“Toma um fósforo. Acende teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro / A mão que afaga é a mesma que apedreja”. (ANJOS, Augusto dos. Versos Íntimos -1901)
A Lava-Jato, a maior
operação anticorrupção de toda a história do Brasil, foi deflagrada na
gestão de Dilma, a inolvidável. Em virtude de suas apurações, foram
tirados de circulação centenas de maus elementos, entre políticos corruptos e
empresários corruptores. Ironicamente, o condenado mais emblemático foi
justamente o antecessor, criador e mentor da nefelibata da mandioca.
Graças à falta de vergonha na cara do povo brasileiro, o picareta
dos picaretas passou míseros 580 dias numa cela VIP da PF em
Curitiba. No final de 2019, por 6 votos a 5, o STF reverteu
a jurisprudência que permitia a prisão de criminosos condenados em 2ª
instância. Em abril último, provocado por uma estratégia mal ajambrada do
togado supremo Luís Edson Fachin, o plenário decidiu, por 8 votos a 3, promover
Lula de “ex-presidiário” a “ex-corrupto”, além de restabelecer seus
direitos políticos.
Em 2018, o então candidato Jair Bolsonaro prometeu
combater a corrupção na política e apoiar a Lava-Jato. Em 2020, o presidente
Jair Bolsonaro disse que acabou
com a Lava-Jato porque “não havia mais corrupção no governo”. Como
assim, cara pálida?
Em novembro do ano passado, após 2 anos de investigações, o MP-RJ denunciou o
filho mais velho do capitão, sua mulher, Fernanda, o
ex-factótum do clã, Fabrício Queiroz, sua mulher, Márcia Aguiar,
e uma dúzia de ex-assessores do gabinete de Zero Um por organização
criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.
Observação: A denúncia, de 290 páginas, ainda
aguarda análise do TJ-RJ. A demora em tornar réu o filho do pai se
deve muito mais a “embargos procrastinatórios” apresentados pela defesa do acusado
do que ao mérito das acusações. Luiza Souza Paes, ex-assessora de Flávio,
já
confessou ao MP a existência do esquema no gabinete do então deputado na Alerj (antes de se eleger senador, FB foi deputado federal pelo RJ por 3
mandatos consecutivos). Luiza apresentou extratos bancários e disse ter
sido orientada a devolver a maior parte do que recebia como salário.
Investigados sob a suspeita de serem “fantasmas”, cinco ex-assessores do então deputado federal Jair Bolsonaro que tiveram o sigilo quebrado na investigação contra Zero Um receberam R$ 165 mil só em auxílios. Na última quinta-feira, 27, o TCU deu prazo de 5 dias para o Palácio do Planalto e o Ministério da Economia entregarem cópias dos documentos ainda ocultos do “Tratoraço” (esquema supostamente montado pelo presidente, no final do ano passado, para garantir sua sustentação na Câmara Federal e no Senado).
Como os parlamentares da família Bolsonaro sempre
cultivaram o hábito de trocar assessores entre si, a investigação que envolve Flávio poderá se encontrar com as apurações
sobre suspeitas semelhantes sobre seu irmão Carluxo.
Na apuração das “rachadinhas” no gabinete do vereador carioca que dá
expediente no Palácio do Planalto são investigados vários parentes da também
investigada Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro,
que “trabalhou” como assessora do enteado. Um dos casos apontados envolve Marta
Valle, cunhada de Ana Cristina, que passou sete anos e quatro
meses lotada no gabinete de Carlos Bolsonaro, mas afirmou à revista Época:
“Não
trabalhei em nenhum gabinete não”.
Em setembro, o Estadão revelou que Zero Dois também fez transações imobiliárias incomuns. Em 2003, quanto tinha 20 anos de idade, ele pagou R$ 150 mil em dinheiro vivo por um imóvel na Tijuca, zona norte do Rio. Seis anos depois, desembolsou um valor 70% abaixo do avaliado pela prefeitura na compra de um apartamento em Copacabana. As duas práticas — uso de dinheiro em espécie e declaração de compra de imóveis por preços inferiores aos de mercado para efeito do cálculo de imposto — costumam despertar suspeitas de lavagem de dinheiro e são, inclusive, pontos presentes na investigação contra o irmão mais velho.
Carluxo
é citado nada menos que 43 vezes no inquérito
dos atos antidemocráticos e investigado por suspeitas de ser líder do
chamado “gabinete do ódio” — grupo de assessores que disseminavam, nas redes sociais e grupos de apoiadores do presidente, fake
news envolvendo ministros da corte e pedidos de fechamento do Congresso e
do Supremo, além da volta do AI-5 e da ditadura militar com o capitão no comando da nação.
