Na seara oposicionista sobram vaidades, ressentimentos e a ideia de reeditar o clima da campanha das Diretas Já, que entre 1983 e 1984 levou multidões às ruas num chamamento à união nacional em prol da eleição de um civil no Colégio Eleitoral de 1985 ― após a derrota no Congresso da emenda Dante de Oliveira, que instituía eleições diretas.
Lá se vão quase quarenta anos e com eles uma distância monumental entre o país da época e o Brasil de hoje, onde a inexistência de um pré-requisito para a repetição daquele tipo de movimento desaconselharia a fixação do olhar no retrovisor — insistir nesse caminho inviabiliza a adoção de uma estratégia eficaz para a realização do objetivo comum de livrar o Brasil de mais quatro anos sob Bolsonaro ou, numa hipótese remota, da interrupção de seu mandato.
Em 83/84, a bandeira era única e já vinha sendo levantada em campanhas anteriores, como a da anistia. Além disso, as forças políticas não tinham vivido embates entre si. Havia um inimigo comum, o regime autoritário. Agora, pode-se argumentar, o arbítrio de novo se apresenta como risco a ser evitado, mas a situação é diferente.
Nessas quase quatro décadas houve disputas
eleitorais, ocorreram dois impeachments, o PT enterrou sua mítica de
reserva ética nos escândalos do mensalão e da Petrobras, as negociatas entre
políticos e empresários não haviam sido expostas pela Lava-Jato nem
tinha sido introduzida no cenário a dinâmica do “nós contra eles”
instituída pelo demiurgo de Garanhuns e incorporada pelo Caronte da Covid.
Tudo isso divide, mas são as dores da democracia — suportáveis
e até desejáveis ante a alternativa do sufocamento das ditaduras. Em situações
difíceis, contudo, as divergências precisam ser politicamente conduzidas e
adaptadas à nova era, em que não estão mais em cena aquelas grandes figuras
credenciadas ao comando de mobilização da sociedade por atributos de habilidade,
experiência, espírito público, conduta moral e capacidade de liderança.
A composição das divergências, a tolerância e a contenção
dos atos ao limite da legalidade movimentam as engrenagens institucionais. O
isolamento e o apego a crenças paralisam. Quem ironiza “a turma das
instituições estão funcionando”, achando que com isso enxerga o que a
maioria não vê, contribui para minar a confiança nas balizas democráticas a ser
defendidas. A semeadura do descrédito quem faz é o adversário a ser combatido.
Fala-se tanto em inclusão social, mas não se vê esforço na
superação do sectarismo exacerbado ao qual se dá o nome de polarização. Embora
seja natural que a esquerda não queira se associar a atos onde há um boneco
inflável de Lula vestido de presidiário e que o centro e a direita
civilizada resistam a pôr azeitona na empada da petralhada, com um pouco de
inspiração, muita transpiração e disposição ao desapego é possível chegar lá, até
porque tronou-se impossível suportar esse negacionista-sociopata-golpista
seguir destruindo nossa democracia, nossa economia, nossas vidas...
Não bastasse substituir Mandetta por Teich — que
desembarcou da canoa furada antes de completar um mês a bordo, ensinando-nos
que a
vida é feita de escolhas — e este por um fardado tido e havido como o obelisco
da logística, mas que era incapaz de amarrar os coturnos sem pedir a benção do
chefe — ensinando-nos que é simples assim: "um
manda e o outro obedece" —, Bolsonaro escolheu para
preposto da vez mais um vassalo que, ao invés de corrigir os erros do
incompetente que o antecedeu, adota o negacionismo a serviço do bolsonarismo
boçal e — a cereja do bolo! — usa adolescentes para criar uma
tripla cortina de fumaça visando ocultar os persistentes e cada vez mais graves
erros do governo no combate à pandemia.
Enquanto demoniza a CoronaVac e promove motociatas e aglomerações
— chegando mesmo a retirar a máscara do rosto de uma criança de colo e a
sinalizar a outra que fizesse o mesmo em meio a uma multidão —, Bolsonaro
se comporta como um galo egocêntrico, que acha que o sol nasce para ouvi-lo
cantar, quando na verdade é ele que canta porque o sol nasce. Mas toda
araruta tem seu dia de mingau, e a semana chegou ao fim com a revelação do Datafolha
de que o amor do capitão pela mentira nunca foi tão correspondido.
A grossa maioria do eleitorado (85%) ouve o presidente com a
pulga atrás da orelha — 57% nunca confiam naquilo que ele declara, 28% confiam
só de vez em quando e apenas uma minoria (15%) confia 100% no que escorre dos
lábios do suposto chefe da nação, que opera num mundo com duas verdades: a dele
e a verdadeira. O primeiro Bolsonaro personifica a nova política,
abomina a corrupção, afugenta o comunismo e cultua um versículo do Evangelho
de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará".
O Bolsonaro retratado pelo Datafolha é parecido com o primeiro,
só que mente um pouco, e seu desapreço pelos fatos acabou convertendo-o numa
espécie de fake presidente. Mas justiça se lhe faça: ninguém chega a tal
posição por acaso.
