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sexta-feira, 19 de março de 2021

DE NADA ADIANTA TROCAR A RODA DA CARROÇA SE O PROBLEMA É O BURRO

A internação de Tancredo Neves, 12 horas antes da cerimônia de posse, e sua morte, 38 dias e 7 cirurgias depois, privaram o Brasil de ter um estadista na Presidência. Mas daí a afirmar que, não fosse esse “detalhe”, esta republiqueta de bananas seria a segunda economia do mundo vai uma longa distância. 

Guardadas as devidas proporções, o mesmo raciocínio se aplica à situação da Saúde tupiniquim se Mandetta não tivesse sido exonerado (porque “estava se achando estrela”), se Teich não tivesse escolhido sair ou se Ludhmila Hajjar não declinasse do convite — ou não tivesse sido desconvidada por criticar a desditosa gestão do general pesadelo.

Agora, em meio ao pior momento da crise, com infecções e mortes  recrudescendo em terra brasilis — na contramão do que ocorre no resto do mundo —, a nomeação do presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia cardiologista Marcelo Queiroga, que chega ao cargo pelas mãos do senador Flávio “Rachadinha” Bolsonaro e já deixou claro que a política é do governo; cabe ao ministro da Saúde apenas aplicar a política do governo, não nos enche de esperanças.

O general Santos Cruz, antecessor do também general Luiz Eduardo Ramos na coordenação política do Planalto, definiu o governo Bolsonaro como "um show de besteiras que tira o foco daquilo que é importante" e levou à vitrine do Twitter um ensinamento para os colegas que continuam no governo: "Hierarquia e disciplina, na vida militar e civil, são princípios nobres. Não significam subserviência e nem podem ser resumidos a uma coisa 'simples assim, como um manda e o outro obedece'... como mandar varrer a entrada do quartel."

À imprensa, o esculápio afirmou que não tem "avaliação" sobre a gestão do ministro interventor sainte, nem "vara de condão" para resolver os problemas da saúde nacional (se é assim, por que, então, aceitou o cargo?). Disse ainda que o general trabalhou arduamente para melhorar as condições sanitárias do Brasil e que. disse o cardiologista ao chegar na sede da Saúde para a sua primeira reunião de trabalho, após foi escolhido pelo presidente para dar continuidade a esse trabalho, que um dia rejeitou bandeiras do governo Bolsonaro, mas agora, do outro lado do balcão, parece disposto a rever sua postura, de modo que não devemos esperar mudanças bruscas na pasta.

O Centrão havia se manifestado publicamente por outro nome, e a nomeação de Queiroga causou algum desconforto entre os parlamentares da “base governista” do Congresso, embora vá ao encontro das desmandas do Legislativo por mudanças na pasta, face à reação negativa da população à aziaga gestão do “expert em logística”.

A boa notícia é que, ao trocar o general pesadelo pelo cardiologista paraibano, Bolsonaro sinalizou a intenção de mudar a gestão da crise sanitária. A má notícia é que teríamos ficado mais bem servidos se a também cardiologista Ludhmila Hajjar tivesse aceitado o convite (fala-se que a médica foi desconvidada porque o desejo de mudança do presidente não chega ao ponto de conceder autonomia científica ao substituto de Pazuello). 

O que Bolsonaro quer é acomodar na poltrona do general-interventor um médico que coloque sua capacidade técnica a serviço de uma administração da pandemia baseada na máxima pazuelística segundo a qual "um manda e o outro obedece.", e Queiroga topou conviver com o fato de que o capitão continuará acumulando o cargo de presidente da República com as atribuições de ministro da Saúde. 

Em última análise, o que se pode inferir dos movimentos e das palavras de Bolsonaro é que ele decidiu substituir o general pesadelo pelo esculápio bolsonarista não por ter visto a luz da ciência, mas por sentir o calor da repercussão política do crescimento exponencial do número de mortos pela Covid.

