Tão logo passou a ajudante de ordens do ex-capitão que
elegemos para evitar a volta do lulopetismo corrupto ao Palácio do Planalto, o general
da ativa Eduardo Pazuello, décimo ministro militar no governo Bolsonaro,
nomeou uma tropa de 17 fardados para cargos civis na sua assessoria, inclusive
na Anvisa (que já era comandada por um contra-almirante que
participou com o presidente de atos antidemocráticos).
Depois de transformar a Saúde em cabide de emprego para os “amigos
do rei”, o diligente taifeiro estrelado se apressou a cumprir a ordem de alterar
o protocolo para o uso da cloroquina, cuja desobediência custou o
emprego de seus predecessores (Mandetta, o Insurreto, e Teich,
o Breve).
Em outubro de 2020, o ministro-logístico de festim anunciou
que o governo compraria 46 milhões de doses da CoronaVac, mas foi prontamente
desautorizado pelo presidente: “Não vamos comprar", disse Bolsonaro,
referindo-se ao imunizante que ele e seus acólitos chamavam desdenhosamente de “vacina
chinesa do João Doria”. Após contrair a Covid e ficar de
molho por duas semanas, o general explicou didaticamente como as coisas
funcionavam no ministério da Saúde: “É
simples assim: um manda e o outro obedece”.
De volta ao batente, eufórico por não ter sido demitido em
razão do incidente envolvendo a compra da Coronavac, Pazuello
chegou a comemorar
os resultados de sua macabra gestão: "Quantas coisas a gente
fez desde que chegou aqui. Graças a essa gestão, a classe média aprendeu que
tem de haver o diagnóstico precoce e que não é necessário intubar o paciente.
Tanta gente morreu por causa de recomendações erradas! Parece que está passando
um filme na minha cabeça".
Ao longo de dez meses, o especialista em logística com competência
de ameba conseguiu
esquecer quase 7 milhões de testes RT-PCR que estavam prestes a vencer e
não antecipou a compra de seringas
e agulhas para a vacinação da população.
Observação: Pazuello demorou três meses para responder à Organização
Panamericana da Saúde se desejava ou não efetuar compra de 40 milhões de
seringas. O primeiro contato da pasta com a organização se deu em 10
de agosto, quando o ministério questionou a Opas sobre o preço “inflacionado”
dos insumos. Somente em 10 de dezembro, após um novo orçamento
apresentado três dias antes, a pasta decidiu fechar contrato com a Opas,
mas optou pelo frete por navio, e não por avião, contrariando parecer da própria pasta que recomendava o
frete aéreo.
Questionado pela imprensa sobre a demora no início da
campanha de imunização, o ministro respondeu com precisão suíça e pontualidade
britânica: “vai começar no dia D e na hora H”. E emendou: “Nós
somos os maiores fabricantes de vacinas da América Latina. Para
que essa ansiedade e essa angústia?”
Em janeiro, enquanto pessoas morriam em Manaus por falta de
oxigênio hospitalar, Pazuello distribuía “kits-Covid” à base de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina
— fármacos não só ineficazes no tratamento da Covid como capazes de
causar sérios efeitos colaterais. O ministro chegou mesmo a postar em suas
redes sociais: “Quanto mais cedo começar o tratamento, maiores as chances
de recuperação. Então, fique atento! Ao apresentar sintomas da Covid-19,
#NãoEspere, procure uma Unidade de Saúde e solicite o tratamento precoce”.
Observação: O Twitter classificou
a postagem de Pazuello de “informação
enganosa e potencialmente prejudicial à saúde das pessoas”.
O governo federal admitiu
que sabia do “iminente colapso do sistema de saúde” do Amazonas dez
dias antes de a crise estourar. A informação faz parte de um ofício encaminhado
pela Advocacia-Geral da União ao STF. No
documento, a AGU diz que o ministério da Saúde fez reuniões entre os
dias 3 e 4 de janeiro com autoridades locais, quando detectou que o sistema de
saúde do Amazonas estava à beira do colapso. No dia 14, começou a faltar
oxigênio hospitalar no estado, afetando pacientes internados em UTIs. Só então foi
anunciada a transferência de pacientes para outros estados.
Observação: Como se não bastasse, Pazuello enviou
ao Amapá 78 mil doses da vacina Oxford/AstraZeneca destinadas ao
Amazonas, que, no auge da crise em seu sistema de saúde, recebeu apenas as 2
mil unidades que seriam remetidas ao estado vizinho.
