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sexta-feira, 22 de abril de 2022

A VIDA É FEITA DE ESCOLHAS...


A vida é feita de escolhas, escolhas têm consequências e o problema com as consequências é que elas sempre vêm depois. Numa encruzilhada da vida, se escolhermos virar à direita, abdicamos de seguir em frente ou a esquerda, por exemplo. Quando o resultado não é o esperado, somos assombrados pelo bendito “se”. 


O presente nada mais é senão a consequência da somatória das escolhas que fizemos no passado, mas o futuro do pretérito, também chamado pelos gramáticos de condicional, referencia um presente que poderia ter existido se nossas escolhas fossem outras. 


Em 2018, fomos meio que obrigados a apoiar o bolsonarismo boçal para evitar a volta do lulopetismo corrupto, e a consequência foi o calvário que já dura três anos e quatro meses e, pior, pode ser prorrogado por mais quatro anos — ou sabe-se lá por quanto tempo mais; em se tratando de Bolsonaro, a única perspectiva impossível é a de uma gestão competente de pautada pela probidade.

 

Foi também em 2018 que Sergio Moro escolheu abandonar a magistratura em troca de um ministério no futuro governo, edulcorado pela promessa de uma cadeira no STF. Como consequência, o ex-juiz foi privado do Coaf e obrigado a reverter nomeações, enquanto seu projeto anticorrupção era desmontado. Por algum tempo, ele fingiu não ver, tentou relativizar, mas não se sujeitou ao papel de consultor jurídico informal do enrolado clã presidencial e acabou tendo de engolir sapos e beber a água da lagoa. 

 

Moro abandou a canoa que deveria saber ser furada para tentar salvar o prestígio que ainda lhe restava. Mas já era tarde demais. Odiado por Lula e seus abjetos sectários, viu-se tachado de traidor pelos igualmente abjetos baba-ovos do “mito” de fancaria. A indicação para o STF jamais aconteceu. Segundo a narrativa palaciana, o então magistrado vinculara seu embarque no governo à suprema toga, quando na verdade foi Bolsonaro que lhe prometera a dita-cuja como forma de tê-lo a bordo e de cativar o eleitorado avesso à roubalheira lulopetista. 


Passados dois anos da demissão de Moro — ele “não saiu atirando”, apenas relatou um fato que, se não era público, tornou-se notório depois que o então decano do STF retirou o sigilo da gravação da reunião ministerial de 22 de abril de 2020, o inquérito instaurado para investigar a interferência criminosa de Bolsonaro na PF deu em nada (a exemplo de tantas outras envolvendo o sultão do Bolsonaristão). 


Nesse entretempo, o presidente que, quando candidato, prometeu pegar em lanças contra a corrupção e a velha política do toma-lá-dá-cá, cometeu toda sorte de barbaridades. Flertou incontáveis vezes com o autogolpe. Chamou o presidente do TSE de filho da puta e um ministro do STF de canalha. Tornou-se alvo de mais de 140 pedidos de impeachment e de uma dezena de inquéritos. Quatro de seus cinco filhos são igualmente investigados. Mais recentemente, vieram a lume evidências gritantes de corrupção no MEC. 


Observação: Ontem, a cereja do bolo: sua alteza irreal anistiou o deputado troglodita baba-ovos Daniel Silveira antes mesmo que a condenação transitasse em julgado. Mais uma vez, o sociopata estica a corda. Se será enforcado com ela ou se a pusilanimidade do STF permitir-lhe-á sair impune, com vem acontecendo desde sempre, só o tempo dirá. O pouco tempo que falta até as cada vez mais próximas eleições. Se alguém acha que esse sujeito vai mesmo largar o osso se assim decidir a ospália votante, esse alguém está redondamente enganado.

 

Políticos pegos com manchas de batom na cueca sempre têm alguma desculpa idiota. Lula se disse traído; Dilma, indignada; Bolsonaro afirma não pode saber de tudo — e para evitar que se venha a saber de (mais) alguma coisa que o desabone, decreta sigilo sobre fatos de interesse público. 


Em julho do ano passado, o Planalto impôs um segredo de 100 anos sobre informações dos crachás de acesso em nome dos filhos 02 e 03. Um cumpre na sede do governo federal (diz-se que no “gabinete do ódio”) seu quinto mandato de vereador, quando deveria dar expediente na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O outro é deputado federal por São Paulo, mas acompanha o pai em viagens internacionais, frita hambúrguer nas horas vagas e chegou a ser cotado para chefiar a embaixada do Brasil nos EUA.

 

Em janeiro de 2021, o Planalto decretou 100 anos de sigilo cartão de vacinação do mandatário negacionista e antivacina, a pretexto de os dados dizerem respeito "à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem do presidente”. Em junho de 2021, mandou o Exército impor sigilo de 100 anos ao processo interno isentou de punição o então general da ativa Eduardo Pazuello


Dias atrás, o GSI repetiu a dose em relação às visitas dos pastores Arilton Moura e Gilmar Santos ao Planalto, alegando que “a divulgação poderia colocar em risco a vida do presidente da República e de seus familiares”. Pressionado, o gabinete comandado pelo general Augusto Heleno liberou os registros, que apontam mais de 30 acessos. O pastor Arilton visitou gabinetes de Mourão, ministros e do responsável pela agenda de Bolsonaro; o pastor Gilmar esteve pelo menos 10 vezes na sede do governo. Detalhe: ambos voltaram ao Planalto mesmo após pedido de apuração

 

Voltando a Sergio Moro — que deve estar tão arrependido de ter aceitado participar deste espúrio governo quanto Lula de ter feito Dilma sua sucessora —, lulistas, bolsonaristas, magistrados ditos “garantistas” e parte da mídia promoveram a párias o ex-juiz federal e o ex-coordenador do braço paranaense da maior operação anticorrupção da história desta banânia, que colocou na cadeia dezenas de empresário e políticos que se locupletaram nos governos petistas. 


No Brasil, a corrupção é como a Hidra de Lerna — bicharoco mitológico com corpo de dragão, hálito venenoso e nove cabeças de serpente capazes de se regenerar. Tudo ia de vento em popa até que, um belo dia, o semideus togado que manda e desmanda no STF virou a casaca, passando de apoiador a inimigo figadal da Lava-Jato. E o resto é história recente.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

A VIDA É FEITA DE ESCOLHAS (PARTE 4)

Entre as seis razões que Bolsonaro alegou para indultar Daniel Silveira destaca-se a "comoção social": "Considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão (...)"


De acordo com o professor e historiador Marco Antonio Villa, Bolsonaro tem problemas cognitivos; para o jornalista Ricardo Noblat, ele não domina bem o português — a exemplo de quem escreve seus pronunciamentos — e não se sabe exatamente qual o sentido que ele atribui à palavra “comoção”. 


Quando o presidente proferiu esse destino, a grande preocupação dos paulistas e cariocas era o carnaval (o Brasil se tornou um país tão surpreendente que o fato do reinado de Momo coincidir com o feriado de Tiradentes não chega a surpreender). 


O STF ainda não decidiu como se comportar em mais uma batalha que trava contra um mandatário medíocre, carente de votos para se reeleger e aparentemente disposto a tudo. Talvez seja mais prudente deixar as coisas esfriarem. Mas a pergunta que é: Que coisas? A euforia da caterva com a “atitude de macho” que seu "mito" adotou? Ou a alegria dos generais de pijama, que planejam o próximo golpe enquanto jogam dominó?


*** 


Depois que a Executiva Nacional do União Brasil confirmou a indicação de Luciano Bivar como pré-candidato à Presidência, o leque de opções do autoproclamado Centro Democrático cresceu, mas as chances de Sergio Moro de disputar o pleito caíram a subzero. 