Como diria o próprio Pazuello, é simples assim.

sábado, 19 de agosto de 2023

CONVÉM NÃO DISCUTIR COM ESPECIALISTA


Preso desde 3 de maio, Mauro Cid já contabiliza três advogados. O primeiro rodou porque soava mais interessado em salvar o pescoço de Bolsonaro do que em afastar seu cliente da forca, e o segundo, especialista em delações, abdicou da defesa sem converter o vassalo do suserano em colaborador. 

O causídico recém-contratado tenta vestir farda nos crimes do fardado. Tão logo assumiu, afirmou que, por sua formação militar, seu cliente "sempre prezou pelo respeito a chefia, pela obediência hierárquica, e é exatamente essa obediência a um superior militar que há de afastar a culpabilidade dele",  parecendo buscar inspiração no ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que cunhou o lema: "Um manda e outro obedece". 

AtualizaçãoO advogado Cezar Roberto Bitencourt deu declarações confusas e divergentes sobre a suposta decisão de Cidinho no caso da venda de joias. Na quarta, disse que não sabia detalhes das acusações porque havia recém-assumido a defesa e ainda não tinha encontrado seu cliente, mas adiantou  que "assessor cumpre ordens do chefe". Depois do primeiro encontro com Cid, o criminalista disse que já havia concedido muitas entrevistas e que a atitude poderia "irritar o outro lado também". Questionado sobre quem seria o "outro lado", ele respondeu: "O chefe dele, é claro". Disse ainda que o objetivo da PF era chegar até Bolsonaro, e que a chance de seu cliente partir para uma delação premiada era "nula". Horas depois, em mais uma nova versão, o doutor afirmou que Cid decidira confessar a atuação na venda das joias e declarar que havia cometido o crime por ordem de Bolsonaro. "Ele vai confessar o que ele praticou, comprou e vendeu, o atestado das vacinas. Ele vai confessar", completou. Ontem, outra reviravolta: "Não, não tem nada a ver com joias! Isso foi erro da Vejs (sic) não se falou em joias!", escreveu Bitencourt na mensagem. Mais tarde, ele disse que o caso não se trata de joias, mas de somente uma: um relógio Rolex, e que não se trataria de uma confissão, mas "esclarecimentos" a serem feitos aos investigadores, e que Cid não ia culpar o ex-presidente: "Tem muitas coisas que não tem nada a ver. Na realidade houve um equívoco, houve má-fé. Em primeiro lugar [é um equívoco] que o Cid vai dedurar o Bolsonaro".

Mesmo sem delatar, Cidinho pode mijar no chope do capetão, e sua defesa se arrisca a tropeçar numa obviedade: o militar não responde a inquéritos militares, mas por crimes ordinários em extraordinários processos que correm no STF. O general Santos Cruz, expurgado por Bolsonaro de um ministério palaciano por se recusar a ser um Pazuello, já ensinou que "farda não é pano de chão; hierarquia e disciplina são princípios nobres, não significam subserviência e nem podem ser resumidos a uma coisa 'simples assim, como um manda e o outro obedece', como mandar varrer a porta do quartel."
 
Até a semana passada, Bolsonaro tinha: 1) o general Lourena Cid para segurar a língua do filho; 2) a cumplicidade muda de Frederick Wassef; 3) as orações de Michelle e 4) a solidariedade dos seus milicianos políticos. Hoje, ele precisa se certificar da fidelidade do mensaleiro ex-presidiário Valdemar Costa Neto, que pode ser a última coisa que lhe resta. 
 
Tratado pela PF como membro da "organização criminosa" das joias, o Cidão parece mais preocupado com sua autodefesa do que com a autocombustão do filho — cujo novo advogado realça uma obviedade: a quadrilha não é acéfala, e Cidinho, militar disciplinado, apenas interpretou ao pé da letra o nome do seu cargo. Nessa versão, quem deve pagar pelos crimes é o chefe, não o ajudante cumpridor de ordens.
 
O dublê de advogado e mafioso de comédia
 apelidado de "Wacéfalo— por ter transformado a operação de recompra de um Rolex numa lambança com aparência de confissão — adicionou um drama novo à rotina do defensor do ex-presidente. Cada vez que o perdigueiro jurídico da família da rachadinha rosna, o causídico precisa explicar por que seu cliente é amigo dele. 

