Atribui-se a Otto Von Bismarck a máxima segundo a qual “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis" e a Augusto Nunes a de que "o Brasil é um país com muitas leis e falta de vergonha na cara". Mas é impossível viver em sociedade sem observar determinadas regras, como a de que o direito de um vai até onde começa o direito do outro e vice-versa.
Até onde sabemos, as leis são feitas para melhorar a vida das pessoas, daí ser espantosa a quantidade de leis em vigor, neste país, que não melhoram coisa nenhuma e, ao mesmo tempo, conseguem piorar tudo.
Talvez essa idiossincrasia seja explicada (pelo menos em parte) pelo fato de os legisladores (agentes público-políticos que integram o poder Legislativo nas esferas municipais, estaduais e federais) criarem as leis como os açougueiros de Bismarck produziam as salsichas, e o Judiciário ― sobretudo suas mais altas esferas ― fazer o oposto do que é sua obrigação.
Imagino que tanto os membros do Legislativo quanto os do
Judiciário façam o que fazem porque estão metidos numa luta desesperada pela
sobrevivência do Brasil velho, corrupto, subdesenvolvido e desigual, paraíso
dos parasitas da máquina pública, da venda de favores e dos privilégios para
quem tem força, inimigo do trabalho, do talento e do mérito individual. Mas nada
destrói tanto o respeito pelos governos, dizia Einstein, do que a sua
incapacidade de fazer com que as leis sejam cumpridas. E é o risco que foi
construído no Brasil.
Vivemos numa democracia representativa, onde todo poder emana do povo e em seu nome é exercido — pausa para as gargalhadas — e a população interfere no funcionamento do governo através do voto, ainda que, dada a qualidade do nosso eleitorado, melhores resultados são obtidos através das redes sociais e manifestações populares.
Os 3 poderes da República — Executivo, Legislativo e Judiciário — são instituições independentes, cada qual com suas funções específicas. Aos nobres integrantes da Câmara Federal cabe elaborar e revisar as leis, de acordo com as demandas populares e os ditames da Constituição — podem rir de novo —, bem como cobrar as contas do Executivo, autorizar a abertura de processo de impeachment contra o presidente da República por crime de responsabilidade e por aí vai.
Aos conspícuos senadores compete aprovar a
escolha de magistrados, ministros do TCU, presidentes e diretores do Banco
Central, embaixadores e o Procurador Geral da República, bem como
autorizar operações financeiras de interesse da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos municípios, fixar limites da dívida pública e avaliar
periodicamente o funcionamento do Sistema Tributário Nacional. Adicionalmente,
suas insolências podem elaborar projetos de lei — que são debatidos e votados por seus pares e pelos membros
da Câmara —, bem como analisar, avaliar e aprovar ou rejeitar
projetos de lei propostos pelos deputados
federais ou pelo chefe do Executivo.
O Congresso Nacional (que é formado pela Câmara, Senado e TCU)
tem como principais atribuições votar medidas provisórias, vetos presidenciais,
leis de diretrizes orçamentárias e o orçamento geral da União, além de dar
posse ao presidente da República e seu vice, autorizá-los a se ausentar do país
por período superior a 15 dias, autorizar o presidente da República a declarar
guerra, celebrar a paz, permitir que forças estrangeiras entrem ou saiam do
país, aprovar o estado de defesa, a intervenção federal, o estado de sítio — e
suspender essas medidas —, deliberar sobre tratados, fixar a remuneração dos
parlamentares (a raposa tomando conta do galinheiro, como veremos mais
adiante), apreciar os atos de concessão de rádio e televisão, autorizar
referendos, convocar plebiscitos, aprovar iniciativas do Executivo no
que tange a atividades de energia nuclear, e por aí afora.
