.

Se governar é fazer escolhas, nunca antes na história deste país se viu tamanho equívoco na eleição de prioridades. Nada do que Bolsonaro fez deu certo, como, de resto, costumam fracassar suas tentativas de criar tumultos, distrações e dispersões. Se a CPI da Covid chegará a bom termo, isso são outros quinhentos (a serem conferidos daqui por diante), mas CPI nenhuma é boa para governo algum, justamente por ser instrumento de atuação da minoria — daí a razão de a maior parte delas ficar pelo meio do caminho, sucumbindo ao emprego das armas à disposição dos detentores do poder.

Auado, Bolsonaro ataca, valendo-se da troca de insultos pertencente ao campo do exercício do ódio improdutivo que propicia graça, anima seus acólitos e mobiliza emoções, mas não move moinhos de maneira efetiva. Em outras palavras, cultiva ilusões que levam apenas a uma inevitável pergunta: será imutável a regra imposta pelo presidente mediante a qual ele ataca e o país perde tempo e energia na defesa? A resposta é: não necessariamente.

Indo além para parafrasear Bolsonaro, talvez tenha chegado (ou até passado) o momento de perguntar se sociedade e instituições devem mudar, tornar-se menos maleáveis, mais intransigentes, repudiá-lo com veemência semelhante à da maioria (apertada, porque não faltam descerebrados que consideram o governo regular ou bom). 

Legalmente nada impede que a dinâmica de defesa e ataque se inverta e os contendores troquem de lugar. O instrumento mais contundente seria a abertura de um processo de impeachment, mas o réu que ora preside a Câmara Federal e herdou de seu antecessor cerca de 60 pedidos de impedimento do presidente — agora já são mais de 100 — não demonstra vontade política para dar andamento a algum deles.

Observação: Durante seus três mandatos à frente da Casa, Rodrigo Maia, que vivia às turras com Bolsonaro, disse que  via erros, mas não crimes de responsabilidade” nas ações do desafeto (talvez devesse ter procurado um oftalmologista). Lira segue na mesma linha. Segundo ele, todos os pedidos de impeachment que analisou são “inúteis”.

A permanência do capitão no poder pode começar a sofrer forte questionamento por parte de setores que até pouco tempo atrás eram refratários à hipótese de impedimento ou de abertura de processos de investigação nos âmbitos parlamentar e criminal. Bolsonaro contrata esse risco quando envereda por um caminho que o carrega a um ambiente desfavorável. Pisa em terreno minado ao chamar um debate cujo desenrolar não tem chance de chegar a bom termo para ele. Na pior das hipóteses (para o presidente), acabará convencendo a maioria a romper o contrato eleitoral de 2018. Na melhor, ficará falando sozinho em sua lógica de caráter regressivo que objetivamente só interessa a um nicho e não encontra identificação no eleitorado de maneira substancial de forma a lhe dar condições competitivas de pleitear um novo mandato.

Governos não dormem no ponto nem se entregam à soberba do menosprezo em relação ao potencial tóxico das CPIs sobre seus destinos, sobretudo quando abundam indícios de que os alvos têm culpa no cartório. A CPI da Covid tem farto cardápio de evidências. Tanto as ações cometidas quanto as omissões perpetradas no transcorrer da crise sanitária desde o seu início estão muito bem registradas nos atos e palavras do chefe do Executivo e de seus prepostos, o mesmo ocorrendo nos inquéritos que investigam ilícitos em repasses de verbas federais país afora. Some-se a isso o agravante de o prejuízo ser contabilizado em perdas de vidas. Se ficarem estabelecidos dolos, estaremos diante de delito mais sério que roubo de dinheiro público.

O que vai acontecer pelos próximos meses no Senado não é um julgamento de tribunal nem investigação submissa aos ditames de uma polícia ou de um Ministério Público. Nessas últimas o silêncio no curso dos trabalhos é a alma do negócio. Em CPIs, a chance do êxito maior se constrói quanto mais visíveis forem as investigações. Ademais, não é certo tomar o “técnico” como antônimo de “político”. Tecnicalidades não são garantias de eficácia e/ou de condução moralmente correta de procedimentos. Às vezes, muito ao contrário. Mas há que ter discernimento: uma coisa é a essência da função parlamentar, outra é o uso eleitoral mediante truques, falsificações, omissões, parcialidades fraudulentas e sobreposição de conveniências pessoais aos interesses do público.