Fred perdeu as prerrogativas de associado da OAB. Autoconvertido de advogado em delinquente, sofre batida policial em público e tem 4 celulares apreendidos pela PF numa churrascaria. Michelle já não tem tanto tempo livre para as preces: com as contas pessoais em desalinho, prestes a ser intimada a prestar depoimento, precisa construir uma defesa. Madame ainda acredita que Deus existe, mas começa a suspeitar que Ele não é full-time. 

O lixo que vaza pelas bordas do tapete que Cid filho hesita em levantar expõe varrições que estão mais próximas do Código Penal do que da porta do quartel. É improvável que a nova pregação da defesa alivie suas culpas, mas a lealdade, já bem extenuada, parece chegar ao limite. 

Bolsonaro precisa examinar periodicamente a rigidez do dedo indicador da esposa, pois delações domésticas não são incomuns na política brasileira. No final de 2021, ele disse que havia três alternativas para seu futuro: a prisão, a morte ou a vitória. Como não obteve a vitória e nem morreu, só lhe resta a prisão. Em privado, até Costa Neto já o vê atrás das grades. 

Convém não discutir com um especialista.

Com Josias de Souza

domingo, 25 de outubro de 2020

VACINA CONTRA IGNORÂNCIA E BANANAS DE PIJAMA

 

O ministro da Saúde anunciou na última terça-feira, 20, a compra de 46 milhões de doses da vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac e testada no Brasil pelo Instituto Butantã. A medida foi elogiada pelos governadores, o que bastou para Bolsonaro postar nas redes sociais que “o povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Minha decisão é a de não adquirir a referida vacina”.

Pazuello agiu corretamente, tanto ao antecipar a compra da vacina da AstraZeneca quanto ao anunciar que faria o mesmo com a droga chinesa — que, segundo ele, está mais adiantada e poderá chegar ao Brasil pelo menos um mês antes das suas concorrentes. Graças ao negacionismo pragmático do capitão, em menos de 24 horas o compromisso de compra de milhões de doses da vacina da chinesa virou “um mal entendido”, e o general-ministro quase virou ex-ministro.

A resistência do governo federal com a Coronavac já ficara evidente na semana retrasada, quando do anúncio do Plano Nacional de Imunização para 2021 sem que a droga chinesa fosse mencionada. Mas na segunda-feira,19, Pazuello enviou uma carta a Dimas Covas (presidente do Butantã), dando conta da intenção de compra e pedindo informações sobre o andamento das pesquisas. Na quarta, 21, Bolsonaro voltou a dizer que não tem interesse na vacina chinesa: “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado por ela, a não ser nós. Não sei se o que está envolvido nisso tudo é o preço vultoso que vai se pagar por essa vacina para a China”.

Um acerto, uma vez acertado, dificilmente pode ser melhorado. Mas o presidente demonstra, a cada nova declaração sobre a guerra da vacina, que um erro sempre pode ser piorado. Ele fala sobre a decisão de vetar a compra da vacina do laboratório chinês como se fosse o portador de uma lógica implacável, mas que não passa de besteirol em estado bruto.

Autoconvertido em garoto-propaganda da liberdade de infectar, Bolsonaro conseguiu transformar sua aversão à "vacina chinesa do Doria" num processo de avacalhação da independência da Anvisa, que "não vai correr" para liberar vacinas contra a Covid-19, disse Bolsonaro horas depois de o Instituto Butantã acusar o órgão de retardar a análise de um pedido de importação de insumos do laboratório Sinovac, para a produção da vacina no Brasil. Protocolada em setembro, a solicitação só seria analisada em novembro. Espremida, a Anvisa prometeu dar uma resposta em cinco dias úteis. Foi contra esse pano de fundo que o presidente disse em sua live que conversou com o presidente da Anvisa e que "não vai ser em 72 horas”, e o diabo a quatro. 