Observação: As atribuições do Congresso estão
especificadas nos artigos 48 e 49 da Constituição Federal,
sendo que aquelas elencadas no primeiro exigem a participação do Executivo
— mediante sanção
presidencial —, enquanto que as do segundo tratam de competências exclusivas do Congresso,
estabelecidas por meio de Decreto Legislativo. O presidente
do Senado acumula a função de presidente do Congresso,
o mandato é de 2 anos e, a despeito de os membros da mesa diretora das duas
Casas de leis não poderem ser reconduzidos aos mesmos cargos na eleição
imediatamente subsequente ao mandato, prevalece o entendimento de que essa
proibição não se aplica quando se trata de uma nova legislatura, de modo que
sua reeleição é, sim, possível.
A questão que se coloca é: como respeitar o poder público nesta banânia se o Código Penal diz que é proibido praticar crimes, mas o STF decide impedir a punição dos crimes praticado?
Cito como exemplo o absurdo que
aconteceu com a Lava-Jato, a "suspeição" de Sergio Moro,
as condenações de Lula em Curitiba — e o próprio Lula, que cumpriu
míseros 580 dias dos 26 anos e lá vai fumaça das penas que lhe foram
impostas em dois processos e ungido à
estapafúrdia condição de "ex-corrupto", que lhe permite vender aos convertidos
a ideia de que foi absolvido (quando na verdade não foi) porque era inocente
(quando na verdade não era).
Mudando de um ponto a outro (sem prejuízo de retomar o curso original no próximo post), há que dedicar meia dúzia de linhas a mais uma ação vergonhosa de um presidente que, tudo indica, nasceu com a único (e portanto precípuo) objetivo de diminuir aos olhos do mundo, o país que foi eleito para governar. E que, enquanto se desincumbe alegremente dessa tarefa, busca criar toda sorte de constrangimentos, como que se visasse sepultar a retomada econômica juntamente com os corpos das vítimas fatais da Covid. E que, num futuro distante (isso se houver futuro no país que, enquanto não aprender a votar, terá um enorme passado pela frente), terá o nome incluído nos dicionários como sinônimo de bucéfalo, cusco, caguira, mastafé, tratalhão...
No momento em que desembarcou do avião da FAB (que me fez lembrar os blindados fumacentos que a Marinha estacionou defronte à Câmara Federal, em agosto, horas antes da votação da famigerada "PEC do voto impresso auditável"), Bolsonaro parecia uma versão de carregação do Jeca Tatu. Por determinação do serviço secreto americano, teve de entrar no hotel pela porta dos fundos para evitar contato com manifestantes que gritavam na entrada: "Fora, Bolsonaro." À noite, foi obrigado a mastigar pizza com auxiliares na calça — o que poderia ser um dos melhores programas da cidade, mas ficar na porta do restaurante porque não pode entrar sem a comprovação da vacina é um vexame sem precedentes para um presidente de qualquer República que se preze. Não é sinal de populismo, nem de ser popular, mas de desleixo com as vidas alheias, que é a marca registrada do "mito".
Sob Bolsonaro, a imagem do Brasil no estrangeiro tornou-se um borrão no qual se misturam o vexame sanitário, os arroubos antidemocráticos, a estagnação econômica e a destruição ambiental — não necessariamente nessa ordem. O presidente realizou o pesadelo que frequentava os sonhos de Ernesto Araújo — para quem, se a atuação do governo bolsonarista fazia do Brasil "um pária internacional, então que sejamos fossemos esse pária."
Em matéria de diplomacia, Bolsonaro fez o pior o melhor que pôde. Conseguiu desfazer a boa imagem do Brasil no estrangeiro. Para começar a refazer o que desfez, teria de conciliar duas necessidades conflitantes: ser Bolsonaro e preservar minimamente o interesse nacional. Mas as manifestações prévias reforçam a suspeita de que o presidente e o interesse nacional são mesmo dois elementos inconciliáveis.
Só num país dirigido por um desequilibrado seria possível
ter acontecido a abjeta experiência que resultou em 200 mortes entre 645
pacientes de Covid que foram usados para uma pesquisa sobre os efeitos
da proxalutamida completamente fora de controle técnico, como acusa a Comissão
de Ética em Pesquisa. O endocrinologista Flavio Cadegiani, que agora
está sendo acusado na PGR por ter ampliado sem consulta a pesquisa inicialmente
aprovada, foi o criador do sistema de tratamento usado no aplicativo TrateCov,
que o governo também usou em Manaus no auge da crise de falta de oxigênio.
