segunda-feira, 20 de setembro de 2021

INTERDIÇÃO JÁ!

Como o sapo, que não pula por boniteza, mas por precisão, Bolsonaro viu-se diante de duas opções: ou se desculpava, ou amargava o risco de o impeachment se tornar uma possibilidade (ainda mais) real. 

Mas o confronto das manifestações de 7 e 12 de setembro não quer dizer grande coisa. Nem o presidente está com a vida ganha porque 150 mil muares bateram os cascos na mais paulista das avenidas, nem os que o querem ver pelas costas estão numa batalha perdida porque reuniram míseros 6 mil manifestantes, na mesma hora e local, cinco dias depois. 

Por outro lado, o contraste evidencia que a oposição vai precisar comer muito feijão para levar sua vontade às ruas de maneira contundente, já que os propósitos que amarram os defensores do "mito" uns aos outros, a capacidade de mobilizar recursos (públicos, inclusive), a existência de um rosto e de uma voz na figura do capitão a falar por eles são alguns dos fatores que faltam aos opositores.

Na seara oposicionista sobram vaidades, ressentimentos e a ideia de reeditar o clima da campanha das Diretas Já, que entre 1983 e 1984 levou multidões às ruas num chamamento à união nacional em prol da eleição de um civil no Colégio Eleitoral de 1985  após a derrota no Congresso da emenda Dante de Oliveira, que instituía eleições diretas. 

Lá se vão quase quarenta anos e com eles uma distância monumental entre o país da época e o Brasil de hoje, onde a inexistência de um pré-requisito para a repetição daquele tipo de movimento desaconselharia a fixação do olhar no retrovisor — insistir nesse caminho inviabiliza a adoção de uma estratégia eficaz para a realização do objetivo comum de livrar o Brasil de mais quatro anos sob Bolsonaro ou, numa hipótese remota, da interrupção de seu mandato.

Em 83/84, a bandeira era única e já vinha sendo levantada em campanhas anteriores, como a da anistia. Além disso, as forças políticas não tinham vivido embates entre si. Havia um inimigo comum, o regime autoritário. Agora, pode-se argumentar, o arbítrio de novo se apresenta como risco a ser evitado, mas a situação é diferente. 

Nessas quase quatro décadas houve disputas eleitorais, ocorreram dois impeachments, o PT enterrou sua mítica de reserva ética nos escândalos do mensalão e da Petrobras, as negociatas entre políticos e empresários não haviam sido expostas pela Lava-Jato nem tinha sido introduzida no cenário a dinâmica do “nós contra eles” instituída pelo demiurgo de Garanhuns e incorporada pelo Caronte da Covid.

Tudo isso divide, mas são as dores da democracia — suportáveis e até desejáveis ante a alternativa do sufocamento das ditaduras. Em situações difíceis, contudo, as divergências precisam ser politicamente conduzidas e adaptadas à nova era, em que não estão mais em cena aquelas grandes figuras credenciadas ao comando de mobilização da sociedade por atributos de habilidade, experiência, espírito público, conduta moral e capacidade de liderança.

A composição das divergências, a tolerância e a contenção dos atos ao limite da legalidade movimentam as engrenagens institucionais. O isolamento e o apego a crenças paralisam. Quem ironiza “a turma das instituições estão funcionando”, achando que com isso enxerga o que a maioria não vê, contribui para minar a confiança nas balizas democráticas a ser defendidas. A semeadura do descrédito quem faz é o adversário a ser combatido.

Fala-se tanto em inclusão social, mas não se vê esforço na superação do sectarismo exacerbado ao qual se dá o nome de polarização. Embora seja natural que a esquerda não queira se associar a atos onde há um boneco inflável de Lula vestido de presidiário e que o centro e a direita civilizada resistam a pôr azeitona na empada da petralhada, com um pouco de inspiração, muita transpiração e disposição ao desapego é possível chegar lá, até porque tronou-se impossível suportar esse negacionista-sociopata-golpista seguir destruindo nossa democracia, nossa economia, nossas vidas...

Não bastasse substituir Mandetta por Teich — que desembarcou da canoa furada antes de completar um mês a bordo, ensinando-nos que a vida é feita de escolhas — e este por um fardado tido e havido como o obelisco da logística, mas que era incapaz de amarrar os coturnos sem pedir a benção do chefe — ensinando-nos que é simples assim: "um manda e o outro obedece" —, Bolsonaro escolheu para preposto da vez mais um vassalo que, ao invés de corrigir os erros do incompetente que o antecedeu, adota o negacionismo a serviço do bolsonarismo boçal e — a cereja do bolo! — usa adolescentes para criar uma tripla cortina de fumaça visando ocultar os persistentes e cada vez mais graves erros do governo no combate à pandemia.

Enquanto demoniza a CoronaVac e promove motociatas e aglomerações — chegando mesmo a retirar a máscara do rosto de uma criança de colo e a sinalizar a outra que fizesse o mesmo em meio a uma multidão —, Bolsonaro se comporta como um galo egocêntrico, que acha que o sol nasce para ouvi-lo cantar, quando na verdade é ele que canta porque o sol nasce. Mas toda araruta tem seu dia de mingau, e a semana chegou ao fim com a revelação do Datafolha de que o amor do capitão pela mentira nunca foi tão correspondido.

A grossa maioria do eleitorado (85%) ouve o presidente com a pulga atrás da orelha — 57% nunca confiam naquilo que ele declara, 28% confiam só de vez em quando e apenas uma minoria (15%) confia 100% no que escorre dos lábios do suposto chefe da nação, que opera num mundo com duas verdades: a dele e a verdadeira. O primeiro Bolsonaro personifica a nova política, abomina a corrupção, afugenta o comunismo e cultua um versículo do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". O Bolsonaro retratado pelo Datafolha é parecido com o primeiro, só que mente um pouco, e seu desapreço pelos fatos acabou convertendo-o numa espécie de fake presidente. Mas justiça se lhe faça: ninguém chega a tal posição por acaso.