Observação: Para surpresa de ninguém, tanto o pai
quanto os filhos negam as acusações e alegam perseguição política. No dia 31,
ao fazer uma live, Jair Bolsonaro colocou em dúvida a imparcialidade do
MP-RJ e questionou o que o órgão faria se o filho de um promotor fosse
investigado por tráfico de drogas.
Depoimentos na CPMI das Fake News apontaram a participação de dois
filhos do capitão e de assessores próximos à Famiglia Bolsonaro
em campanhas na internet para atacar adversários com uso frequente de notícias
falsas. Alvo de ataques em sites e redes sociais, a deputada federal Joice Hasselmann apresentou um dossiê à
comissão em que aponta “milícias digitais”, ligadas ao presidente, que praticam ataques orquestrados a críticos de sua gestão.
O TSE passou a investigar a campanha presidencial de Jair Bolsonaro depois que uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo apontou que empresas compraram, sem declarar a Justiça Eleitoral, pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp. Segundo a lei eleitoral, um candidato pode divulgar conteúdo a seus eleitores se respeitar os termos de uso das plataformas digitais e pagar a essas redes sociais para alcançar fatias específicas do eleitorado. Mas esse dinheiro deve vir dos recursos do partido ou de doações de pessoas físicas, e não de empresas.
Observação: O envio em massa associado à
disseminação de informações falsas pode levar, em última instância, à perda
do mandato, pagamento de multa e exclusão do conteúdo falso. Não declarar
esses gastos à Justiça Eleitoral pode ser também considerado caixa dois. O WhatsApp
afirmou ter banido mais de 400 mil contas no Brasil, nos três meses anteriores
ao pleito de 2018, por práticas que violam os termos de uso, como robôs para disseminar informações e criação automatizada de grupos. Em outubro
do ano seguinte, a plataforma admitiu
pela primeira vez a existência de envios de disparos em massa durante a
campanha presidencial.
Eduardo Bolsonaro — o fritador
de hambúrgueres que quase virou embaixador — é investigado por
“suposta” violação da LSN em declarações postadas nas redes
sociais e por pagamentos
em dinheiro vivo na compra de dois apartamentos no Rio, em 2011 e
2016. Nem mesmo o caçula Jair Renan, que não tem mandato, foge
à regra que baliza os “negócios da Famiglia”. No final do ano passado, o
pimpolho articulou e participou de uma reunião entre o ministro Rogério Marinho e um grupo
de empresários da Gramazini Granitos e Mármores — empresa que
patrocina a Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, cuja sede fica num
camarote do estádio Mané Garrincha. O compromisso, que não constava
na agenda oficial de Marinho, foi revelado pela revista Veja. O ministro informou
que o filho do chefe “participou na qualidade de ouvinte e por acreditar
que o sistema construtivo teria potencial de reduzir custos para a União”,
e que a reunião foi um pedido do Planalto.
Observação: As relações da empresa de Renan com
o Planalto vão além de promover reuniões entre os investidores de seu negócio e
ministros. Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo,
a Astronautas Filmes, produtora de audiovisual que possui contrato
milionário com o Governo, realizou gratuitamente a cobertura da festa de
inauguração da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia. Somente
neste ano, a produtora recebeu R$ 1,4 milhão do governo
federal. Em nota, a empresa afirma que não existe nenhum “laço de
favorecimento”. O deputado federal Ivan Valente solicitou
à PGR que investigue suposto tráfico de influência no caso.
Jair Bolsonaro, o autodeclarado “Messias
que não miracula” que sempre disse ser um “defensor da família”,
tem se mostrado realmente preocupado em proteger pelo menos uma delas: a
própria. O primeiro passo foi articular a troca no comando da PF,
em abril de 2020, com a exoneração do diretor-geral da entidade, o delegado Maurício Valeixo. O então ministro Sérgio
Moro denunciou a maracutaia. Mais adiante, vieram à tona imagens
da folclórica reunião ministerial em que o capitão-honestidade disse
que não esperaria alguém “foder” a família dele, ou amigo,
para trocar integrantes da “segurança”. A fala também fazia referências ao Rio
de Janeiro, onde as investigações já roçavam os calcanhares dos filhos Flávio
e Carlos.