O que esperar de um governo cujo presidente se vangloria de
não se ter vacinado? O vexame internacional em que está se configurando mais
essa viagem de Bolsonaro teve um toque tupiniquim de burla das normas
sanitárias nova-iorquinas, com a churrascaria brazuca Fogo do Chão dando
demonstração de que o famoso "jeitinho brasileiro" pode sempre ser usado para
mau exemplo.
Depois de improvisar um "puxadinho" na calçada e
uma barreira para que Bolsonaro e seus convivas não fossem perturbados,
o restaurante serviu um churrasco bem brasileiro aos ilustres visitantes. Para
completar, o lutador Renzo Gracie acompanhou a comitiva brasileira na
caminhada de volta até o hotel, para evitar qualquer incômodo ao presidente. O
que não impediu que uma brasileira o saudasse com gritos de “genocida”.
Nova Iorque, governada pelo liberal — que significa
esquerdista nos Estados Unidos — Bill de Blasio, já havia atrapalhado a
entrega do prêmio Homem do Ano a Bolsonaro, pela Câmara de Comércio
Brasil-Estados Unidos, que aconteceria no Museu de História Natural, mas
acabou
não acontecendo porque o prefeito insinuou que não gostaria de ver aquele “homem
perigoso” ser homenageado numa instituição que recebia verba pública. Agora,
Blasio mandou um recado ao presidente do Brasil: se não se vacinou, não
precisa nem vir à cidade.
Salvou a pátria (figurativamente) o fato de a sede da ONU
ser território internacional dentro de Nova Iorque. Assim como Fidel Castro
não podia entrar no país, mas podia discursar na ONU,, o capitão não
precisou se vacinar para fazer seu "discurso em braile".
Talvez ele tenha usado essa metáfora para ironizar aqueles que não querem ver
as maravilhas que vem fazendo no Brasil. O mundo será, então, inundado de fake
news.
Como quem sai aos seu não degenera — ou "o fruto não
cai muito longo de pé", como queiram os leitores —, Jair Renan, que,
juntamente com seu papai e seus três irmãos mais velhos, compõe
o clã-presidencial de investigados, postou no Instagram um
vídeo em que aparece ao lado de uma gaveta repleta de armas (que
não podem ser identificadas como réplicas ou armamentos reais) e
escreveu: “Alô, CPI kkkkk”. No Twitter, o senador Alessandro
Vieira respondeu ao filho do presidente. “Apresentei requerimento
para convocar o senhor Jair Renan, para que ele possa dar pessoalmente um alô
para à CPI e preste esclarecimentos sobre seus
vínculos com o lobista Marconny Faria e supostas ameaças a
parlamentares. A lei vale para todos.”
Vivemos numa democracia capenga, mas, mesmo assim, regida
por leis. As leis podem ser boas ou ruins, necessárias ou inúteis, razoáveis ou
estúpidas. Se causam mais mal do que bem, elas podem — e devem — ser revogadas
e substituídas por outras que as corrijam. Mas é fundamental que sejam
cumpridas por todos e aplicadas a todos da mesma forma e com os mesmos critérios
— pouco importando se o cidadão é ex-presidente da República ou punguista
de feira, megaempresário ou ladrão de galinhas, médico-estuprador ou corretor zoológico
— e que as decisões tomadas hoje para este ou aquele tipo de caso ou circunstância
sejam iguais às que serão tomadas amanhã em casos e/ou situações análogas.
Qualquer pessoa com o Q.I. de um pé de alface é capaz de
entender a lógica de um sistema assim, mas nossos homens públicos preferem a
morte a se sujeitarem à previsibilidade da lei. E ninguém trabalha tanto para
manter a insegurança jurídica no Brasil do que o próprio Poder Judiciário.
Como esperar, então, coerência, lógica ou respeito às leis se procuradores,
promotores, juízes, desembargadores e ministros são os primeiros a rasgar essas
leis quando se trata de aplicá-las a si mesmos ou a seus “bandidos preferidos”?