Se nada mudar, UniãoBrasil, MDB, PSDB e Cidadania devem lançar um candidato de consenso no dia 18 do mês que vem, e tudo indica que o nome do deputado pernambucano será confirmado. Mas tudo pode mudar, e com a rapidez das nuvens no céu. Pela andar da carruagem, o ex-juiz está candidato a tudo (menos deputado) e pode não concorrer a nada. Bivar tem tantas chances de se eleger quanto eu de ser ungido papa. Pelo visto, o UB vai investir a bufunfa do fundo eleitoral nas candidaturas proporcionais e deixar a presidência para uma próxima vez (quanto maior a bancada na Câmara Federal, maior a parcela dos fundos partidário e eleitoral que as legendas abocanham).


Segundo Josias de Souza, pior que o UB matar a candidatura de Moro ao Planalto é a intenção da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo de retirar do presidenciável natimorto até o poder de espantar as moscas. Moro e sua mulher, Rosângela, tornaram-se alvos de uma notícia-crime que questiona no Ministério Público Eleitoral a legalidade da transferência dos seus domicílios eleitorais do Paraná para São Paulo



Numa eventual campanha à Presidência, Moro poderia trazer à tona a tragédia econômica da gestão Dilma — que Lula tenta esconder em sua campanha — e explorar a funesta gestão da pandemia por Bolsonaro e seus paus-mandados na Saúde. Seria a oportunidade de mostrar como os petistas, que ora se levantam contra o bolsonarismo, silenciaram diante da barbárie do atual governo, rejeitando o impeachment do capitão por questões nitidamente eleitoreiras, ao custo de milhares de vidas, e de expor os excessos e omissões da ala do Judiciário que acusa a força-tarefa da Lava-Jato de parcialidade. Um debate em rede nacional sobre esse temas e com esses atores seria inédito, histórico. Mas a vida é feita de escolhas...

 

A depender do julgamento da queixa-crime, não restará a Moro sequer a possibilidade de disputar uma cadeira na Câmara Municipal de São Paulo, já que novas eleições para vereador só devem ocorrer em 2024. Mais um pouco e o ex-juiz terá dificuldades para disputar até a posição de síndico no edifício de flats para o qual ele diz que se mudou.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

QUE BARBARIDADE!


Ao encerrar sua passagem relâmpago pelo Ministério da Saúde, Nelson Teich salientou que "a vida é feita de escolhas". Muitos anos antes disso, o Conselheiro Acácio já dizia que "as consequências vêm sempre depois".
 
A Lava-Jato teve início em 2008, mas só ganhou notoriedade a partir de 2014. Foi devido a ela que Sergio Moro, responsável pelos processos do braço paranaense da operação, viveu seus dias de glória à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba. 

Além de expor as entranhas putrefatas do sistema político, a Lava-Jato propiciou a condenação de corruptores e corruptos de alto coturno e recuperou bilhões de reais desviados durante os governos petistas. Mas não mal que sempre dure nem bem que nunca termine. 
 
Em 2018, para conquistar o apoio da classe média, Bolsonaro convidou Moro para chefiar o "super ministério" da Justiça e Segurança Pública. Edulcorado pela promessa de ser indicado para o STF, o juiz abriu mão de 22 anos na magistratura para embarcar numa canoa que deveria saber furada, e desde então vem trilhando um a um os nove círculos do inferno.
 
Após 1 ano e 4 meses engolindo sapos e bebendo a água suja da lagoa bolsonarista, Moro finalmente desembarcou do governo. E foi acusado de traição. Não muito depois, a vaza-jato transformou o herói da pátria em pária. 
Sem o apoio prometido pelo Podemos, Moro migrou para o União Brasil. Teve as asas podadas por Luciano Bivar, mas conseguiu se eleger senador pelo Paraná

Se Moro tivesse permanecido à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba, é bem possível que a prisão em segunda continuasse valendo, que Lula ainda estivesse cumprindo pena e que a vaza-jato tivesse ido para a lata do lixo da História. Mas, de novo, a vida é feita de escolhas e as consequências sempre vêm depois.

Neste arremedo de banânia, os políticos se elegem para roubar, roubam para se reeleger e legislam em causa própria e/ou para favorecer seus bandidos de estimação. Mesmo que seja flagrada na porta do galinheiro com penas grudadas no focinho, a raposa é considerada inocente até vomitar a galinha, devolver-lhe a vida e tornar a comê-la dentro do galinheiro, sob as vistas das corujas supremas — que só enxergam o que lhes convêm e quando lhes convém.
 
Sob um mandatário com uma capivara invejável e quatro filhos investigados, era esperado que processos foram anulados, que condenações fossem canceladas e que agentes públicos corruptos recuperassem a liberdade e os direitos políticos. É como se nossas cortes interpretassem as leis de modo a ensejar a sobrevivência do Brasil velho, corrupto, subdesenvolvido e desigual, governado por parasitas da máquina pública e lobistas de favores e privilégios.
 
Todos são iguais perante a lei, mas a conversão do direito de defesa em impunidade resultou num Estado de exceção onde as pessoas que mandam valem mais que todas as outras. Só falta agora escreverem com todas as letras que ninguém mais pode ser preso no Brasil por cometer crimes de corrupção. 

No faroeste à brasileira, só os fora-da-lei têm direito a final feliz, como atestam os mais recentes episódios da novela em que perseguir defensores da lei e castigar juízes, procuradores e policiais envolvidos na Lava-Jato tornou-se tão rotineiro quanto os duelos nos minutos finais dos bangue-bangues macarrônicos, só que, nos filmes, é o mocinho que vence o bandido e sai cavalgando rumo ao sol poente. 
 
Depois de conseguir as 27 assinaturas necessárias para o desarquivamento do projeto de lei que trata da prisão em segunda instância que ele próprio apresentou quando ainda era ministro — e que acabou sendo automaticamente arquivado porque não foi apreciado na legislatura anterior —, Moro experimentou mais uma vez o contra-ataque establishment: um vídeo divulgado nas redes sociais em que ele fala em "comprar habeas corpus do Gilmar Mendes" levou a subprocuradora-geral Lindôra Araújo a denunciá-lo por calúnia.
 
De acordo com a subprocuradora, o senador "agiu com a nítida intenção de macular a imagem e a honra objetiva do ofendido, tentando descredibilizar a sua atuação como magistrado da mais alta Corte do País", e que a polêmica frase foi dita "na presença de várias pessoas, com o conhecimento de que estava sendo gravado por terceiro, o que facilitou a divulgação da afirmação caluniosa, que tornou-se pública em 14 de abril de 2023, ganhando ampla repercussão na imprensa nacional e nas redes sociais".
 
Moro reconheceu que sua fala foi infeliz, mas demonstrou indignação com a ação da PGR 
— segundo ele, as palavras foram tiradas do contexto de brincadeira e manipuladas por pessoas que querem incriminá-lo falsamente e indispô-lo com o STF (detalhes neste vídeo). 

De acordo com a revista Fórum — cujos editores morreriam afogados se Lula se aboletasse numa banheira de hidromassagem —, Moro entrou em "modo desespero" e está "provando do próprio veneno". Na avaliação dos juristas ouvidos pelo pasquim, a condenação do político é líquida e certa.
 
Na visão do deputado Deltan Dallagnol, a denúncia é inepta, absurda, e denota alinhamento com governo Lula em clara perseguição ao ex-juiz. O ex-coordenador da Lava-Jato em Curitiba lembrou que Gilmar "caluniou e injuriou os procuradores da Lava-Jato várias vezes", chamou a força-tarefa de "organização criminosa" e se referiu a seus integrantes como "cretinos", "gângsters", "espúrios" e "crápulas". 
 
Vale relembrar também, por oportuno, que em março de 2018 o ministro Luís Roberto Barroso chamou o colega de toga de "fotografia ambulante do subdesenvolvimento brasileiro, mais um na multidão de altas autoridades que constroem todos os dias o fracasso do país (...) uma pessoa horrível, mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia", e em outubro do mesmo ano, ao comentar sobre uma corrupção estrutural e sistêmica envolvendo recursos públicos e a impunidade no país, disse que havia
 no STF "gabinete distribuindo senha para soltar corrupto sem qualquer forma de direito e numa espécie de ação entre amigos". Ao ser questionado sobre quais gabinetes se encontrariam nessa situação, Barroso sorriu e ficou em silêncio.