Ainda em janeiro, o governo anunciou que enviaria um avião à Índia para buscar 2
milhões de doses do imunizante da Oxford/AstraZeneca. O ministério da
Saúde divulgou o plano à imprensa, e um Airbus A330-900neo da Azul
foi alugado e adesivado com a marca “Brasil imunizado”. Depois que
a viagem foi adiada
mais de uma vez (a Índia não autorizou a exportação, sob a
justificativa de que coincidiria com o início da vacinação local), a aeronave
foi deslocada para levar cilindros de oxigênio a Manaus.
Observação: Diante desse fiasco, o ministério da Saúde
determinou o confisco da CoronaVac no paiol do inimigo. Na sexta-feira 15, o
ministro mandou um ofício ao Butantan exigindo a entrega
imediata de 6 milhões de doses da “vachina do Dória”. O instituto
respondeu que só disponibilizaria o estoque depois que a pasta esclarecesse
quanto do contingente já ficaria em São Paulo, e o governador tucano ameaçou
recorrer ao STF.
A CPI da Covid havia agendado para ontem a oitiva de Pazuello,
que continua general da ativa — após transferir o comando da Saúde ao
cardiologista Marcelo Queiroga, o general foi realocado como adido à Secretaria-Geral
do Exército. Suas novas funções são preparar as reuniões do Alto Comando da
instituição, conduzir processos de concessões de medalhas, organizar e divulgar
boletins, além de assessorar o comandante a normatizar o uso de uniformes.
Observação: Segundo o general Hamilton Mourão,
o ex-ministro deve ganhar novo cargo a partir de julho, quando haverá promoção
de oficiais do Exército. Sobre o termo “adido”, o vice-presidente explicou:
“O camarada quando ele não tem função específica ele fica adido. A
Secretaria-Geral é um órgão subordinado diretamente ao comandante, então, ele
fica adido à Secretaria para receber missões eventuais do comandante. Agora no
mês de julho, tem promoções no Exército e movimentação de general. Aí,
provavelmente, o Pazuello será movimentado para algum lugar”.
A transferência para o DF não impediu Pazuello
de desfilar
sem máscara em um shopping certe de Manaus. Ao ser questionado, o
general ironizou: “Pois é, tem que comprar. Onde compra isso?”.
E seguiu andando e rindo. A exibição de displicência foi vista como passível de
reprimenda pública por parte do comando da Exército, mas nada aconteceu.
Pazuello envergonhou a instituição enquanto
permaneceu no cargo e continuará a envergonhar fora dele. O ex-ministro Mandetta,
que passou quase 7 horas respondendo às perguntas dos senadores na última terça-feira,
criticou a gestão do general: “Foi um erro que a gente pagou [um militar
na Saúde], foi duro, duro. Agora parece que temos pelo menos
alguém que tem o linguajar, [mas] não tem muita experiência.”
A oitiva de Pazuello na CPI foi reagendada para o
próximo dia 19. O ex-ministro alegou que esteve em contato direto com duas
pessoas que testaram positivo para a Covid e foi orientado a cumprir
quarentena. Em outras palavras: dez dias depois do episódio lamentável no
shopping de Manaus, Pazuello foi subitamente acometido por um surto de
responsabilidade sanitária. Em tempos de assepsia, é como se estabelecesse com
a Covid uma relação do tipo uma mão suja a outra. À frente da Saúde, ele
prestou inestimáveis favores ao vírus, contribuindo com sua incompetência para
que a infecção se propagasse. Como ex-ministro, utiliza a propagação do mesmo
vírus como
escudo para retardar as explicações sobre a sua macabra gestão.
Ironicamente, o risco de infecção não impediu que o general fosse
submetido a intensas sessões de treinamento para o depoimento. Na terça-feira,
enquanto Mandetta depunha no Senado, Pazuello passou 6 horas sendo
treinado para não entregar a rapadura. Segundo O Globo, ele
estava “muito nervoso” — seu temperamento explosivo é uma das principais
preocupações do Planalto.
Por mais que se esforce, Pazuello não conseguirá
afastar a maledicência que associa sua ausência ao medo de que sua aparição se
transforme num desses espetáculos de teatro extremamente badalados que
fracassam porque o público não foi devidamente ensaiado para a encenação. O
Planalto receia que o depoente seja convertido pela CPI numa espécie de
bala perdida no rumo de Bolsonaro.