Bolsonaro faria um bem inestimável à independência da Anvisa se parasse de falar antes de pensar, sob pena de condenar a "independência" da agência a viver entre aspas. Na noite de quinta-feira, em sua live semanal, disse sua excelência "Duvido que a Justiça vá obrigar alguém a tomar a vacina". Em meio a essa desinteligência, o governador de São Paulo conversou com o presidente do STF, mas disse a Doria que preferia não se manifestar sobre um assunto que poderia ter de julgar como magistrado mais adiante. Fux previu o óbvio, ou seja, que haverá uma judicialização da encrenca da vacinação. As ações já começaram a chegar ao tribunal. Fux definiu a entrada do Supremo na contenda como "necessária" e "importante." Não é difícil antever o que está por vir. Se não desistir do papel de garoto-propaganda da liberdade de infectar, Bolsonaro será derrotado no STF. Se tivesse juízo, retiraria a raiva do pudim e se reposicionaria em cena. Mas juízo é matéria-prima que não orna com a antecipação da pauta de 2022.

O mais curioso é que essa disputa é tão irracional quanto inútil. Se todas as vacinas que estão sendo testadas se revelarem eficazes, ainda assim a procura será maior do que a oferta. Além disso, a realidade vai impor a vacinação. Empresas convidarão seus funcionários a se vacinarem. Escolas condicionarão as matrículas à vacina. Países exigirão o comprovante de vacina dos viajantes. Um presidente que dizia em março que era preciso enfrentar o vírus "como homem, não como moleque" deveria considerar a hipótese de substituir a molecagem pelo interesse público.

Aos poucos, os fardados estrelados vão se tornando asteriscos humilhantes de um governo em que imaginavam ser os mais importantes. Bolsonaro humilha-os e permite que sejam humilhados, e os generais, resignados, humilham-se a si mesmos. 

O general de quatro estrelas Eduardo Pazuello assumiu a pasta da Saúde depois que o capitão das trevas fritou o ortopedista Henrique Mandetta e tostou o oncologista Nelson Teich. Agora, carbonizado pelo chefe na guerra da vacina, o general tornou-se uma porção de cinzas. E conformou-se com o seu novo estado: "Um manda e outro obedece."

Luiz Eduardo Ramos trocou o prestigioso Comando Militar do Sudeste pelo posto de comandante de uma escrivaninha no Planalto. Assumiu a Secretaria de Governo da Presidência. A vaga era ocupada pelo também general Carlos Alberto dos Santos Cruz, dissolvido nos primeiros seis meses do governo num caldeirão em que se misturavam ataques de um guru e filósofo autoproclamado e de um filho aloprado. 

Menos de 24 horas depois da calcinação do amigo Pazuello, Ramos caiu numa fritura sui generis. Quem pilota o fogão e manobra a frigideira é o ministro civil Ricardo Salles, titular do Meio Ambiente e membro do bloco ideológico apocalíptico do governo. Salles plugou-se às redes sociais para grudar em Ramos a hashtag #mariafofoca. Não se ouviu um pio do general, e o presidente tampouco se manifestou em público.

Relações administrativas são regidas por uma combinação lógica de fatores. Se um ministro executa movimentos que não coincidem com a tática do chefe, ele é mandado embora. Se o presidente desfaz o que estava combinado, aí é o ministro quem pede para sair. Quando um Pazuello prefere bater continência para a humilhação a elevar a própria estatura, reduz o pé-direito do ministério. Quando um ministro vai às redes sociais para desmoralizar um colega e nada acontece, desmoraliza-se o governo. Se a desmoralização ocorre no Meio Ambiente, esculhamba-se o ambiente inteiro.

O fogo não arde apenas na Amazônia e no Pantanal. Há incêndio também nos gabinetes de Brasília. Estabeleceu-se nesse setor um duplo comando que não tem o menor risco de dar certo. Bolsonaro impôs a Ricardo Salles uma convivência compulsória com o vice-presidente Hamilton Mourão, convertido em coordenador do Conselho Nacional da Amazônia. Subordinado a Salles, o Ibama suspendeu o combate às queimadas sob a alegação de falta de verbas. Incumbido de melhorar a imagem ambiental do Brasil, o general Mourão abespinhou-se por não ter sido avisado. Entrou em campo para abrir o cofre. 