Resumo da ópera:  


Conhecida pela seletividade aguçada, Lindôra Araújo costumava confundir ofensa com liberdade de expressão quando o ofensor era Bolsonaro, anotou Josias de Souza em sua coluna. Com Moro, prossegue o jornalista, ela não quis saber de "brincadeira": acusou-o caluniar o ministro e pediu condenação, cadeia e perda do mandato. 


Josias pondera ainda que uma improvável condenação não resultaria em prisão, pois o suposto crime não prevê tal punição. Em última análise, Moro foi presenteado com uma contenda contra um dos mais impopulares ministros do STF, que decidiu acionar a PGR por acreditar que o senador precisa se responsabilizar pelo que diz. 


Conhecido pelo destempero, Gilmar gosta de falar o que não aprecia ouvir. Já se divertiu diante das câmeras da TV Justiça referindo-se aos procuradores da Lava-Jato como "gentalha", disse que integravam "máfias" e "organizações criminosas" e que "força-tarefa é sinônimo de patifaria". Se um extraterrestre descesse em Brasília num desses instantes em que autoridades trocam chumbo, informaria ao seu planeta que, na Terra, políticos e magistrados brincam num parque de diversões chamado Código Penal. 


A cena pública brasileira tornou-se um ambiente divertidamente degenerado.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

INTERDIÇÃO JÁ!

Como o sapo, que não pula por boniteza, mas por precisão, Bolsonaro viu-se diante de duas opções: ou se desculpava, ou amargava o risco de o impeachment se tornar uma possibilidade (ainda mais) real. 

Mas o confronto das manifestações de 7 e 12 de setembro não quer dizer grande coisa. Nem o presidente está com a vida ganha porque 150 mil muares bateram os cascos na mais paulista das avenidas, nem os que o querem ver pelas costas estão numa batalha perdida porque reuniram míseros 6 mil manifestantes, na mesma hora e local, cinco dias depois. 

Por outro lado, o contraste evidencia que a oposição vai precisar comer muito feijão para levar sua vontade às ruas de maneira contundente, já que os propósitos que amarram os defensores do "mito" uns aos outros, a capacidade de mobilizar recursos (públicos, inclusive), a existência de um rosto e de uma voz na figura do capitão a falar por eles são alguns dos fatores que faltam aos opositores.

Na seara oposicionista sobram vaidades, ressentimentos e a ideia de reeditar o clima da campanha das Diretas Já, que entre 1983 e 1984 levou multidões às ruas num chamamento à união nacional em prol da eleição de um civil no Colégio Eleitoral de 1985  após a derrota no Congresso da emenda Dante de Oliveira, que instituía eleições diretas. 

Lá se vão quase quarenta anos e com eles uma distância monumental entre o país da época e o Brasil de hoje, onde a inexistência de um pré-requisito para a repetição daquele tipo de movimento desaconselharia a fixação do olhar no retrovisor — insistir nesse caminho inviabiliza a adoção de uma estratégia eficaz para a realização do objetivo comum de livrar o Brasil de mais quatro anos sob Bolsonaro ou, numa hipótese remota, da interrupção de seu mandato.

Em 83/84, a bandeira era única e já vinha sendo levantada em campanhas anteriores, como a da anistia. Além disso, as forças políticas não tinham vivido embates entre si. Havia um inimigo comum, o regime autoritário. Agora, pode-se argumentar, o arbítrio de novo se apresenta como risco a ser evitado, mas a situação é diferente. 

Nessas quase quatro décadas houve disputas eleitorais, ocorreram dois impeachments, o PT enterrou sua mítica de reserva ética nos escândalos do mensalão e da Petrobras, as negociatas entre políticos e empresários não haviam sido expostas pela Lava-Jato nem tinha sido introduzida no cenário a dinâmica do “nós contra eles” instituída pelo demiurgo de Garanhuns e incorporada pelo Caronte da Covid.

Tudo isso divide, mas são as dores da democracia — suportáveis e até desejáveis ante a alternativa do sufocamento das ditaduras. Em situações difíceis, contudo, as divergências precisam ser politicamente conduzidas e adaptadas à nova era, em que não estão mais em cena aquelas grandes figuras credenciadas ao comando de mobilização da sociedade por atributos de habilidade, experiência, espírito público, conduta moral e capacidade de liderança.

A composição das divergências, a tolerância e a contenção dos atos ao limite da legalidade movimentam as engrenagens institucionais. O isolamento e o apego a crenças paralisam. Quem ironiza “a turma das instituições estão funcionando”, achando que com isso enxerga o que a maioria não vê, contribui para minar a confiança nas balizas democráticas a ser defendidas. A semeadura do descrédito quem faz é o adversário a ser combatido.

Fala-se tanto em inclusão social, mas não se vê esforço na superação do sectarismo exacerbado ao qual se dá o nome de polarização. Embora seja natural que a esquerda não queira se associar a atos onde há um boneco inflável de Lula vestido de presidiário e que o centro e a direita civilizada resistam a pôr azeitona na empada da petralhada, com um pouco de inspiração, muita transpiração e disposição ao desapego é possível chegar lá, até porque tronou-se impossível suportar esse negacionista-sociopata-golpista seguir destruindo nossa democracia, nossa economia, nossas vidas...

Não bastasse substituir Mandetta por Teich — que desembarcou da canoa furada antes de completar um mês a bordo, ensinando-nos que a vida é feita de escolhas — e este por um fardado tido e havido como o obelisco da logística, mas que era incapaz de amarrar os coturnos sem pedir a benção do chefe — ensinando-nos que é simples assim: "um manda e o outro obedece" —, Bolsonaro escolheu para preposto da vez mais um vassalo que, ao invés de corrigir os erros do incompetente que o antecedeu, adota o negacionismo a serviço do bolsonarismo boçal e — a cereja do bolo! — usa adolescentes para criar uma tripla cortina de fumaça visando ocultar os persistentes e cada vez mais graves erros do governo no combate à pandemia.

Enquanto demoniza a CoronaVac e promove motociatas e aglomerações — chegando mesmo a retirar a máscara do rosto de uma criança de colo e a sinalizar a outra que fizesse o mesmo em meio a uma multidão —, Bolsonaro se comporta como um galo egocêntrico, que acha que o sol nasce para ouvi-lo cantar, quando na verdade é ele que canta porque o sol nasce. Mas toda araruta tem seu dia de mingau, e a semana chegou ao fim com a revelação do Datafolha de que o amor do capitão pela mentira nunca foi tão correspondido.

A grossa maioria do eleitorado (85%) ouve o presidente com a pulga atrás da orelha — 57% nunca confiam naquilo que ele declara, 28% confiam só de vez em quando e apenas uma minoria (15%) confia 100% no que escorre dos lábios do suposto chefe da nação, que opera num mundo com duas verdades: a dele e a verdadeira. O primeiro Bolsonaro personifica a nova política, abomina a corrupção, afugenta o comunismo e cultua um versículo do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". O Bolsonaro retratado pelo Datafolha é parecido com o primeiro, só que mente um pouco, e seu desapreço pelos fatos acabou convertendo-o numa espécie de fake presidente. Mas justiça se lhe faça: ninguém chega a tal posição por acaso.

Não é que o personagem flerta esporadicamente com a inverdade. É preciso reconhecer que o progresso de Bolsonaro está alicerçado na mentira. Enquanto o Brasil piora, as finanças da Famiglia Bolsonaro não param de melhorar. O clã presidencial prosperou na vida pelo trabalho duro — trabalho do contribuinte, naturalmente. O capo é um grande defensor do patriotismo e da instituição familiar. Educou os filhos para amar a bandeira verde e amarela. Seus rebentos não hesitaram em seguir os passos do pai. Casaram-se com a pátria e foram morar no déficit público.