O negacionismo psicótico que norteia as ações e omissões do (ainda)
inquilino do Palácio do Planalto rendeu-lhe a pecha de pior
líder mundial no enfrentamento da pandemia e uma parte substantiva dos 120
pedidos de impeachment que dormitam preguiçosamente sobre a mesa do
deputado-réu e líder do Centrão Arthur Lira — que, ironicamente, foi guindado
à presidência da Câmara graças ao apoio daquele que ao longo de toda a campanha
à Presidência e durante o primeiro ano de sua funesta gestão teceu
duras críticas ao toma-lá-dá-cá da “velha política”.
De médico e de louco todo mundo tem um pouco, diz o ditado. Mas doido de pedra que se preza come merda e rasga dinheiro. Bolsonaro pode ter seus arroubos psicóticos, mas não se deixem enganar: ele é um estrategista de mão cheia. Tosco, rude, primário, raso, mas tinhoso como Cheitã, o infernal.
Logo depois de deixar o quartel pela porta dos funndos (acusado de indisciplina e insubordinação), o mau militar se elegeu vereador e dali a dois anos conquistou o primeiro de seus sete mandatos de deputado federal. Isso sem mencionar que uma extraordinária conjunção de fatores, entre os quais uma expressiva rejeição ao lulopetismo corrupto, colocou-o, em 2018, no gabinete mais cobiçado da Praça dos Três Poderes.
Fosse esta republiqueta de bananas uma democracia consolidada, a atual gestão teria sido interrompida quando o capitão da caverna
sem luz trocou a Ciência
pela Incompetência, nomeando ministro da Saúde um general triestrelado, supostamente especializado em logística, que não era capaz de diferenciar a porta do banheiro da porta de saída do gabinete. Demais disso, é no mínimo inaceitável um presidente trocar
três vezes o comando da Saúde em meio à pandemia e manter no
cargo, por dez longos meses, um ministro que não
sabia sequer o que é o SUS. Claro que pesou na escolha a
subserviência do fardado — que cuspiu nas estrelas de sua insígnia
ao se sujeitar a servir
de capacho para um comandante aluado. Mas isso é outra conversa.
A consequência dessa subserviência foi fatal para o Brasil.
Em cerca de 10 meses de gestão, o ministro militarizou a pasta com quadros sem
experiência em áreas estratégicas, não se consultou com especialistas para a
tomada de decisões importantes, tentou esconder dados da pandemia e postergou
medidas que poderiam ter salvado vidas. Enquanto o títere
manobrado pelo maluco dançava, a pilha de cadáveres produzidos
pela Covid crescia assustadoramente (de aproximadamente 15 mil para
quase 300 mil). Por causa dessa tragédia, o agora ex-ministro se tornou alvo de
uma série de investigações e peça chave na CPI do Genocídio no Senado.
Haveria muito mais a dizer, mas a extensão deste texto, comparável à da ignorância dos negacionistas de plantão, recomenda deixar
o restante para uma próxima postagem e resumir em uns poucos parágrafos outras tantas considerações sobre a resposta da oposição à manifestação
pró-governo do dia 23
No sabado 29, protestos
pedindo o impeachment de Bolsonaro e a ampliação da oferta de vacinas
se espalharam por centenas
de cidades em quase todos os estados brasileiros, incluindo o distrito federal, e ganharam destaque em alguns dos principais jornais e televisões do
mundo inteiro.
,O argumento de que Bolsonaro ofereceria mais risco à população do que o próprio vírus apareceu no francês Le Monde e no britânico Guardian. A agência de notícias Reuters classificou o capitão como “líder de extrema-direita”, disse que ele “minimizou a seriedade da pandemia, descartou o uso de máscaras e lançou dúvidas sobre a importância das vacinas”, e que sua popularidade “despencou durante a crise”.
Tanto a Reuters quanto a BBC inglesa mencionaram o lamentável episódio na capital pernambucana — no qual a PM disparou balas de borracha e gás lacrimogêneo contra manifestantes, e a vereadora petista Liana Cirne foi agredida com spray de pimenta por um policial. Segundo familiares, os dois homens que foram atingidos nos olhos e perderam parte da visão tinham ido ao centro da cidade para trabalhar.
A queda de braço entre os dois extremos do espectro
político-ideológico divide opiniões. Mas uma coisa é certa: o protesto do
último sábado contra o governo se estendeu pelo país, deixando no chinelo o movimento
pró-governo do dia 23, limitado à cidade do Rio de Janeiro. No entanto, para ser
levado a sério, avalia Josias de Souza, o “Fora, Bolsonaro” deveria ser acompanhado de um “Mourão já”, sem o que as manifestações que encheram o asfalto serviram para duas
coisas: expor a falta de nexo da oposição e presentear o coronavírus com
muitas aglomerações.