Não é que o personagem flerta esporadicamente com a
inverdade. É preciso reconhecer que o progresso de Bolsonaro está
alicerçado na mentira. Enquanto o Brasil piora, as finanças da Famiglia
Bolsonaro não param de melhorar. O clã presidencial prosperou na vida pelo
trabalho duro — trabalho do contribuinte, naturalmente. O capo é um grande
defensor do patriotismo e da instituição familiar. Educou os filhos para amar a
bandeira verde e amarela. Seus rebentos não hesitaram em seguir os passos do
pai. Casaram-se com a pátria e foram morar no déficit público.
Bolsonaro se refugiou num contracheque do Estado pela
primeira vez aos 18 anos, quando entrou para o Exército. Hoje, à frente do
governo civil mais militar da história, jacta-se da origem castrense, embora
tenha sido expurgado do quartel pela porta dos fundo apenas 15 anos depois de
sentar praça. Político há 32 anos, ele acumula mais tempo de rachadinha do que
de farda; presidente há quase três, faz aos brasileiros o favor de se
sacrificar pelo bem da coletividade. Queixou-se em 21 de julho: "Costumo
dizer aos meus amigos: não queiram essa cadeira, que isso aqui tem Kryptonita,
brocha o Super-homem, que dirá eu!" Há uma semana, reclamou:
"A vida de presidente não é fácil. Se alguém quiser trocar comigo,
troco agora."
Para Bolsonaro, a Presidência é "uma missão
de Deus." Sem receio de que a CPI o convoque para uma acareação
com o Todo-Poderoso, o capitão se oferece para resolver até os problemas que o
brasileiro não sabia que tinha, como o comunismo. Na última sexta-feira, de
passagem por Minas Gerais, o morubixaba tranquilizou a aldeia: "Uma
das coisas que mais me confortam é saber que naquela minha cadeira lá em
Brasília não está sentado um comunista." Confirmou que estará em
Nova York na próxima terça, quando
discursará na abertura da Assembleia Geral da ONU. Anunciou que dirá
algumas "verdades" sobre o Brasil.
Antes mesmo de ouvir as "verdades" que Bolsonaro
despejará sobre a tribuna da ONU, o brasileiro, já vacinado contra as
mentiras do orador, percebe que a vida de presidente é muito fácil, difícil é
ser presidido diariamente por ele. Se a passagem do capitão pelo Planalto serve
para alguma coisa é para provar que governar o Brasil não é tão difícil. O
horário é bom, o dinheiro é razoável, viaja-se de graça para Nova York,
passeia-se de moto nos finais de semana, e há sempre a possibilidade de demitir
o ministro Marcelo Queiroga, o que deve proporcionar uma sensação muito
boa.
Bolsonaro conseguiu realizar o prodígio de reverter o Brasil aos anos 1990 em relação ao consumo de proteína animal e atirar 40% da população na chamada "insegurança alimentar" — condição em que uma pessoa ou não faz as três refeições diárias adequadamente ou sequer come todos os dias. Sob o desgoverno do capitão, cresce a cada dia o número de brasileiros que recorrem à tripa bovina e suína e asas e pés de aves para agregar proteína animal à alimentação.
Refeições que estão sendo preparadas, aliás, em fogões
à lenha por causa do preço do gás. Em breve — que ninguém duvide —, além
dos milhões de lares com a energia elétrica cortada por falta de pagamento,
teremos outros milhões iluminando os cômodos com velas e lanternas. Mais: o
tempo dos carros populares passou — seja pelo preço dos modelos novos ou
usados, seja pelo valor absurdo dos combustíveis. Preparemo-nos para voltar a
conviver com bicicletas e carroças.
Quem imagina que 600 mil mortos por Covid é o que há de pior na catástrofe que atente por governo Bolsonaro, ou a insistência insana desse "governante" emplacar um golpe de Estado, colocando fim à nossa jovem democracia, não perde por esperar. Imaginar que a proximidade das eleições de 2022 e sua iminente derrota para o meliante de São Bernardo fará com que o amigão do Queiroz não retome as hostilidades contra a democracia é o mesmo que acreditar na inocência da alma viva mais honesta do Brasil.
Com isso, o dólar continuará nas alturas e
a pressão inflacionária crescerá como o patrimônio do Clã das Rachadinhas.
Para piorar o que já é ruim, o Banco Central elevará os juros, diminuindo a
atividade econômica e conduzindo o país para um dos piores — senão o pior — quarto
ano de governo desde a redemocratização.
Por uma trapaça da sorte, Bolsonaro acredita que a falta do voto impresso desvirtuará as urnas eletrônicas que já lhe concederam tantos mandatos eletivos. Dias atrás, em resposta às mentiras sobre o voto auditável que o presidente repetiu nos palanques de 7 de Setembro, o ministro Luís Roberto Barroso chamou-o de "farsante".
Ecoando a maioria
que se expressou por meio do Datafolha, o presidente de turno da corte
eleitoral disse que o lema do chefe do Executivo é diferente daquele que está
anotado em João 8:32. "Conhecereis a mentira, e a mentira vos
aprisionará", declarou o magistrado, que pode ter soado premonitório.
Toda araruta tem seu dia de mingau. A CPI do Genocídio já prepara o relatório final, que contará com a colaboração de juristas insuspeitos, como Miguel Reale Júnior. Bolsonaro deixou de ser um caso de impeachment para
se tornar um caso de polícia, de interdição e internação — e não na semana que
vem ou no mês que vem, mas já.
Com Dora Kramer, Josias de Souza e Ricardo Kertzman