Bolsonaro se refugiou num contracheque do Estado pela primeira vez aos 18 anos, quando entrou para o Exército. Hoje, à frente do governo civil mais militar da história, jacta-se da origem castrense, embora tenha sido expurgado do quartel pela porta dos fundo apenas 15 anos depois de sentar praça. Político há 32 anos, ele acumula mais tempo de rachadinha do que de farda; presidente há quase três, faz aos brasileiros o favor de se sacrificar pelo bem da coletividade. Queixou-se em 21 de julho: "Costumo dizer aos meus amigos: não queiram essa cadeira, que isso aqui tem Kryptonita, brocha o Super-homem, que dirá eu!" Há uma semana, reclamou: "A vida de presidente não é fácil. Se alguém quiser trocar comigo, troco agora."

Para Bolsonaro, a Presidência é "uma missão de Deus." Sem receio de que a CPI o convoque para uma acareação com o Todo-Poderoso, o capitão se oferece para resolver até os problemas que o brasileiro não sabia que tinha, como o comunismo. Na última sexta-feira, de passagem por Minas Gerais, o morubixaba tranquilizou a aldeia: "Uma das coisas que mais me confortam é saber que naquela minha cadeira lá em Brasília não está sentado um comunista." Confirmou que estará em Nova York na próxima terça, quando discursará na abertura da Assembleia Geral da ONU. Anunciou que dirá algumas "verdades" sobre o Brasil.

Antes mesmo de ouvir as "verdades" que Bolsonaro despejará sobre a tribuna da ONU, o brasileiro, já vacinado contra as mentiras do orador, percebe que a vida de presidente é muito fácil, difícil é ser presidido diariamente por ele. Se a passagem do capitão pelo Planalto serve para alguma coisa é para provar que governar o Brasil não é tão difícil. O horário é bom, o dinheiro é razoável, viaja-se de graça para Nova York, passeia-se de moto nos finais de semana, e há sempre a possibilidade de demitir o ministro Marcelo Queiroga, o que deve proporcionar uma sensação muito boa.

Bolsonaro conseguiu realizar o prodígio de reverter o Brasil aos anos 1990 em relação ao consumo de proteína animal e atirar 40% da população na chamada "insegurança alimentar" — condição em que uma pessoa ou não faz as três refeições diárias adequadamente ou sequer come todos os dias. Sob o desgoverno do capitão, cresce a cada dia o número de brasileiros que recorrem à tripa bovina e suína e asas e pés de aves para agregar proteína animal à alimentação. 

Refeições que estão sendo preparadas, aliás, em fogões à lenha por causa do preço do gás. Em breve — que ninguém duvide —, além dos milhões de lares com a energia elétrica cortada por falta de pagamento, teremos outros milhões iluminando os cômodos com velas e lanternas. Mais: o tempo dos carros populares passou — seja pelo preço dos modelos novos ou usados, seja pelo valor absurdo dos combustíveis. Preparemo-nos para voltar a conviver com bicicletas e carroças.

Quem imagina que 600 mil mortos por Covid é o que há de pior na catástrofe que atente por governo Bolsonaro, ou a insistência insana desse "governante" emplacar um golpe de Estado, colocando fim à nossa jovem democracia, não perde por esperar. Imaginar que a proximidade das eleições de 2022 e sua iminente derrota para o meliante de São Bernardo fará com que o amigão do Queiroz não retome as hostilidades contra a democracia é o mesmo que acreditar na inocência da alma viva mais honesta do Brasil

Com isso, o dólar continuará nas alturas e a pressão inflacionária crescerá como o patrimônio do Clã das Rachadinhas. Para piorar o que já é ruim, o Banco Central elevará os juros, diminuindo a atividade econômica e conduzindo o país para um dos piores — senão o pior — quarto ano de governo desde a redemocratização.

Por uma trapaça da sorte, Bolsonaro acredita que a falta do voto impresso desvirtuará as urnas eletrônicas que já lhe concederam tantos mandatos eletivos. Dias atrás, em resposta às mentiras sobre o voto auditável que o presidente repetiu nos palanques de 7 de Setembro, o ministro Luís Roberto Barroso chamou-o de "farsante". 

Ecoando a maioria que se expressou por meio do Datafolha, o presidente de turno da corte eleitoral disse que o lema do chefe do Executivo é diferente daquele que está anotado em João 8:32. "Conhecereis a mentira, e a mentira vos aprisionará", declarou o magistrado, que pode ter soado premonitório.

Toda araruta tem seu dia de mingau. A CPI do Genocídio já prepara o relatório final, que contará com a colaboração de juristas insuspeitos, como Miguel Reale JúniorBolsonaro deixou de ser um caso de impeachment para se tornar um caso de polícia, de interdição e internação — e não na semana que vem ou no mês que vem, mas já.

Com Dora Kramer, Josias de Souza e Ricardo Kertzman

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

PENA NÃO EXISTIR VACINA CONTRA PAZUELLOBOLSOBURRICE

A tal “democracia consolidada” só existe na imaginação fértil do ministro Luís Roberto Barroso. No mundo real, o Brasil é um país agonizante, uma gigantesca nau que deriva sem rumo, imersa em trevas, tendo no timão não um capitão, mas um sabotador.

A economia, que já ia trôpega, foi nocauteada pela pandemia sanitária. Dos projetos mirabolantes do Posto Ipiranga de festim, nenhum foi adiante. A aprovação da PEC da Previdência se deu graças ao empenho do presidente da Câmara; a depender do timoneiro desta nau de insensatos, ela teria o mesmo destino das promessas de companha do capitão conversinha, como o combate sem trégua à corrupção, o repúdio à “velha política” do “toma-lá-dá-cá”, o fim da reeleição, as privatizações, enfim...

Sobre as privatizações de estatais e vendas de imóveis da União: segundo o superministro bom de goela mas ruim de jogo, elas recheariam os cofres públicos com um trilhão de reais, mas jamais saíram do papel. Criticado e acusado de inoperância, o chefe da Economia culpa o Congresso — e não sem razão. Mas, para ser justo, ele deveria mencionar, ao menos de passagem, a oposição de alguns setores do governo e a fragilíssima convicção liberal do capitão-sem-rumo (sempre ele!).

No início da desditosa gestão Bolsonaro, o empresário Salim Mattar, então secretário especial de Desestatização, mapeou as estatais que podiam ser vendidas. Em agosto, ao perceber que desse mato não sairia coelho, Mattar achou por bem pegar seu boné e reassumir a presidência da Localiza Hertz. Já ex-secretário, ele escreveu no Brazil Journal que “(...) a lógica do governo não é a lógica da iniciativa privada. A tese liberal de reduzir o tamanho do estado para desonerar o cidadão é aplaudida mas pouco apoiada. O arcabouço legal é complexo e moroso. Tudo torna o processo burocrático, lento. O establishment composto diretamente pelos empregados públicos, sindicatos, fornecedores, comunidades, políticos locais, partidos de esquerda e lideranças políticas têm sido uma barreira natural para a privatização.”

Convém salientar que somente as estatais precisam passar pelo crivo do Legislativo. As subsidiárias — são 88 no total — e as participações do governo em outras empresas podem ser vendidas sem a necessidade de autorização parlamentar. O problema é que o próprio governo se beneficia delas para dar cargos a aliados e comprar benesses das marafonas do Congresso. Ou será que o Centrão está apoiando o mandatário de turno por seus belos olhos azuis?

Observação: O Brasil tem 46 estatais controladas diretamente pela União. Destas, 19 operam no vermelho e servem apenas como cabides de emprego. Nos últimos 5 anos, as empresas acumularam um prejuízo de R$ 22 bi. Só com salários dos funcionários, torram mais e R$ 100 bi por ano. Quando dão prejuízo, empresas privadas acabam e morrem, mas as estatais deficitárias ganham mais dinheiro: entre 2015 e 2019, o Tesouro injetou nada menos que R$ 71 bi nesse saco sem fundo. Entre as que precisam ser privatizadas ou extintas, há empresas como a Ceitec, que fabrica chips para bois, e a EPL, criada para projetar um trem-bala, e os Correios, que acumulam uma dívida de R$ 1,7 bi.