Os generais do Planalto tomaram as dores de Mourão. Salles enxergou as digitais de Luiz Eduardo Ramos numa nota publicada no Globo e despejou sua insatisfação nas redes sociais: "Tenho enorme respeito pela instituição militar. Como em qualquer lugar, infelizmente, há sempre uma maçã podre a contaminar os demais. Fonte de fofoca, intriga, de conspiração e da discórdia, o problema é a banana de pijama." 

Decorridos alguns minutos, Salles decidiu dar nome à banana. Apagou a primeira mensagem e postou algo mais incisivo: "@Min-LuizRamos não estiquei a corda com ninguém. Tenho enorme respeito e apreço pela instituição militar. Atuo da forma que entendo correto (sic). Chega dessa postura de #mariafofoca."

O general Santos Cruz, antecessor de Ramos na coordenação política do Planalto, fez uma avaliação ácida logo que foi expurgado do governo. Definiu o governo Bolsonaro como "um show de besteiras", que "tira o foco daquilo que é importante." Nesta sexta-feira, Santos Cruz levou à vitrine do Twitter um ensinamento para os colegas que continuam no governo. "Hierarquia e disciplina, na vida militar e civil, são princípios nobres", anotou o ex-ministro. "Não significam subserviência e nem podem ser resumidos a uma coisa 'simples assim, como um manda e o outro obedece'... como mandar varrer a entrada do quartel."

O acúmulo de humilhações simplifica a vida dos militares do governo. Para demonstrar alguma altivez, basta que os generais continuem agachados. O "festival de besteiras" logo evoluirá para o estágio da balbúrdia. Se é que já não evoluiu.

Com Josias de Souza

quinta-feira, 6 de maio de 2021

CADÊ O GENERAL PAZUELLO?


Tão logo passou a ajudante de ordens do ex-capitão que elegemos para evitar a volta do lulopetismo corrupto ao Palácio do Planalto, o general da ativa Eduardo Pazuello, décimo ministro militar no governo Bolsonaro, nomeou uma tropa de 17 fardados para cargos civis na sua assessoria, inclusive na Anvisa (que já era comandada por um contra-almirante que participou com o presidente de atos antidemocráticos).

Depois de transformar a Saúde em cabide de emprego para os “amigos do rei”, o diligente taifeiro estrelado se apressou a cumprir a ordem de alterar o protocolo para o uso da cloroquina, cuja desobediência custou o emprego de seus predecessores (Mandetta, o Insurreto, e Teich, o Breve).

Em outubro de 2020, o ministro-logístico de festim anunciou que o governo compraria 46 milhões de doses da CoronaVac, mas foi prontamente desautorizado pelo presidente: “Não vamos comprar", disse Bolsonaro, referindo-se ao imunizante que ele e seus acólitos chamavam desdenhosamente de “vacina chinesa do João Doria”. Após contrair a Covid e ficar de molho por duas semanas, o general explicou didaticamente como as coisas funcionavam no ministério da Saúde: “É simples assim: um manda e o outro obedece”.

De volta ao batente, eufórico por não ter sido demitido em razão do incidente envolvendo a compra da Coronavac, Pazuello chegou a comemorar os resultados de sua macabra gestão: "Quantas coisas a gente fez desde que chegou aqui. Graças a essa gestão, a classe média aprendeu que tem de haver o diagnóstico precoce e que não é necessário intubar o paciente. Tanta gente morreu por causa de recomendações erradas! Parece que está passando um filme na minha cabeça".

Ao longo de dez meses, o especialista em logística com competência de ameba conseguiu esquecer quase 7 milhões de testes RT-PCR que estavam prestes a vencer e não antecipou a compra de seringas e agulhas para a vacinação da população.