Se enveredar por esse caminho, a CPI da Covid cairá no descrédito e estará fadada ao fracasso. Pode acontecer? Pode, já vimos comissões de inquérito no Congresso (a maioria, aliás) embarcarem nessa canoa. Não parece ser o caso em tela. Primeiro, em razão do volume de evidências. Todavia, se de um lado isso dificulta a defesa do governo federal, e mesmo dos estaduais com indícios de culpa no cartório, de outro funciona como barreira de contenção a desvirtuamentos justamente devido à exposição dos fatos sobre os quais trabalhará a CPI. Qualquer tentativa de manipulação mais esquisita será facilmente detectada pelo público e utilizada como arma de contra-ataque por parte do Planalto e adjacências.

O segundo sinal de que a investigação do Senado tende a se manter no prumo é a composição da comissão. Só tem cobra criada, notadamente na ala oposicionista, na qual se incluem os ditos independentes. Gente experiente o bastante para detectar e se desviar de armadilhas. Entre titulares e suplentes há cinco ex-governadores, dois ex-presidentes do Senado, um ex-ministro da Saúde e dois líderes de bancada, sendo um do MDB e o outro da oposição. Do lado governista, composto de uma desconfortável minoria de 4 x 7, o nome de maior destaque é o de Ciro Nogueira, presidente do PP.

Observação: Na votação do impeachment de Dilma, Ciro Nogueira prometera ser fiel ao PT. Horas depois, após certificar-se de que o vento soprava noutra direção, votou a favor da guilhotina. De saída, o PP ganhou de Michel Temer dois ministérios e a presidência da Caixa Econômica Federal. Em 2018, as vésperas de fechar com Alckmin, o senador piauiense — que concorria à reeleição — declarava amor eterno ao xará Ciro Gomes. Hoje, responde pela coordenação política do Planalto a deputada de primeiro mandato Flávia Arruda, que tem o apoio do PP de Ciro e de Arthur Lira. Fechado com Bolsonaro na CPI, Ciro recebeu um afago definitivo de Renan Calheiros: “Para além de qualquer divergência, nenhum dos senhores é mais meu amigo quanto meu amigo é o senador Ciro Nogueira”, disse o relator que leva pânico ao Planalto. Quer dizer: Ciro exerce na CPI da Covid o papel de sempre. Será a favor de tudo e absolutamente contra qualquer outra coisa, desde que seus interesses particulares sejam atendidos.

Tal correlação de forças, quantitativa e qualitativamente falando, confere tranquilidade suficiente aos que ali estão dispostos a não dar trégua aos desmandos de Bolsonaro, e de qualquer outro governante, para que o façam sem recorrer a expedientes insidiosos ou a artificialidades que transformem a CPI num triste espetáculo de vaidades eleitorais. Farão política sim, pois esse é o nome do jogo no Congresso. Ou o relator foi escolhido e é temido por alguma razão que não seja política? Senadores não são magistrados. Tampouco estão por isso autorizados a se utilizar de uma comissão de inquérito (ainda essa cujo tema é uma tragédia humanitária) como palanque ou picadeiro.

Ainda que a CPI por si só não tenha o condão de resolver os problemas — pois não trará vacinas nem fará de Bolsonaro um líder capaz de inspirar comportamento social condizente com a crise —, o fato de expor o que poderia ter sido feito e o que não foi feito para minorar o alastramento do vírus, administrar melhor o sistema de saúde e principalmente estancar o ritmo alucinante de vítimas fatais do até agora maior mal do século pode até não impedir a reeleição de Bolsonaro, mas dificilmente contribuirá para transformar esse sonho — dele; para nós é um pesadelo — em realidade.

Com Dora Kramer e Josias de Souza