sexta-feira, 24 de setembro de 2021

A LEI, ORA, A LEI.

Atribui-se a Otto Von Bismarck a máxima segundo a qual “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis" e a Augusto Nunes a de que "o Brasil é um país com muitas leis e falta de vergonha na cara". Mas é impossível viver em sociedade sem observar determinadas regras, como a de que o direito de um vai até onde começa o direito do outro e vice-versa.

Até onde sabemos, as leis são feitas para melhorar a vida das pessoas, daí ser espantosa a quantidade de leis em vigor, neste país, que não melhoram coisa nenhuma e, ao mesmo tempo, conseguem piorar tudo.

Talvez essa idiossincrasia seja explicada (pelo menos em parte) pelo fato de os legisladores (agentes público-políticos que integram o poder Legislativo nas esferas municipais, estaduais e federais) criarem as leis como os açougueiros de Bismarck produziam as salsichas, e o Judiciário ― sobretudo suas mais altas esferas ― fazer o oposto do que é sua obrigação.

Imagino que tanto os membros do Legislativo quanto os do Judiciário façam o que fazem porque estão metidos numa luta desesperada pela sobrevivência do Brasil velho, corrupto, subdesenvolvido e desigual, paraíso dos parasitas da máquina pública, da venda de favores e dos privilégios para quem tem força, inimigo do trabalho, do talento e do mérito individual. Mas nada destrói tanto o respeito pelos governos, dizia Einstein, do que a sua incapacidade de fazer com que as leis sejam cumpridas. E é o risco que foi construído no Brasil.

Vivemos numa democracia representativa, onde todo poder emana do povo e em seu nome é exercido — pausa para as gargalhadas — e a população interfere no funcionamento do governo através do voto, ainda que, dada a qualidade do nosso eleitorado, melhores resultados são obtidos através das redes sociais e manifestações populares. 

Os 3 poderes da República — ExecutivoLegislativo e Judiciário — são instituições independentes, cada qual com suas funções específicas. Aos nobres integrantes da Câmara Federal cabe elaborar e revisar as leis, de acordo com as demandas populares e os ditames da Constituição — podem rir de novo —, bem como cobrar as contas do Executivo, autorizar a abertura de processo de impeachment contra o presidente da República por crime de responsabilidade e por aí vai.

Aos conspícuos senadores compete aprovar a escolha de magistrados, ministros do TCU, presidentes e diretores do Banco Central, embaixadores e o Procurador Geral da República, bem como autorizar operações financeiras de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, fixar limites da dívida pública e avaliar periodicamente o funcionamento do Sistema Tributário Nacional. Adicionalmente, suas insolências podem elaborar projetos de lei — que são debatidos e votados por seus pares e pelos membros da Câmara —, bem como analisar, avaliar e aprovar ou rejeitar projetos de lei propostos pelos deputados federais ou pelo chefe do Executivo.

Congresso Nacional (que é formado pela CâmaraSenado e TCU) tem como principais atribuições votar medidas provisórias, vetos presidenciais, leis de diretrizes orçamentárias e o orçamento geral da União, além de dar posse ao presidente da República e seu vice, autorizá-los a se ausentar do país por período superior a 15 dias, autorizar o presidente da República a declarar guerra, celebrar a paz, permitir que forças estrangeiras entrem ou saiam do país, aprovar o estado de defesa, a intervenção federal, o estado de sítio — e suspender essas medidas —, deliberar sobre tratados, fixar a remuneração dos parlamentares (a raposa tomando conta do galinheiro, como veremos mais adiante), apreciar os atos de concessão de rádio e televisão, autorizar referendos, convocar plebiscitos, aprovar iniciativas do Executivo no que tange a atividades de energia nuclear, e por aí afora.