Observação: Pazuello demorou três meses para responder à Organização Panamericana da Saúde se desejava ou não efetuar compra de 40 milhões de seringas. O primeiro contato da pasta com a organização se deu em 10 de agosto, quando o ministério questionou a Opas sobre o preço “inflacionado” dos insumos. Somente em 10 de dezembro, após um novo orçamento apresentado três dias antes, a pasta decidiu fechar contrato com a Opas, mas optou pelo frete por navio, e não por avião, contrariando parecer da própria pasta que recomendava o frete aéreo. 

Questionado pela imprensa sobre a demora no início da campanha de imunização, o ministro respondeu com precisão suíça e pontualidade britânica: “vai começar no dia D e na hora H”. E emendou: “Nós somos os maiores fabricantes de vacinas da América Latina. Para que essa ansiedade e essa angústia?

Em janeiro, enquanto pessoas morriam em Manaus por falta de oxigênio hospitalar, Pazuello distribuía “kits-Covid” à base de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectinafármacos não só ineficazes no tratamento da Covid como capazes de causar sérios efeitos colaterais. O ministro chegou mesmo a postar em suas redes sociais: “Quanto mais cedo começar o tratamento, maiores as chances de recuperação. Então, fique atento! Ao apresentar sintomas da Covid-19, #NãoEspere, procure uma Unidade de Saúde e solicite o tratamento precoce”.

Observação: Twitter classificou a postagem de Pazuello de “informação enganosa e potencialmente prejudicial à saúde das pessoas”.

O governo federal admitiu que sabia do “iminente colapso do sistema de saúde” do Amazonas dez dias antes de a crise estourar. A informação faz parte de um ofício encaminhado pela Advocacia-Geral da União ao STF. No documento, a AGU diz que o ministério da Saúde fez reuniões entre os dias 3 e 4 de janeiro com autoridades locais, quando detectou que o sistema de saúde do Amazonas estava à beira do colapso. No dia 14, começou a faltar oxigênio hospitalar no estado, afetando pacientes internados em UTIs. Só então foi anunciada a transferência de pacientes para outros estados.

Observação: Como se não bastasse, Pazuello enviou ao Amapá 78 mil doses da vacina Oxford/AstraZeneca destinadas ao Amazonas, que, no auge da crise em seu sistema de saúde, recebeu apenas as 2 mil unidades que seriam remetidas ao estado vizinho

Ainda em janeiro, o governo anunciou que enviaria um avião à Índia para buscar 2 milhões de doses do imunizante da Oxford/AstraZeneca. O ministério da Saúde divulgou o plano à imprensa, e um Airbus A330-900neo da Azul foi alugado e adesivado com a marca “Brasil imunizado”. Depois que a viagem foi adiada mais de uma vez (a Índia não autorizou a exportação, sob a justificativa de que coincidiria com o início da vacinação local), a aeronave foi deslocada para levar cilindros de oxigênio a Manaus.

Observação: Diante desse fiasco, o ministério da Saúde determinou o confisco da CoronaVac no paiol do inimigo. Na sexta-feira 15, o ministro mandou um ofício ao Butantan exigindo a entrega imediata de 6 milhões de doses da “vachina do Dória”. O instituto respondeu que só disponibilizaria o estoque depois que a pasta esclarecesse quanto do contingente já ficaria em São Paulo, e o governador tucano ameaçou recorrer ao STF

A CPI da Covid havia agendado para ontem a oitiva de Pazuello, que continua general da ativa — após transferir o comando da Saúde ao cardiologista Marcelo Queiroga, o general foi realocado como adido à Secretaria-Geral do Exército. Suas novas funções são preparar as reuniões do Alto Comando da instituição, conduzir processos de concessões de medalhas, organizar e divulgar boletins, além de assessorar o comandante a normatizar o uso de uniformes.

Observação: Segundo o general Hamilton Mourão, o ex-ministro deve ganhar novo cargo a partir de julho, quando haverá promoção de oficiais do Exército. Sobre o termo “adido”, o vice-presidente explicou: “O camarada quando ele não tem função específica ele fica adido. A Secretaria-Geral é um órgão subordinado diretamente ao comandante, então, ele fica adido à Secretaria para receber missões eventuais do comandante. Agora no mês de julho, tem promoções no Exército e movimentação de general. Aí, provavelmente, o Pazuello será movimentado para algum lugar”.