Passando da desditosa Economia para a desventurada Saúde, a pasta se encontra atualmente — e pela segunda vez — sob nova direção. Em meados de abril, em meio à crise do Covid-19 — que até então havia produzido 1.924 vítimas fataiso médico ortopedista foi penabundado pela fratura exposta que o nomeou. O crescimento exponencial da popularidade do subordinado constrangeu o subordinante, e o caldo entronou quando o pajé optou por seguir a ciência em vez de dizer amém ao isolamento vertical, ao uso da hidroxicloroquina e a outras abilolices do morubixaba.

Para ser ministro sob a batuta do maestro sem ritmo, é preciso dar o rabo e se desculpar por estar de costas. Por não aceitar essa cláusula contratual, o oncologista que o câncer escalou para substituir o ministro demitido demitiu-se às vésperas de completar um mês no cargo. Em pronunciamento à imprensa, o demissionário ensinou “que a vida é feita de escolhas, e que ele escolheu sair“. 

Com a saída de Teich, um general de divisão que havia sido indicado por outros ministros generais — e já vinha se dedicando à tarefa de transformar a pasta da Saúde num insano “cabide de farda” para apaniguados do general da Banda — tornou-se ministro interino. Meses depois, em reconhecimento pelo conjunto de sua obra, o grande chefe o efetivou no cargo, e hoje, em meio ao repique da pandemia (ou segunda onda, como preferem alguns), o país contabiliza 6.628.065 infectados, 5.801.067 recuperados e 177.388 mortos.

Mesmo sendo expert em logística e fiel cumpridor das ordens do mandachuva de turno, o triestrelado tutelado não avaliou até que ponto vai irracionalidade de seu tutor. Assim, incorreu em crime de “lesa-majestade” ao anunciar a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac (produzida pelo laboratório chinês Sinovac Biotech e testada no Brasil pelo Instituto Butantan). A medida foi elogiada pelos governadores, mas que despertou a ira do chefe do terreiro:

"A vacina chinesa de João Doria, qualquer vacina antes de ser disponibilizada à população, deve ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa. O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Minha decisão é a de não adquirir a referida vacina”, disparou o mandatário. 

Na mesma tarde, em visita ao Centro Tecnológico da Marinha, em Iperó (SP), o capitão trevoso voltou a se pronunciar sobre a compra do imunizante chinês: “Já mandei cancelar, o presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade.” Já o governador João Doria — que o presidente vê como “o inimigo a ser neutralizado o quanto antes” para não ter enfrentar em 2022 — disse (acertadamente, a meu ver e à luz do bom senso) que “não se deve avaliar a origem da vacina, e sim a sua eficácia”.

Segundo Lauro Jardim, colunista de O Globo, o mandatário afirmou a auxiliares que o ministro-general estava “querendo aparecer demais, está gostando dos holofotes, como o Mandetta”. Diante de tanta sutileza, o ministério da Saúde mudou a própria publicação em seu site oficial e apagou do Twitter postagens em que confirmava a intenção de adquirir a CoronaVac. O ministro, que havia testado positivo para o coronavírus, só deu o ar da graça dias depois. Numa live postada pelo próprio presidente, como que para provar que continuava sendo o vassalo obediente de sempre, desmanchou-se o fardado em subserviência ao suserano: “um manda e o outro obedece”.

No final de novembro, depois que o Estadão denunciou o descalabro dos testes RT-PCR, a cabeça de Pazuzu, digo, Pazuello, quase rolou. Faltou o “quase”, que é primo do “se”. E não foi por falta de candidatos a seu cargo — há tempos que partidos do Centrão estão de olho no orçamento bilionário da pasta da Saúde. 

Aluno aplicado, o ministro pôs em prática os ensinamentos aprendidos com o capitão-conversinha e culpou governadores e prefeitos pela própria parvoíce. Na tarde desta terça (8), questionado pelo governador paulista sobre a compra da CoronaVac e as medidas provisórias bilionárias para compra de imunizantes da Oxford-AstraZeneca e do consórcio Covax — que, a exemplo da CoronaVac, também não foram aprovadas pela Anvisa —, reagiu dizendo que “a vacina do Butantan não é do estado de São Paulo”, mas afirmou que “havendo demanda e preço, todas as condições serão alvo de nossa compra”.

Pazuello aventou a possibilidade de adiantar o cronograma nacional para o fim de fevereiro, quando a vacina da Oxford-AstraZeneca estará devidamente registrada pela Anvisa. Disse que a aprovação deve demorar 60 dias (como a de qualquer outro imunizante, segundo ele), sem esclarecer se esse prazo se refere ao registro definitivo ou à análise para uso emergencial, que seria um procedimento mais rápido. Mas ressaltou que a vacina da Oxford está na fase 3 (a última antes da aprovação para uso da população), que os testes estão sendo refeitos devido a um erro de dosagem na análise preliminar e que o processo deve ser finalizado até o fim deste mês.

Sobre esse furdunço insano, Carlos Graieb, jornalista e ex-Secretário de Comunicação do governo do estado de São Paulo, publicou um artigo na revista Época dizendo, entre outras coisas, que “Eduardo Pazuello entrou definitivamente para o time dos antiministros do antipresidente Bolsonaro. Vai compor com Damares Alves, Ricardo Salles, Ernesto Araújo e outros que devo estar esquecendo.” 

Antiministros, ensina Graieb, destroem em vez de construir. Põem a ideologia acima da gestão. São abjetamente submissos aos caprichos de Bolsonaro e repetem sem vergonha as ideias que nascem do fígado do presidente. Fazem deste governo um dos piores que o mundo já viu (até aqui, nada muito diferente do que eu venho dizendo desde sempre sobre o desgoverno em curso).

Questionado pelos parlamentares sobre os quase 7 milhões de testes de Covid-19 que estão prestes a perder a validade nos armazéns federais, Pazuello fez sua “defesa” em duas linhas: Primeiro, disse que entregou todos os testes que Estados e municípios pediram, sem perceber que, ao fazê-lo, admitiu, mesmo que tacitamente, que os testes que não foram pedidos ficaram guardados, esperando a perda de validade, e que sua pasta abdicou de cumprir o papel que lhe cabia na pandemia: o de produzir informações que pudessem orientar uma política nacional de prevenção da doença e redução dos seus danos.

É a velha história: desde que o STF impediu o presidente de fazer o que bem entendesse na crise, ele optou por não fazer nada, sob o falso argumento de que toda a responsabilidade cabia a governadores e prefeitos. Pazuello, sentindo-se confortável como fantoche do menino mimado Bolsonaro, quando é confrontado com as evidências de que o número de casos disparou e muitas localidades já estão com o sistema hospitalar novamente à beira do colapso, limita-se a dizer candidamente que “essas coisas acontecem, sobe, depois desce.” Pois é.

 A segunda linha de defesa é que, no fim das contas, os testes não servem para muita coisa. Segundo o antiministro, só a análise clínica pode fechar um diagnóstico. Mas há aí uma certa confusão: diagnóstico e tratamento de indivíduos com infecção epidemiológica dependem, em boa medida, de testagem. Não é por outra razão que países com gente séria combatendo a pandemia testam e testam e testam. Não se sabe de onde veio a “teoria Pazuello”, mas seu destino é a lata do lixo. 

Para arrematar — e como seu chefe prefere a morte de cidadãos ao distanciamento social —, o ministro tirou do bolso da farda outra teoria maluca sobre ondas da Covid: só a primeira teria a ver com o vírus, as outras diriam respeito a violência doméstica, doenças psicológicas e outras enfermidades.

