segunda-feira, 31 de maio de 2021

NÃO IGNORE O VÍRUS. IGNORE O IGNORANTE

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro / A mão que afaga é a mesma que apedreja”. (ANJOS, Augusto dos. Versos Íntimos -1901)

A Lava-Jato, a maior operação anticorrupção de toda a história do Brasil, foi deflagrada na gestão de Dilma, a inolvidável. Em virtude de suas apurações, foram tirados de circulação centenas de maus elementos, entre políticos corruptos e empresários corruptores. Ironicamente, o condenado mais emblemático foi justamente o antecessor, criador e mentor da nefelibata da mandioca.

Graças à falta de vergonha na cara do povo brasileiro, o picareta dos picaretas passou míseros 580 dias numa cela VIP da PF em Curitiba. No final de 2019, por 6 votos a 5, o STF reverteu a jurisprudência que permitia a prisão de criminosos condenados em 2ª instância. Em abril último, provocado por uma estratégia mal ajambrada do togado supremo Luís Edson Fachin, o plenário decidiu, por 8 votos a 3, promover Lula de “ex-presidiário” a “ex-corrupto”, além de restabelecer seus direitos políticos.

Em 2018, o então candidato Jair Bolsonaro prometeu combater a corrupção na política e apoiar a Lava-Jato. Em 2020, o presidente Jair Bolsonaro disse que acabou com a Lava-Jato porque “não havia mais corrupção no governo”. Como assim, cara pálida?

Em novembro do ano passado, após 2 anos de investigações, o MP-RJ denunciou o filho mais velho do capitão, sua mulher, Fernanda, o ex-factótum do clã, Fabrício Queiroz, sua mulher, Márcia Aguiar, e uma dúzia de ex-assessores do gabinete de Zero Um por organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.

Observação: A denúncia, de 290 páginas, ainda aguarda análise do TJ-RJ. A demora em tornar réu o filho do pai se deve muito mais a “embargos procrastinatórios” apresentados pela defesa do acusado do que ao mérito das acusações. Luiza Souza Paes, ex-assessora de Flávio, já confessou ao MP a existência do esquema no gabinete do então deputado na Alerj (antes de se eleger senador, FB foi deputado federal pelo RJ por 3 mandatos consecutivos). Luiza apresentou extratos bancários e disse ter sido orientada a devolver a maior parte do que recebia como salário.

Investigados sob a suspeita de serem “fantasmas”, cinco ex-assessores do então deputado federal Jair Bolsonaro que tiveram o sigilo quebrado na investigação contra Zero Um receberam R$ 165 mil só em auxílios. Na última quinta-feira, 27, o TCU deu prazo de 5 dias para o Palácio do Planalto e o Ministério da Economia entregarem cópias dos documentos ainda ocultos doTratoraço” (esquema supostamente montado pelo presidente, no final do ano passado, para garantir sua sustentação na Câmara Federal e no Senado).

Como os parlamentares da família Bolsonaro sempre cultivaram o hábito de trocar assessores entre si, a investigação que envolve Flávio poderá se encontrar com as apurações sobre suspeitas semelhantes sobre seu irmão Carluxo. Na apuração das “rachadinhas” no gabinete do vereador carioca que dá expediente no Palácio do Planalto são investigados vários parentes da também investigada Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro, que “trabalhou” como assessora do enteado. Um dos casos apontados envolve Marta Valle, cunhada de Ana Cristina, que passou sete anos e quatro meses lotada no gabinete de Carlos Bolsonaro, mas afirmou à revista Época: “Não trabalhei em nenhum gabinete não”.

Em setembro, o Estadão revelou que Zero Dois também fez transações imobiliárias incomuns. Em 2003, quanto tinha 20 anos de idade, ele pagou R$ 150 mil em dinheiro vivo por um imóvel na Tijuca, zona norte do Rio. Seis anos depois, desembolsou um valor 70% abaixo do avaliado pela prefeitura na compra de um apartamento em Copacabana. As duas práticas — uso de dinheiro em espécie e declaração de compra de imóveis por preços inferiores aos de mercado para efeito do cálculo de imposto — costumam despertar suspeitas de lavagem de dinheiro e são, inclusive, pontos presentes na investigação contra o irmão mais velho. 

Carluxo é citado nada menos que 43 vezes no inquérito dos atos antidemocráticos e investigado por suspeitas de ser líder do chamado “gabinete do ódio” — grupo de assessores que disseminavam, nas redes sociais e grupos de apoiadores do presidente, fake news envolvendo ministros da corte e pedidos de fechamento do Congresso e do Supremo, além da volta do AI-5 e da ditadura militar com o capitão no comando da nação.