Não é que o personagem flerta esporadicamente com a inverdade. É preciso reconhecer que o progresso de Bolsonaro está alicerçado na mentira. Enquanto o Brasil piora, as finanças da Famiglia Bolsonaro não param de melhorar. O clã presidencial prosperou na vida pelo trabalho duro — trabalho do contribuinte, naturalmente. O capo é um grande defensor do patriotismo e da instituição familiar. Educou os filhos para amar a bandeira verde e amarela. Seus rebentos não hesitaram em seguir os passos do pai. Casaram-se com a pátria e foram morar no déficit público.

Bolsonaro se refugiou num contracheque do Estado pela primeira vez aos 18 anos, quando entrou para o Exército. Hoje, à frente do governo civil mais militar da história, jacta-se da origem castrense, embora tenha sido expurgado do quartel pela porta dos fundo apenas 15 anos depois de sentar praça. Político há 32 anos, ele acumula mais tempo de rachadinha do que de farda; presidente há quase três, faz aos brasileiros o favor de se sacrificar pelo bem da coletividade. Queixou-se em 21 de julho: "Costumo dizer aos meus amigos: não queiram essa cadeira, que isso aqui tem Kryptonita, brocha o Super-homem, que dirá eu!" Há uma semana, reclamou: "A vida de presidente não é fácil. Se alguém quiser trocar comigo, troco agora."

Para Bolsonaro, a Presidência é "uma missão de Deus." Sem receio de que a CPI o convoque para uma acareação com o Todo-Poderoso, o capitão se oferece para resolver até os problemas que o brasileiro não sabia que tinha, como o comunismo. Na última sexta-feira, de passagem por Minas Gerais, o morubixaba tranquilizou a aldeia: "Uma das coisas que mais me confortam é saber que naquela minha cadeira lá em Brasília não está sentado um comunista." Confirmou que estará em Nova York na próxima terça, quando discursará na abertura da Assembleia Geral da ONU. Anunciou que dirá algumas "verdades" sobre o Brasil.

Antes mesmo de ouvir as "verdades" que Bolsonaro despejará sobre a tribuna da ONU, o brasileiro, já vacinado contra as mentiras do orador, percebe que a vida de presidente é muito fácil, difícil é ser presidido diariamente por ele. Se a passagem do capitão pelo Planalto serve para alguma coisa é para provar que governar o Brasil não é tão difícil. O horário é bom, o dinheiro é razoável, viaja-se de graça para Nova York, passeia-se de moto nos finais de semana, e há sempre a possibilidade de demitir o ministro Marcelo Queiroga, o que deve proporcionar uma sensação muito boa.

Bolsonaro conseguiu realizar o prodígio de reverter o Brasil aos anos 1990 em relação ao consumo de proteína animal e atirar 40% da população na chamada "insegurança alimentar" — condição em que uma pessoa ou não faz as três refeições diárias adequadamente ou sequer come todos os dias. Sob o desgoverno do capitão, cresce a cada dia o número de brasileiros que recorrem à tripa bovina e suína e asas e pés de aves para agregar proteína animal à alimentação. 

Refeições que estão sendo preparadas, aliás, em fogões à lenha por causa do preço do gás. Em breve — que ninguém duvide —, além dos milhões de lares com a energia elétrica cortada por falta de pagamento, teremos outros milhões iluminando os cômodos com velas e lanternas. Mais: o tempo dos carros populares passou — seja pelo preço dos modelos novos ou usados, seja pelo valor absurdo dos combustíveis. Preparemo-nos para voltar a conviver com bicicletas e carroças.

Quem imagina que 600 mil mortos por Covid é o que há de pior na catástrofe que atente por governo Bolsonaro, ou a insistência insana desse "governante" emplacar um golpe de Estado, colocando fim à nossa jovem democracia, não perde por esperar. Imaginar que a proximidade das eleições de 2022 e sua iminente derrota para o meliante de São Bernardo fará com que o amigão do Queiroz não retome as hostilidades contra a democracia é o mesmo que acreditar na inocência da alma viva mais honesta do Brasil

Com isso, o dólar continuará nas alturas e a pressão inflacionária crescerá como o patrimônio do Clã das Rachadinhas. Para piorar o que já é ruim, o Banco Central elevará os juros, diminuindo a atividade econômica e conduzindo o país para um dos piores — senão o pior — quarto ano de governo desde a redemocratização.

Por uma trapaça da sorte, Bolsonaro acredita que a falta do voto impresso desvirtuará as urnas eletrônicas que já lhe concederam tantos mandatos eletivos. Dias atrás, em resposta às mentiras sobre o voto auditável que o presidente repetiu nos palanques de 7 de Setembro, o ministro Luís Roberto Barroso chamou-o de "farsante". 

Ecoando a maioria que se expressou por meio do Datafolha, o presidente de turno da corte eleitoral disse que o lema do chefe do Executivo é diferente daquele que está anotado em João 8:32. "Conhecereis a mentira, e a mentira vos aprisionará", declarou o magistrado, que pode ter soado premonitório.

Toda araruta tem seu dia de mingau. A CPI do Genocídio já prepara o relatório final, que contará com a colaboração de juristas insuspeitos, como Miguel Reale JúniorBolsonaro deixou de ser um caso de impeachment para se tornar um caso de polícia, de interdição e internação — e não na semana que vem ou no mês que vem, mas já.

Com Dora Kramer, Josias de Souza e Ricardo Kertzman