Mais uma vez, é a velha história: ninguém precisa de um ministro (nem de um presidente) que, diante dos problemas, diga “pois é, a vida é cruel”. Governantes são eleitos para agir e, no mínimo, reduzir danos. E a fala do general sobre vacinação foi preocupante. Segundo ele, a prioridade do governo é oferecer aos cidadãos um imunizante de eficácia comprovada — deveria ser o óbvio, mas com o governo Bolsonaro nunca se sabe. Também segundo ele, os fabricantes de vacinas vão ter dificuldades para atender a demanda brasileira. Tudo somado e subtraído, o conversê soou como um alerta: que ninguém se anime e, por favor, não venham nos cobrar.

São várias as lições da audiência pública na qual o general se dignou a dar o ar de sua graça, mas nenhuma delas boa. Como ministro da Saúde, Pazuello é um antiministro. Como especialista em logística, é menos eficiente que um chefe de almoxarifado. 

Resumo da ópera: Não haverá distribuição adequada de vacina tão cedo. E também não há planos para os repiques da doença em 2021. A instrução do governo aos brasileiros é: habituem-se com a morte.

Embora a comparação seja injusta, o Reino Unido, que começou a vacinar a população nesta terça-feira com o imunizante da Pfizer, demorou menos de um mês para aprovar o uso da vacina em caráter emergencial após ter seus estudos protocolados na agência sanitária local. Fica no ar a questão: se Bolsonaro não tivesse transformado a pesquisa e a produção de vacinas contra a Covid-19 numa mesquinha disputa eleitoreira, teria essa merdeira descido a tal nível de indecência?

sábado, 23 de maio de 2020

SOBRE PANDEMIAS, INCOMPETÊNCIA, CRETINICE E BAIXARIA



Antes de qualquer outra coisa, a notícia do dia (ou do final da tarde de ontem, melhor dizendo): O ministro Celso de Mello liberou tanto a íntegra do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril quanto sua transcrição, à exceção de alguns trechos (e respectiva degravação) nos quais há referência a determinados Estados estrangeiros”. Litteris: 

Determino o levantamento da nota de sigilo imposta em despacho por mim proferido no dia 08/05/2020 (Petição nº 29.960/2020), liberando integralmente, em consequência, tanto o conteúdo do vídeo da reunião ministerial de 22/04/2020, no Palácio do Planalto, quanto o teor da degravação referente a mencionado encontro de Ministros de Estado e de outras autoridades

A quem interessar possa, basta clicar aqui para ler a transcrição. 

Mas tem mais: O pedido de apreensão dos celulares de Jair Bolsonaro e do filho Zero Dois, feito em notícias-crimes enviadas pelo PDT, PSB e PV ao STF e apensadas ao inquérito que apura suposta tentativa de intervenção do presidente na PF, foi recebido pelo decano e encaminhado ao PGR para manifestação. O desmemoriado ministro-chefe do GSI, em nota, classificou o pedido de "afronta à intimidade do chefe do Executivo" e afirmou que "poderá haver consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional", por ser uma evidente "tentativa de comprometer a harmonia entre o poderes". 

Vale ressaltar que o decano seguiu fielmente o que determina o CPP Brasileiro, e que a reação do general foi exagerada, para não dizer absurda. Em vez de rosnar contra o STF, o estrelado deveria estrilar com sua assessoria Aliás, há algumas semanas atrás ele deu piti porque o decano usou a expressão "debaixo de vara" ao convocar os ministros militares para testemunharem no imbróglio Moro x Bolsonaro, que não tem conotação pejorativa: as divisões do poder judiciário são denominadas "varas", e a expressão "conduzido debaixo de vara" significa "mediante condução coercitiva", ou seja, “forçado pela autoridade judicial”. Enfim, a julgar pelo "nível" da reunião ministerial, não era mesmo de se esperar coisa melhor dos assessores do presidente. E nem do próprio, cujas falas foram de uma grosseria a toda prova.

Passemos ao texto que eu havia programado para hoje:

Uma velha marchinha de carnaval — do Sílvio Spantus, se não me falha a memória — dizia que “o homem nasce, o homem cresce, depois fica bobo e casa”. Faz sentido, mas o ponto a que quero chegar é outro: todos os seres vivos — pelo menos os deste planeta — seguem a mesma monótona rotina: nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. E o ser humano não foge à regra (alguns preferem não se reproduzir, mas isso é outra conversa).

A vida é feita de escolhas”, ensinou-nos o oncologista Nelson Teich ao comunicar sua demissão do Ministério da Saúde. E escolhas têm consequências. Desde a saída do ministro, chefia a pasta como interino o general da ativa Eduardo Pazuello, que Bolsonaro havia promovido a segundo de Teich, e uma das primeiras medidas tomadas pelo estrelado foi nomear colegas de farda às baciadas, sob a justificativa de que “militares são preparados para lidar com crises como a da Covid-19”.

A partir do momento em que passamos a nos conhecer por gente e ao longo de toda a estrada da vida, até seu inexorável fim — que é a chácara do vigário, onde se come capim pela raiz vestindo um nada confortável pijama de madeira —, a inevitabilidade da morte e a incerteza do “quando” nos assombra qual eguns mal despachados. Na juventude, achamo-nos imortais. À medida que amadurecermos, descobrimos que tanto é loucura não pensar na morte quanto pensar nela o tempo todo. Mas quanto mais perto chegamos da reta final, mais se acentua nossa preocupação com o desfecho.

Eu não saberia dizer se isso é prerrogativa exclusiva dos humanos ou se estende aos demais animais — dos quais nos diferenciamos, dizem, pela capacidade de racionar, ainda que uma parcela significativa do eleitorado tupiniquim não tenha (ou não exercite) essa aptidão, mesmo sendo formada por indivíduos supostamente racionais (como prova a sequência de luminares eleitos pelo voto popular para presidir o Brasil desde a redemocratização).

Observação: Até pouco tempo atrás, a ciência dividia a vida entre “humanos” e “animais”, como se uma baleia tivesse mais a ver com uma ameba do que com um ser humano. Hoje, a tese mais aceita é a de que a diferença entre as nossas faculdades mentais e as dos gatos, chimpanzés e periquitos é de grau, não de tipo. Seria como comparar um Porsche com um Fusca: há uma clara diferença de nível entre eles, mas ambos são carros. Chimpanzés, por exemplo, têm sentimentos complexos como inveja e vergonha (escondem o rosto quando fazem alguma besteira). E quem tem vergonha não é menos consciente que nós.

Fato é que jogamos esse jogo com as cartas que a vida nos dá, enquanto a morte segue regras próprias. Daí o ordem natural das coisas se inverter, levando pais a sepultar seus filhos. Daí a ceifadora decidir fazer hora extra — como durante as duas grandes guerras mundiais, que produziram milhões de cadáveres no século passado, ou as pandemias  que mereceriam uma postagem em separado, mas um breve resumo das mais notórias dá para o gasto.

A peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis e que se dissemina pelo contato com pulgas e roedores infectados, é considerada a causadora da Peste Negra, e pode ter reduzido a população mundial de 450 milhões de pessoas para 350 milhões no século XIV.

 A varíola, também chamada de “bixiga”, é causada pelo vírus Orthopoxvírus variolae e se espalha de pessoa para pessoa através das vias respiratórias. Essa doença atormentou a humanidade por mais de 3 mil anos — tanto o faraó egípcio Ramsés II quanto a rainha Maria II, da Inglaterra, e o rei Luís XV, da França, foram afetados —, até ser erradicada do planeta em 1980, devido à vacinação em massa. Mas é bom lembrar que nem o passado é previsível no Brasil, e que o sarampo, supostamente erradicado do país há décadas, voltou a atacar de um tempo a esta parte, sobretudo devido ao aumento exponencial de imbecis que se autodeclaram antivacinas.