Observação: Para surpresa de ninguém, tanto o pai quanto os filhos negam as acusações e alegam perseguição política. No dia 31, ao fazer uma live, Jair Bolsonaro colocou em dúvida a imparcialidade do MP-RJ e questionou o que o órgão faria se o filho de um promotor fosse investigado por tráfico de drogas.

Depoimentos na CPMI das Fake News apontaram a participação de dois filhos do capitão e de assessores próximos à Famiglia Bolsonaro em campanhas na internet para atacar adversários com uso frequente de notícias falsas. Alvo de ataques em sites e redes sociais, a deputada federal Joice Hasselmann apresentou um dossiê à comissão em que aponta “milícias digitais”, ligadas ao presidente, que praticam ataques orquestrados a críticos de sua gestão.

O TSE passou a investigar a campanha presidencial de Jair Bolsonaro depois que uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo apontou que empresas compraram, sem declarar a Justiça Eleitoral, pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp. Segundo a lei eleitoral, um candidato pode divulgar conteúdo a seus eleitores se respeitar os termos de uso das plataformas digitais e pagar a essas redes sociais para alcançar fatias específicas do eleitorado. Mas esse dinheiro deve vir dos recursos do partido ou de doações de pessoas físicas, e não de empresas.

Observação: O envio em massa associado à disseminação de informações falsas pode levar, em última instância, à perda do mandato, pagamento de multa e exclusão do conteúdo falso. Não declarar esses gastos à Justiça Eleitoral pode ser também considerado caixa dois. O WhatsApp afirmou ter banido mais de 400 mil contas no Brasil, nos três meses anteriores ao pleito de 2018, por práticas que violam os termos de uso, como robôs para disseminar informações e criação automatizada de grupos. Em outubro do ano seguinte, a plataforma admitiu pela primeira vez a existência de envios de disparos em massa durante a campanha presidencial.

Eduardo Bolsonaro — o fritador de hambúrgueres que quase virou embaixador — é investigado por “suposta” violação da LSN em declarações postadas nas redes sociais e por pagamentos em dinheiro vivo na compra de dois apartamentos no Rio, em 2011 e 2016. Nem mesmo o caçula Jair Renan, que não tem mandato, foge à regra que baliza os “negócios da Famiglia”. No final do ano passado, o pimpolho articulou e participou de uma reunião entre o ministro Rogério Marinho e um grupo de empresários da Gramazini Granitos e Mármores — empresa que patrocina a Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, cuja sede fica num camarote do estádio Mané Garrincha. O compromisso, que não constava na agenda oficial de Marinho, foi revelado pela revista Veja. O ministro informou que o filho do chefe “participou na qualidade de ouvinte e por acreditar que o sistema construtivo teria potencial de reduzir custos para a União”, e que a reunião foi um pedido do Planalto.

ObservaçãoAs relações da empresa de Renan com o Planalto vão além de promover reuniões entre os investidores de seu negócio e ministros. Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, a Astronautas Filmes, produtora de audiovisual que possui contrato milionário com o Governo, realizou gratuitamente a cobertura da festa de inauguração da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia. Somente neste ano, a produtora recebeu R$ 1,4 milhão do governo federal. Em nota, a empresa afirma que não existe nenhum “laço de favorecimento”. O deputado federal Ivan Valente solicitou à PGR que investigue suposto tráfico de influência no caso.

Jair Bolsonaro, o autodeclarado “Messias que não miracula” que sempre disse ser um “defensor da família”, tem se mostrado realmente preocupado em proteger pelo menos uma delas: a própria. O primeiro passo foi articular a troca no comando da PF, em abril de 2020, com a exoneração do diretor-geral da entidade, o delegado Maurício Valeixo. O então ministro Sérgio Moro denunciou a maracutaia. Mais adiante, vieram à tona imagens da folclórica reunião ministerial em que o capitão-honestidade disse que não esperaria alguém “foder” a família dele, ou amigo, para trocar integrantes da “segurança”. A fala também fazia referências ao Rio de Janeiro, onde as investigações já roçavam os calcanhares dos filhos Flávio e Carlos.

O negacionismo psicótico que norteia as ações e omissões do (ainda) inquilino do Palácio do Planalto rendeu-lhe a pecha de pior líder mundial no enfrentamento da pandemia e uma parte substantiva dos 120 pedidos de impeachment que dormitam preguiçosamente sobre a mesa do deputado-réu e líder do Centrão Arthur Lira — que, ironicamente, foi guindado à presidência da Câmara graças ao apoio daquele que ao longo de toda a campanha à Presidência e durante o primeiro ano de sua funesta gestão teceu duras críticas ao toma-lá-dá-cá da “velha política”.