A boa notícia para o governo é que a protelação do
depoimento do general que comandou a pasta da Saúde guiando-se pelo lema
segundo o qual “um manda e o outro obedece” não aumentou a taxa de
suspeição que ronda o ex-capitão. A suspeita de que o desastre produzido por Pazuello
é de responsabilidade do presidente continua nos mesmos 100%.
A CPI pode não derrubar Bolsonaro, mas terá
efeitos deletérios sobre sua tão sonhada reeleição. A oposição e os muitos
desafetos do governo estão eufóricos, mas avizinha-se um cenário perigoso, qual
seja o de um presidente sem juízo e sem projeto, mas com uma pandemia, uma
ruína econômica e quase dois anos de mandato pela frente.
Josias de Souza pondera que a tragédia sanitária é
apenas a porção mais letal do fiasco em que se converteu o governo Bolsonaro,
e o ministério da Saúde não é único setor submetido à pane gerencial. O MEC
sofre retrocessos que levarão anos para ser revertidos e o setor ambiental
encontra-se devastado. Na área econômica, há um ex-superministro que, sem poder
elevar a própria estatura, rebaixa o pé direito do seu gabinete e ajusta suas
pretensões reformistas às limitações de um presidente que se revelou bem menor
do que a crise que engolfa o seu governo.
Nos próximos meses, seguindo o rastro de provas que Bolsonaro
produziu contra si mesmo durante toda a pandemia, a CPI vai estragar o
papel que o capitão mais gosta de desempenhar: o de colocar a culpa nos outros.
Ao esmiuçar os erros que o presidente cometeu como se cultivasse o desejo
secreto de ser apanhado, a CPI encurtará sua margem de manobra.
Para um personagem que nunca teve apreço pelas instituições
democráticas, falta de espaço para manobrar é um convite para extravagâncias. Bolsonaro
voltou a falar em “meu Exército” e “minhas Forças Armadas”.
Sobrevoou novamente em helicóptero da FAB uma aglomeração de devotos,
alguns deles partidários de uma intervenção militar. O príncipe Zero Três
aplaudiu a ocupação que o autocrata de El Salvador promove na Suprema Corte
local.
Ao apresentar Bolsonaro a si mesmo, evitando por meio
de depoimentos e documentos que o presidente terceirize os seus erros, a CPI
reforçará a falência de um projeto que se baseava na teatralização do novo. O
velho deputado encrenqueiro do baixo clero que se apresentou em 2018 como uma
fulgurante novidade chegará a 2022 como um estelionato político, que se vendeu
ao eleitorado como um político antissistema, anticorrupção e pró-liberalismo
econômico, mas acabou acorrentado ao sistêmico centrão, chefiando uma
organização familiar com fins lucrativos e dando de ombros para a agenda de
reformas liberais.
Bolsonaro é governado pelo vírus que, negligenciado
por ele, passou a influenciar o rumo do governo enquanto mata. Com os
calcanhares expostos na vitrine da CPI, o presidente tende a se dar por
satisfeito se conseguir alcançar os dois objetivos que lhe restaram: não cair e
continuar passando a impressão de que faz e acontece.
Pior do que um presidente sem rumo, só uma oposição
desorientada. Numa evidência dos perigos que assediam o país, a única novidade
do noticiário político é que José Sarney, o morubixaba da tribo do MDB,
foi procurado por Bolsonaro e por Lula. Quando a esquerda e a
direita buscam saídas no epicentro do patrimonialismo arcaico, resta ao
brasileiro aguardar pelas próximas manobras e proteger a carteira.
Em tempo: Ouvido ontem na CPI da Covid, o oncologista Nelson
Teich, que sucedeu
a Mandetta no comando do Ministério da Saúde e se demitiu depois de 29 dias,
disse aos senadores que o Brasil poderia ter acesso mais facilitado a vacinas
caso tivesse um plano focado nisso. Ele declarou que durante o tempo que esteve
à frente da pasta não havia vacina disponível para compra e que ele trouxe o
teste da AstraZeneca/Oxford para o Brasil. Segundo Teich, para conseguir
mais vacinas seria preciso fechar contratos de risco — que é quando se paga
pelas doses sem saber se o imunizante será ou não eficaz. Questionado sobre a
teoria aventada para o combate à pandemia pela “imunidade de rebanho” — adquirida
quando uma grande quantidade de infectados gera uma proteção comunitária contra
o vírus —, o ex-ministro disse que esse conceito é um erro. Volto a esse assunto com
mais detalhes numa próxima postagem.