A cólera, causada pela bactéria Vibrio cholerae, foi considerada a primeira pandemia global e matou centenas de milhares de pessoas em 1817. Como essa bactéria é mutante, novos ciclos epidêmicos surgem de tempos em tempos. A transmissão se dá pelo consumo de água ou alimentos contaminados e é mais comum em países subdesenvolvidos. No Iêmen, mais de 40 mil pessoas morreram de cólera em 2019; o Brasil já amargou vários surtos, especialmente em áreas mais pobres do nordeste.

A “gripe espanhola” não surgiu na Espanha — que tampouco a foi o país mais afetado pela doença. O epíteto deveu-se ao fato de aquele país ser neutro na Primeira Grande Guerra Mundial — que estava em curso quando se deu a pandemia — e ter falado abertamente do assunto (enquanto outros não o fizeram para não afetar ainda mais o moral da população). Uma variação do vírus Influenza foi responsável pela tal gripe, que infectou cerca de 500 milhões de pessoas (¼ da população mundial de então) entre 1918 e 1920 e, dessas, matou cerca de 10%. O Brasil contabilizou mais de 30 mil vítimas fatais, incluindo Rodrigues Alves, em 1919, que havia sido eleito presidente pela segunda vez (não consecutiva).

A gripe suína (H1N1) causou a primeira pandemia do século XXI. O vírus surgido em porcos, no México, em 2009, espalhou-se rapidamente pelo mundo e matou 16 mil pessoas. No Brasil, o primeiro caso foi confirmado em maio daquele ano e, no fim de junho, 627 pessoas haviam sido infectadas. O contágio se dá a partir de gotículas respiratórias que ficam em suspensão no ar ou permanecem ativas e operantes em superfícies contaminadas.

Nunca antes na história deste país (parafraseando o velho ladrão eneadáctilo), muito menos durante uma pandemia, dois ministros da Saúde deixaram o cargo em menos de 30 dias. E noves fora os 21 anos de ditadura, jamais respondeu pela pasta, nem mesmo interinamente, um militar sem diploma de médico. É clara como o dia a intenção de Bolsonaro de puxar os cordéis nos bastidores e ter à frente do ministério alguém que siga suas ordens cegamente.

Sob Pazuello, o Ministério da Saúde divulgou na última quarta-feira o protocolo que libera no SUS o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina também para casos leves de Covid-19. Até então, o uso do medicamente era autorizado somente para casos graves. Não é à toa que Bolsonaro pretende manter o militar à frente da pasta "por um bom tempo".

Observação: Vale ressaltar a importância da hierarquia, da autoridade e da disciplina entre militares, sendo a primeira a ordenação da autoridade em crescentes graus; a segunda, a capacidade ou qualidade do poder de mandar (poder que, pela sua legitimidade ou legalidade, deve ser obedecido), e a última, o dever de obediência pronta e integral — que, neste sentido, decorre diretamente da hierarquia-autoridade.  

A despeito de ser um expert em logística — justificativa usada pelo capitão pelo presidente para nomear o general ministro interino — Pazuello não tem formação na área de saúde. Mesmo que seja assessorado por uma “equipe boa” de médicos, também nas palavras do capitão sem luz, melhor seria termos à frente do ministério da Saúde um epidemiologista, um infectologista ou mesmo um clínico geral, notadamente quando estamos em guerra contra um vírus assassino — e e vimos perdendo uma batalha atrás da outra (além da crise sanitária, temos mais duas para administrar ao mesmo tempo, uma na economia e outra na política).

Observação: Durante uma almoço com o prefeito do Rio, um dia depois da reunião virtual com governadores, o capitão sem luz afirmou candidamente que o país está na “iminência" de abrir o comércio, mesmo com a continuidade da pandemia da Covid-19.

Tudo indica que os militares aderiram sem restrições à marcha da insensatez de seu comandante-em-chefe. O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, não só acompanhou Bolsonaro na manifestação subversiva defronte ao Palácio do Planalto, como teve o braço levantado para a claque de bolsomínions pelo próprio presidente, como se político fosse. Ramos é general da ativa, e pelo disposto no artigo 142, § 3º, inciso V, da Constituição Federal, os militares, enquanto em serviço ativo, não podem estar filiados a partido político. A rigor, eles não pode sequer opinar sobre política, à luz do decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002.

Pelo menos 2897 militares, dos três ramos das Forças Armadas, integravam o governo em março passado. E o número cresceu depois que Pazuello carregou nada menos que nove colegas de farda para o ministério da Saúde. E a mesma militarização campeia nos segundo e terceiro escalões dos demais ministérios, especialmente nos oito que são chefiados por militares.

Os fardados sempre defenderam a tese de que não existem ministros militares, mas ministros que têm origem militar, assim como outros são engenheiros, advogados, ou mesmo políticos. Pode até ser, mas, na prática, assim como o PT aparelhou o governo nos seus 15 anos com sindicalistas e políticos fisiológicos do centrão, Bolsonaro está aparelhando o seu com o mesmo tipo de políticos e militares, e eles não podem mais se escusar de fazer parte de um governo populista de baixa qualidade técnica e moral.

A ver no que isso tudo vai dar.

sábado, 27 de junho de 2020

AS ESCOLHAS DE QUEM NÃO TEM OPÇÃO



A vida é feita de escolhas”, ensinou-nos o oncologista Nelson Teich na manhã de 15 de maio, ao comunicar que havia escolhido deixar o Ministério da Saúde. E com efeito. Mas há escolhas e escolhas, ou, dito de outra maneira, nem sempre escolha é sinônimo de opção.

Teich assumiu a Saúde depois que Bolsonaro enfarinhou, fritou, cozinhou, assou e finalmente defenestrou o então ministro Mandetta — não porque o desempenho do médico fosse insatisfatório, antes pelo contrário: a popularidade que lhe rendeu seu protagonismo no combate à Covid-19 incomodou o chefe, que não admite que alguém sob seu comando seja mais popular do que ele (atualmente, até o jardineiro do Palácio consegue esse prodígio, mas isso é outra conversa).

Também contribuíram para a saída do oncologista sua irredutibilidade quanto ao uso da cloroquina e "teimosia" em seguir as recomendações da OMS — do ponto de vista da Ciência, Bolsonaro parece ter nascido numa caverna e estar caçando brontossauros.

Quando Teich foi empossado — dizendo-se alinhado com o general da banda —, teve-se inicialmente a impressão de que o capitão da caverna sem luz havia nomeado um lambe-botas disposto a obedecê-lo cegamente, ainda que para isso tivesse de limpar o rabo com o diploma de médico.

Teich foi criticado por tornar menos frequentes as coletivas de imprensa (que o antecessor realizava todo fim de tarde), por sua aparente inércia, pelas respostas evasivas e até por ter trocado o colete do SUS pelo paletó e gravata nos raros pronunciamentos à imprensa.

Soube-se mais tarde que o médico assumiu a pasta como “ministro de direito”, subordinado ao já então “ministro de fato” (ou interventor militar, como queira o leitor) general Eduardo Pazuello e sua equipe de fadados. A gota d’água foi Teich ter tomado conhecimento pela imprensa de que o presidente havia liberado sem consultá-lo — ou mesmo comunicá-lo — da reabertura de academias de ginástica e salões de beleza. E deu no que deu: o auxiliar pediu o boné antes mesmo de completar um mês no posto.

Fiz essa (não tão) breve introdução para esclarecer o que quis dizer com situações em que opções não significam necessariamente escolhas — como quando a(s) alternativas torna(m) a emenda pior que o soneto. Considerando que o que abunda não excede, junto ao exemplo retrocitado a conhecida parábola que originou a expressão “escolha salomônica” (Livro 1 de Reis, capítulo 3, versículos 16 a 28 da Bíblia), que no caso em tela deve ser focada não na difícil decisão imposta ao rei, mas na posição da mãe da criança.