De médico e de louco todo mundo tem um pouco, diz o ditado. Mas doido de pedra que se preza come merda e rasga dinheiro. Bolsonaro pode ter seus arroubos psicóticos, mas não se deixem enganar: ele é um estrategista de mão cheia. Tosco, rude, primário, raso, mas tinhoso como Cheitã, o infernal. 

Logo depois de deixar o quartel pela porta dos funndos (acusado de indisciplina e insubordinação), o mau militar se elegeu vereador e dali a dois anos conquistou o primeiro de seus sete mandatos de deputado federal. Isso sem mencionar que uma extraordinária conjunção de fatores, entre os quais uma expressiva rejeição ao lulopetismo corrupto, colocou-o, em 2018, no gabinete mais cobiçado da Praça dos Três Poderes.

Fosse esta republiqueta de bananas uma democracia consolidada, a atual gestão teria sido interrompida quando o capitão da caverna sem luz trocou a Ciência pela Incompetência, nomeando ministro da Saúde um general triestrelado, supostamente especializado em logística, que não era capaz de diferenciar a porta do banheiro da porta de saída do gabinete. Demais disso, é no mínimo inaceitável um presidente trocar três vezes o comando da Saúde em meio à pandemia e manter no cargo, por dez longos meses, um ministro que não sabia sequer o que é o SUS. Claro que pesou na escolha a subserviência do fardado — que cuspiu nas estrelas de sua insígnia ao se sujeitar a servir de capacho para um comandante aluado. Mas isso é outra conversa.

A consequência dessa subserviência foi fatal para o Brasil. Em cerca de 10 meses de gestão, o ministro militarizou a pasta com quadros sem experiência em áreas estratégicas, não se consultou com especialistas para a tomada de decisões importantes, tentou esconder dados da pandemia e postergou medidas que poderiam ter salvado vidas. Enquanto o títere manobrado pelo maluco dançava, a pilha de cadáveres produzidos pela Covid crescia assustadoramente (de aproximadamente 15 mil para quase 300 mil). Por causa dessa tragédia, o agora ex-ministro se tornou alvo de uma série de investigações e peça chave na CPI do Genocídio no Senado.

Haveria muito mais a dizer, mas a extensão deste texto, comparável à da ignorância dos negacionistas de plantão, recomenda deixar o restante para uma próxima postagem e resumir em uns poucos parágrafos outras tantas considerações sobre a resposta da oposição à manifestação pró-governo do dia 23

No sabado 29, protestos pedindo o impeachment de Bolsonaro e a ampliação da oferta de vacinas se espalharam por centenas de cidades em quase todos os estados brasileiros, incluindo o distrito federal, e ganharam destaque em alguns dos principais jornais e televisões do mundo inteiro. A cobertura da imprensa internacional afirma que estes podem ter sido os maiores protestos no Brasil desde o início da pandemia, e aponta o momento de fragilidade do chefe do Executivo, que vê sua popularidade cair enquanto a média de mortes no país continua próxima de 2 mil por dia, e o total de vítimas fatais da Covid já passa de 460 mil. 

,O argumento de que Bolsonaro ofereceria mais risco à população do que o próprio vírus apareceu no francês Le Monde e no britânico Guardian. A agência de notícias Reuters classificou o capitão como “líder de extrema-direita”, disse que ele “minimizou a seriedade da pandemia, descartou o uso de máscaras e lançou dúvidas sobre a importância das vacinas”, e que sua popularidade “despencou durante a crise”. 

Tanto a Reuters quanto a BBC inglesa mencionaram o lamentável episódio na capital pernambucana — no qual a PM disparou balas de borracha e gás lacrimogêneo contra manifestantes, e a vereadora petista Liana Cirne foi agredida com spray de pimenta por um policial. Segundo familiares, os dois homens que foram atingidos nos olhos e perderam parte da visão tinham ido ao centro da cidade para trabalhar.

A queda de braço entre os dois extremos do espectro político-ideológico divide opiniões. Mas uma coisa é certa: o protesto do último sábado contra o governo se estendeu pelo país, deixando no chinelo o movimento pró-governo do dia 23, limitado à cidade do Rio de Janeiro. No entanto, para ser levado a sério, avalia Josias de Souza, o “Fora, Bolsonaro” deveria ser acompanhado de um Mourão já”, sem o que as manifestações que encheram o asfalto serviram para duas coisas: expor a falta de nexo da oposição e presentear o coronavírus com muitas aglomerações.