ObservaçãoAs atribuições do Congresso estão especificadas nos artigos 48 e 49 da Constituição Federal, sendo que aquelas elencadas no primeiro exigem a participação do Executivo — mediante sanção presidencial —, enquanto que as do segundo tratam de competências exclusivas do Congresso, estabelecidas por meio de Decreto Legislativo. O presidente do Senado acumula a função de presidente do Congresso, o mandato é de 2 anos e, a despeito de os membros da mesa diretora das duas Casas de leis não poderem ser reconduzidos aos mesmos cargos na eleição imediatamente subsequente ao mandato, prevalece o entendimento de que essa proibição não se aplica quando se trata de uma nova legislatura, de modo que sua reeleição é, sim, possível.

A questão que se coloca é: como respeitar o poder público nesta banânia se o Código Penal diz que é proibido praticar crimes, mas o STF decide impedir a punição dos crimes praticado? 

Cito como exemplo o absurdo que aconteceu com a Lava-Jato, a "suspeição" de Sergio Moro, as condenações de Lula em Curitiba — e o próprio Lula, que cumpriu míseros 580 dias dos 26 anos e lá vai fumaça das penas que lhe foram impostas em  dois processos e ungido à estapafúrdia condição de "ex-corrupto", que lhe permite vender aos convertidos a ideia de que foi absolvido (quando na verdade não foi) porque era inocente (quando na verdade não era).

Mudando de um ponto a outro (sem prejuízo de retomar o curso original no próximo post), há que dedicar meia dúzia de linhas a mais uma ação vergonhosa de um presidente que, tudo indica, nasceu com a único (e portanto precípuo) objetivo de diminuir aos olhos do mundo, o país que foi eleito para governar. E que, enquanto se desincumbe alegremente dessa tarefa, busca criar toda sorte de constrangimentos, como que se visasse sepultar a retomada econômica juntamente com os corpos das vítimas fatais da Covid. E que, num futuro distante (isso se houver futuro no país que, enquanto não aprender a votar, terá um enorme passado pela frente), terá o nome incluído nos dicionários como sinônimo de bucéfalo, cusco, caguira, mastafé, tratalhão...

No momento em que desembarcou do avião da FAB (que me fez lembrar os blindados fumacentos que a Marinha estacionou defronte à Câmara Federal, em agosto, horas antes da votação da famigerada "PEC do voto impresso auditável"), Bolsonaro parecia uma versão de carregação do Jeca Tatu. Por determinação do serviço secreto americano, teve de entrar no hotel pela porta dos fundos para evitar contato com manifestantes que gritavam na entrada: "Fora, Bolsonaro." À noite, foi obrigado a mastigar pizza com auxiliares na calça — o que poderia ser um dos melhores programas da cidade, mas ficar na porta do restaurante porque não pode entrar sem a comprovação da vacina é um vexame sem precedentes para um presidente de qualquer República que se preze. Não é sinal de populismo, nem de ser popular, mas de desleixo com as vidas alheias, que é a marca registrada do "mito".

Sob Bolsonaro, a imagem do Brasil no estrangeiro tornou-se um borrão no qual se misturam o vexame sanitário, os arroubos antidemocráticos, a estagnação econômica e a destruição ambiental — não necessariamente nessa ordem. O presidente realizou o pesadelo que frequentava os sonhos de Ernesto Araújo — para quem, se a atuação do governo bolsonarista fazia do Brasil "um pária internacional, então que sejamos fossemos esse pária."

Em matéria de diplomacia, Bolsonaro fez o pior o melhor que pôde. Conseguiu desfazer a boa imagem do Brasil no estrangeiro. Para começar a refazer o que desfez, teria de conciliar duas necessidades conflitantes: ser Bolsonaro e preservar minimamente o interesse nacional. Mas as manifestações prévias reforçam a suspeita de que o presidente e o interesse nacional são mesmo dois elementos inconciliáveis.

Só num país dirigido por um desequilibrado seria possível ter acontecido a abjeta experiência que resultou em 200 mortes entre 645 pacientes de Covid que foram usados para uma pesquisa sobre os efeitos da proxalutamida completamente fora de controle técnico, como acusa a Comissão de Ética em Pesquisa. O endocrinologista Flavio Cadegiani, que agora está sendo acusado na PGR por ter ampliado sem consulta a pesquisa inicialmente aprovada, foi o criador do sistema de tratamento usado no aplicativo TrateCov, que o governo também usou em Manaus no auge da crise de falta de oxigênio.