A transferência para o DF não impediu Pazuello de desfilar sem máscara em um shopping certe de Manaus. Ao ser questionado, o general ironizou: Pois é, tem que comprar. Onde compra isso?. E seguiu andando e rindo. A exibição de displicência foi vista como passível de reprimenda pública por parte do comando da Exército, mas nada aconteceu.

Pazuello envergonhou a instituição enquanto permaneceu no cargo e continuará a envergonhar fora dele. O ex-ministro Mandetta, que passou quase 7 horas respondendo às perguntas dos senadores na última terça-feira, criticou a gestão do general: “Foi um erro que a gente pagou [um militar na Saúde], foi duro, duro. Agora parece que temos pelo menos alguém que tem o linguajar, [mas] não tem muita experiência.

A oitiva de Pazuello na CPI foi reagendada para o próximo dia 19. O ex-ministro alegou que esteve em contato direto com duas pessoas que testaram positivo para a Covid e foi orientado a cumprir quarentena. Em outras palavras: dez dias depois do episódio lamentável no shopping de Manaus, Pazuello foi subitamente acometido por um surto de responsabilidade sanitária. Em tempos de assepsia, é como se estabelecesse com a Covid uma relação do tipo uma mão suja a outra. À frente da Saúde, ele prestou inestimáveis favores ao vírus, contribuindo com sua incompetência para que a infecção se propagasse. Como ex-ministro, utiliza a propagação do mesmo vírus como escudo para retardar as explicações sobre a sua macabra gestão.

Ironicamente, o risco de infecção não impediu que o general fosse submetido a intensas sessões de treinamento para o depoimento. Na terça-feira, enquanto Mandetta depunha no Senado, Pazuello passou 6 horas sendo treinado para não entregar a rapadura. Segundo O Globo, ele estava “muito nervoso” — seu temperamento explosivo é uma das principais preocupações do Planalto.

Por mais que se esforce, Pazuello não conseguirá afastar a maledicência que associa sua ausência ao medo de que sua aparição se transforme num desses espetáculos de teatro extremamente badalados que fracassam porque o público não foi devidamente ensaiado para a encenação. O Planalto receia que o depoente seja convertido pela CPI numa espécie de bala perdida no rumo de Bolsonaro.

A boa notícia para o governo é que a protelação do depoimento do general que comandou a pasta da Saúde guiando-se pelo lema segundo o qual “um manda e o outro obedece” não aumentou a taxa de suspeição que ronda o ex-capitão. A suspeita de que o desastre produzido por Pazuello é de responsabilidade do presidente continua nos mesmos 100%.

A CPI pode não derrubar Bolsonaro, mas terá efeitos deletérios sobre sua tão sonhada reeleição. A oposição e os muitos desafetos do governo estão eufóricos, mas avizinha-se um cenário perigoso, qual seja o de um presidente sem juízo e sem projeto, mas com uma pandemia, uma ruína econômica e quase dois anos de mandato pela frente.

Josias de Souza pondera que a tragédia sanitária é apenas a porção mais letal do fiasco em que se converteu o governo Bolsonaro, e o ministério da Saúde não é único setor submetido à pane gerencial. O MEC sofre retrocessos que levarão anos para ser revertidos e o setor ambiental encontra-se devastado. Na área econômica, há um ex-superministro que, sem poder elevar a própria estatura, rebaixa o pé direito do seu gabinete e ajusta suas pretensões reformistas às limitações de um presidente que se revelou bem menor do que a crise que engolfa o seu governo.

Nos próximos meses, seguindo o rastro de provas que Bolsonaro produziu contra si mesmo durante toda a pandemia, a CPI vai estragar o papel que o capitão mais gosta de desempenhar: o de colocar a culpa nos outros. Ao esmiuçar os erros que o presidente cometeu como se cultivasse o desejo secreto de ser apanhado, a CPI encurtará sua margem de manobra.