A exemplo de Bolsonaro, seus opositores contribuíram para elevar (ainda mais) o número de infectados e de mortos. Para quê? Ganha duas doses de vacina quem for capaz de responder. Que a popularidade do capitão derrete já se sabia. Ironicamente, Bolsonaro virou um desastre sozinho, dispensando o auxílio da oposição para se tornar um conto do vigário no qual 57,8 milhões de brasileiros caíram.

Bolsonaro vendeu-se como político antissistema e anticorrupção, mas comanda uma organização familiar com fins lucrativos e, por motivos já exaustivamente discutidos, acabou acorrentado ao sistêmico Centrão. A pandemia se encarregou de agregar um conteúdo fúnebre à inépcia do capitão: num primeiro momento, morria-se de Covid; depois que o Butantan e a Pfizer deixaram de entregar os milhões de doses que o Ministério da Saúde demorou a comprar, morre-se de falta de vacina.

Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade no atacado — embora Rodrigo Maia não tenha sido capaz de enxergá-los e Arthur Lira (ainda) não veja motivos para responsabilizá-lo. É isso que acontece quando se encarrega a raposa de tomar conta do galinheiro, e ela incumbe as outras raposas de investigar o sumiço das galinhas. 

Sobram razões para despejar o inquilino de turno do Palácio do Planalto. O que falta é interesse em levar a coisa às últimas consequências. Engana-se quem imagina que os organizadores dos protestos deste sábado estão interessados no impeachment. Os interesses ficarão mais nítidos à medida em que a CPI do Genocídio for se aproximando do final.

Seguindo as pistas que Bolsonaro deixou, a comissão estabelece conexões entre as mortes e o negacionismo do mandatário. Logo ficará claro que ele cometeu, por ação ou omissão, crime comum e crime de responsabilidade. O primeiro levará o relatório final da CPI à mesa do passador-de-pano-geral da República, a quem cabe processar o presidente junto ao STF. O segundo fará companhia aos 120 pedidos de impeachment que, como dito, dormitam placidamente na mesa do réu que preside a Câmara.

Ainda que Aras ou Lira decidissem abrir suas gavetas, o que não parece ser o caso, os processos só avançariam se 342 dos 513 deputados votassem contra o capitão. Mas os organizadores das manifestações de rua, majoritariamente simpáticos à candidatura de Lula, estão de olho nas urnas de 2022. Querem enfraquecer Bolsonaro, não trocá-lo por Mourão. Na outra ponta, os aliados do presidente no Centrão querem Bolsonaro fraco para arrancar dele mais verbas e cargos, não para retirá-lo do trono.

Num instante em que o Brasil se apavora com a terceira onda de uma pandemia que está prestes a produzir meio milhão de mortos, o ronco da rua é mero charlatanismo. Favorece apenas o vírus. Na articulação do impeachment de Bolsonaro, é tão eficaz quanto a cloroquina no tratamento da Covid.

Bolsonaro foi infectado pelo vírus que inocula a ilusão no organismo. Em fase de delírio, acha que é uma coisa, mas sua reputação revela que já se tornou outra coisa. Sobretudo depois que perdeu o monopólio do asfalto. Alheio a tudo, o imorrível, imbrochável e incomível pendurou nas redes sociais uma foto segurando uma camiseta com essas três palavras. Mas será mesmo?

Na política, a morte é anterior a si mesma. Às vezes, o sujeito já começou a morrer e não sabe. Bolsonaro, por exemplo, é um vivo tão pouco militante que o eleitor começa a lhe enviar coroas de flores — segundo o Datafolha, sua taxa de rejeição bateu em 54%.

A virilidade, quando é real, costuma ser exercitada em silêncio. A de Bolsonaro parece existir apenas no gogó. O imbrochável que prometia há semanas editar decreto para revogar medidas sanitárias restritivas brochou no instante em que protocolou no STF ação contra três estados sabendo que será derrotado.

Incomível? Em cartaz há apenas um mês, a CPI já desnudou o capitão falastrão. Uma mosca jura ter testemunhado, na intimidade do Alvorada, o instante em que o presidente colocou na vitrola a música do grupo Mamonas Assassinas cujo verso mais pungente fala do drama de uma alma atormentada que se meteu numa suruba: “Já me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém.”

Nem imorrível, nem imbrochável, nem incomível. Bolsonaro revela-se, na verdade, um rematado incompetente.