O que esperar de um governo cujo presidente se vangloria de não se ter vacinado? O vexame internacional em que está se configurando mais essa viagem de Bolsonaro teve um toque tupiniquim de burla das normas sanitárias nova-iorquinas, com a churrascaria brazuca Fogo do Chão dando demonstração de que o famoso "jeitinho brasileiro" pode sempre ser usado para mau exemplo.

Depois de improvisar um "puxadinho" na calçada e uma barreira para que Bolsonaro e seus convivas não fossem perturbados, o restaurante serviu um churrasco bem brasileiro aos ilustres visitantes. Para completar, o lutador Renzo Gracie acompanhou a comitiva brasileira na caminhada de volta até o hotel, para evitar qualquer incômodo ao presidente. O que não impediu que uma brasileira o saudasse com gritos de “genocida”.

Nova Iorque, governada pelo liberal — que significa esquerdista nos Estados Unidos — Bill de Blasio, já havia atrapalhado a entrega do prêmio Homem do Ano a Bolsonaro, pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, que aconteceria no Museu de História Natural, mas acabou não acontecendo porque o prefeito insinuou que não gostaria de ver aquele “homem perigoso” ser homenageado numa instituição que recebia verba pública. Agora, Blasio mandou um recado ao presidente do Brasil: se não se vacinou, não precisa nem vir à cidade.

Salvou a pátria (figurativamente) o fato de a sede da ONU ser território internacional dentro de Nova Iorque. Assim como Fidel Castro não podia entrar no país, mas podia discursar na ONU,, o capitão não precisou se vacinar para fazer seu "discurso em braile". Talvez ele tenha usado essa metáfora para ironizar aqueles que não querem ver as maravilhas que vem fazendo no Brasil. O mundo será, então, inundado de fake news.

Como quem sai aos seu não degenera — ou "o fruto não cai muito longo de pé", como queiram os leitores —, Jair Renan, que, juntamente com seu papai e seus três irmãos mais velhos, compõe o clã-presidencial de investigados, postou no Instagram um vídeo em que aparece ao lado de uma gaveta repleta de armas (que não podem ser identificadas como réplicas ou armamentos reais) e escreveu: “Alô, CPI kkkkk”. No Twitter, o senador Alessandro Vieira respondeu ao filho do presidente. “Apresentei requerimento para convocar o senhor Jair Renan, para que ele possa dar pessoalmente um alô para à CPI e preste esclarecimentos sobre seus vínculos com o lobista Marconny Faria e supostas ameaças a parlamentares. A lei vale para todos.”

Vivemos numa democracia capenga, mas, mesmo assim, regida por leis. As leis podem ser boas ou ruins, necessárias ou inúteis, razoáveis ou estúpidas. Se causam mais mal do que bem, elas podem — e devem — ser revogadas e substituídas por outras que as corrijam. Mas é fundamental que sejam cumpridas por todos e aplicadas a todos da mesma forma e com os mesmos critérios — pouco importando se o cidadão é ex-presidente da República ou punguista de feira, megaempresário ou ladrão de galinhas, médico-estuprador ou corretor zoológico — e que as decisões tomadas hoje para este ou aquele tipo de caso ou circunstância sejam iguais às que serão tomadas amanhã em casos e/ou situações análogas.

Qualquer pessoa com o Q.I. de um pé de alface é capaz de entender a lógica de um sistema assim, mas nossos homens públicos preferem a morte a se sujeitarem à previsibilidade da lei. E ninguém trabalha tanto para manter a insegurança jurídica no Brasil do que o próprio Poder Judiciário. Como esperar, então, coerência, lógica ou respeito às leis se procuradores, promotores, juízes, desembargadores e ministros são os primeiros a rasgar essas leis quando se trata de aplicá-las a si mesmos ou a seus “bandidos preferidos”?