Duas prostitutas que dividiam a mesma casa deram à luz com um dia de diferença. Um dos bebês faleceu, e a mãe trocou-o pelo sobrevivente. A verdadeira mãe exigiu a devolução do filho, mas não foi atendida, pois a amiga afirmava ser da reclamante o bebê que havia morrido. Depois de ouvir os dois lados da história, o Rei Salomão ordenou que partissem a criança ao meio e que cada mulher ficasse com uma metade. No mesmo instante, uma delas implorou-lhe que desse o bebê para a outra, donde o rei inferiu ser ela a mãe verdadeira, eis que seu amor pelo filho era tamanho que ela preferia vê-lo vivo, mesmo que longe de seus braços.

Tudo isso para embasar minha tese de que a escolha abilolada que do esclarecidíssimo eleitorado no primeiro turno do pleito de 2018 não nos deixou alternativa ao indesejável retorno do PT ao poder que não fiar o contrato de locação do atual inquilino do Palácio do Planalto. Assim, os eleitores sensatos (e desalentados) taparam o nariz e uniram forças com os bolsomínions, já que votar no catimbau — falo do papalvo bonifrate de Lula — jamais foi uma opção válida, e fazer como os 42 milhões de brasileiros que anularam o voto, votaram em branco ou simplesmente não compareceram às urnas seria fortalecer o adversário.

O xis da questão é que escolhas, mesmo as impositivas, implicam consequências, e o problema com as consequências é que elas vêm depois.

Dois anos atrás, mesmo quem fez a lição de casa e esquadrinhou a vida pregressa do “caso completamente fora do normal, inclusive mau militar“, que teve a carreira no exército abortada por indisciplina e insubordinação e, em 28 anos como integrante do baixo clero da Câmara Federal aprovou 2 projetos e colecionou mais de 30 ações criminais, não poderia prever que votar nessa excrescência não levaria “a montanha parir um ridículo rato” (refiro-me à célebre frase “parturiunt montesnascetur ridiculus mus”, atribuída ao poeta romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), mas a dar à luz um abjeto rascunho de Godzilla. Nem (muito menos) que o eleito subiria a rampa cercado por um ignóbil triunvirato prolítico seguidor da seita maldita do escalafobético “homem de Virgínia”.   

De nada adianta chorar o leite derramado, diz um velho ditado. Mas tampouco adianta esperar que o presidente mude seu comportamento e se transforme da noite para o dia num administrador competente, num político eivado de lisura (coisa que não existe neste planeta, mas enfim...), bem intencionado, que ponha os interesses da nação (e não os próprios e os da filharada) à frente de suas ambições eleitoreiras — até porque o melhor cabo eleitoral de um político que visa à reeleição é um primeiro mandato produtivo e honrado.

Para não esticar este texto com repetições desnecessárias, relembro apenas o que escrevi nesta postagem, sobre o remédio constitucional a ser usado quando um candidato que se elege calcado em propostas de campanha que passa a não cumprir — por incompetência, inadequação às exigências do cargo ou simples má-fé —, flerta com o autoritarismo e ameaça empurrar para o abismo a nação que foi eleito para comandar. E sobre a importância de administrar o fármaco na dose correta e em tempo hábil, sob pena de matar o paciente.

Para concluir:

No dia 23 de maio de 1999, o hoje presidente da República concedeu uma entrevista antológica à Band. Aos 24 minutos da conversa (que durou exatos 43), ele disse hipoteticamente que se fosse eleito presidente “daria golpe no mesmo dia! Não funciona… o Congresso de hoje em dia não funciona”. Antes, aos nove minutos, ele havia dito que “… o Congresso só existe para dizermos que temos uma democracia”.

Assistir a essa entrevista é um exercício esclarecedor. Duas décadas atrás, Jair Messias Bolsonaro, então deputado federal pelo PPB (um dos oito partidos pelos quais passou em seus 30 anos de vida pública), pesava exatamente como continua pensando atualmente. Olhando a coisa pelo lado do copo meio cheio, temos de reconhecer que, quando mais não seja, o trevoso é coerente. Ao menos quando isso lhe interessa.

Há que ter estômago para enfrentar os 43 minutos da entrevista. A afinidade que o capitão demonstra ter com a morte, por exemplo — e que vem demonstrando durante a pandemia quando relativiza “a morte de alguns” —, fica evidente em outra de suas falas famosas: a afirmação de que a ditadura “deveria ter matado mais uns 30 mil, começando pelo FHC”.

Aos 16 minutos da entrevista, o Messias que não faz milagre afirma que “sonega tudo que pode”; aos 17, que “votaria no Lula porque ele é honesto”; aos 26, que “o Planalto seria um ótimo lugar para fazer o teste de uma bomba nuclear”.

Abro um parêntese para salientar que, em 1999, Lula ainda era o desempregado que deu certo, o retirante nordestino pobre e analfabeto que passou de engraxate a torneiro mecânico; de baderneiro eneadáctilo a líder sindical; de fundador do partido dos trabalhadores que não trabalham, estudantes que não estudam e intelectuais que não pensam a candidato derrotado à prefeitura de Sampa (1982); de deputado federal (1986) e postulante contumaz à presidência da República (1989, 1994, 1998). Só em 2002 que o fiduma passaria à condição de presidente eleito, e em 2006, a despeito do Mensalão, não só se reelegeria. como se faria suceder, em 2010, pelo rascunho do mapa do inferno, colecionaria mais de 10 processos criminais, seria preso em 2018 e solto “provisoriamente” 580 dias depois (novembro de 2019), à bordo de uma namorada que conheceria na cadeia (Canja, Franja, Janja ou coisa parecida) e, sabedor de que o diabo detesta concorrência e, portanto, o protegeria do Sars-CoV-2, iria ao Vaticano constranger o Papa. Fecho o parêntese.  

Está tudo lá. Há mais de 20 anos. Tantos são os absurdos que, em qualquer outro país, Bolsonaro teria sua carreira política encerrada ao terminar a entrevista. Aqui, não. Aqui, ao que tudo indica, a postura beligerante até ajudou a elegê-lo.

Recuso-me a crer que boa parte dos brasileiros pensa como ele; prefiro imaginar que a forma com que ele se expressa é que cativa o eleitor “menos questionador” — com o conteúdo, a eleitorado apedeuta sequer se importa, até porque, ainda que quisesse se importar, não teria capacidade cognitiva para tanto.

Bolsonaro foi eleito num momento em que boa parte do país estava indignada com o PT, com a corrupção, com os escândalos que se sucediam, e conquistou admiradores com um discurso de político calejado, que fala gritando e gesticulando, o que, a olhos e ouvidos menos atentos, pode parecer indignação.

Enfim, moldamos nossa democracia ao jeitinho brasileiro. Nossa forma de governo é o Presidencialismo de Impeachment — por aqui, o impeachment não é o último recurso, mas simplesmente uma das etapas de um mandato presidencial.

Não temos treino, nem cultura, nem vontade para perder tempo escolhendo um presidente. Então, elegemos aquele que grita mais alto e depois a se vê no que dá. Collor, por exemplo, era conhecido apenas no Nordeste. Aterrissou no Planalto, e deu no que deu. Dilma idem. Uma microcéfala exótica alçada ao cargo máximo do país por um encantador de burros semianalfabeto. Deu no que deu. De novo. Mas Bolsonaro estava longe de ser um desconhecido. Sua performance nas eleições para deputado (foram oito!) lhe garantiram enorme notoriedade.

Para quem pesquisou ou assistiu apenas a entrevista de 1999, nada do que o capitão diz surpreende. Mesmo assim, a nação está surpresa com seu comportamento. E, como mandam as regras do Presidencialismo de Impeachment, trinta e tantos pedidos estão nas mãos — ou na gaveta — de Rodrigo Maia, para que nossa democracia tupiniquim siga seu curso.

Dizem que esse nosso comportamento são as dores de crescimento de uma jovem democracia. O problema é que antigamente doía. Hoje, mata.

Tantos foram os absurdos ditos por Bolsonaro naquela entrevista que, em qualquer outro país, sua carreira política estaria encerrada antes mesmo de o programa terminar. Aqui não.

Com Mentor Neto