A exemplo de Bolsonaro, seus opositores contribuíram
para elevar (ainda mais) o número de infectados e de mortos. Para quê? Ganha
duas doses de vacina quem for capaz de responder. Que a popularidade do capitão
derrete já se sabia. Ironicamente, Bolsonaro virou um desastre sozinho,
dispensando o auxílio da oposição para se tornar um conto do vigário no qual
57,8 milhões de brasileiros caíram.
Bolsonaro vendeu-se como político antissistema e
anticorrupção, mas comanda uma organização familiar com fins lucrativos e, por
motivos já exaustivamente discutidos, acabou acorrentado ao sistêmico Centrão.
A pandemia se encarregou de agregar um conteúdo fúnebre à inépcia do capitão: num
primeiro momento, morria-se de Covid; depois que o Butantan e a Pfizer
deixaram de entregar os milhões de doses que o Ministério da Saúde demorou a
comprar, morre-se de falta de vacina.
Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade no atacado — embora Rodrigo Maia não tenha sido capaz de enxergá-los e Arthur Lira (ainda) não veja motivos para responsabilizá-lo. É isso que acontece quando se encarrega a raposa de tomar conta do galinheiro, e ela incumbe as outras raposas de investigar o sumiço das galinhas.
Sobram razões para despejar o inquilino de
turno do Palácio do Planalto. O que falta é interesse em levar a coisa às
últimas consequências. Engana-se quem imagina que os organizadores dos
protestos deste sábado estão interessados no impeachment. Os interesses ficarão
mais nítidos à medida em que a CPI do Genocídio for se aproximando do
final.
Seguindo as pistas que Bolsonaro deixou, a comissão
estabelece conexões entre as mortes e o negacionismo do mandatário. Logo ficará
claro que ele cometeu, por ação ou omissão, crime comum e crime de
responsabilidade. O primeiro levará o relatório final da CPI à mesa do passador-de-pano-geral
da República, a quem cabe processar o presidente junto ao STF. O segundo
fará companhia aos 120 pedidos de impeachment que, como dito, dormitam placidamente
na mesa do réu que preside a Câmara.
Ainda que Aras ou Lira decidissem abrir suas gavetas, o que não parece ser o caso, os processos só avançariam se 342 dos 513 deputados votassem contra o capitão. Mas os organizadores das manifestações de rua, majoritariamente simpáticos à candidatura de Lula, estão de olho nas urnas de 2022. Querem enfraquecer Bolsonaro, não trocá-lo por Mourão. Na outra ponta, os aliados do presidente no Centrão querem Bolsonaro fraco para arrancar dele mais verbas e cargos, não para retirá-lo do trono.
Num
instante em que o Brasil se apavora com a terceira
Bolsonaro foi infectado pelo vírus que inocula a ilusão no
organismo. Em fase de delírio, acha que é uma coisa, mas sua reputação revela
que já se tornou outra coisa. Sobretudo depois que perdeu o monopólio do
asfalto. Alheio a tudo, o imorrível, imbrochável e incomível
pendurou nas redes sociais uma foto segurando uma camiseta com essas três
palavras. Mas será mesmo?
Na política, a morte é anterior a si mesma. Às vezes, o
sujeito já começou a morrer e não sabe. Bolsonaro, por exemplo, é um
vivo tão pouco militante que o eleitor começa a lhe enviar coroas de flores —
segundo o Datafolha, sua taxa de rejeição bateu em 54%.
A virilidade, quando é real, costuma ser exercitada em
silêncio. A de Bolsonaro parece existir apenas no gogó. O imbrochável
que prometia há semanas editar decreto para revogar medidas sanitárias
restritivas brochou no instante em que protocolou no STF ação contra
três estados sabendo que será derrotado.
Incomível? Em cartaz há apenas um mês, a CPI já
desnudou o capitão falastrão. Uma mosca jura ter testemunhado, na intimidade do
Alvorada, o instante em que o presidente colocou na vitrola a música do grupo Mamonas
Assassinas cujo verso mais pungente fala do drama de uma alma atormentada
que se meteu numa suruba: “Já me
passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém.”
Nem imorrível, nem imbrochável, nem incomível. Bolsonaro
revela-se, na verdade, um rematado