Para um personagem que nunca teve apreço pelas instituições democráticas, falta de espaço para manobrar é um convite para extravagâncias. Bolsonaro voltou a falar em “meu Exército” e “minhas Forças Armadas”. Sobrevoou novamente em helicóptero da FAB uma aglomeração de devotos, alguns deles partidários de uma intervenção militar. O príncipe Zero Três aplaudiu a ocupação que o autocrata de El Salvador promove na Suprema Corte local.

Ao apresentar Bolsonaro a si mesmo, evitando por meio de depoimentos e documentos que o presidente terceirize os seus erros, a CPI reforçará a falência de um projeto que se baseava na teatralização do novo. O velho deputado encrenqueiro do baixo clero que se apresentou em 2018 como uma fulgurante novidade chegará a 2022 como um estelionato político, que se vendeu ao eleitorado como um político antissistema, anticorrupção e pró-liberalismo econômico, mas acabou acorrentado ao sistêmico centrão, chefiando uma organização familiar com fins lucrativos e dando de ombros para a agenda de reformas liberais.

Bolsonaro é governado pelo vírus que, negligenciado por ele, passou a influenciar o rumo do governo enquanto mata. Com os calcanhares expostos na vitrine da CPI, o presidente tende a se dar por satisfeito se conseguir alcançar os dois objetivos que lhe restaram: não cair e continuar passando a impressão de que faz e acontece.

Pior do que um presidente sem rumo, só uma oposição desorientada. Numa evidência dos perigos que assediam o país, a única novidade do noticiário político é que José Sarney, o morubixaba da tribo do MDB, foi procurado por Bolsonaro e por Lula. Quando a esquerda e a direita buscam saídas no epicentro do patrimonialismo arcaico, resta ao brasileiro aguardar pelas próximas manobras e proteger a carteira.

Em tempo: Ouvido ontem na CPI da Covid, o oncologista Nelson Teich, que sucedeu a Mandetta no comando do Ministério da Saúde e se demitiu depois de 29 dias, disse aos senadores que o Brasil poderia ter acesso mais facilitado a vacinas caso tivesse um plano focado nisso. Ele declarou que durante o tempo que esteve à frente da pasta não havia vacina disponível para compra e que ele trouxe o teste da AstraZeneca/Oxford para o Brasil. Segundo Teich, para conseguir mais vacinas seria preciso fechar contratos de risco — que é quando se paga pelas doses sem saber se o imunizante será ou não eficaz. Questionado sobre a teoria aventada para o combate à pandemia pela “imunidade de rebanho” — adquirida quando uma grande quantidade de infectados gera uma proteção comunitária contra o vírus —, o ex-ministro disse que esse conceito é um erro. Volto a esse assunto com mais detalhes numa próxima postagem.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

PAZUELLO PRESIDENTE


Quando Eduardo Pazuello declarou à CPI que teve “autonomia” para gerir o Ministério da Saúde, os brasileiros foram autorizados a suspeitar de que há um impostor no Planalto. No instante em que o general disse que Bolsonaro nunca lhe deu “ordens diretas para nada”, ficou entendido que a República é presidida pelo ex-ministro cujo depoimento era aguardado com enorme expectativa. Mas ninguém poderia supor que o evento produziria revelação tão bombástica: quem manda não é Bolsonaro, mas Pazuello.

É o capitão quem obedece, não o general. Em de outubro de 2020, Bolsonaro declarou que houve “precipitação” de Pazuello em assinar protocolo manifestando a intenção de comprar do Butantan 46 milhões de doses da CoronaVac. “A vacina da China nós não compraremos, é decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população.” 

Pazuello disse à CPI ter ignorado Bolsonaro. Enxergou a manifestação do hipotético presidente como resposta de um “agente político”, não de um presidente. “A posição dele não interferiu em nada no diálogo com o Butantan”, esclareceu o mandatário presumido.

Recordou-se a Pazuello a frase que ele pronunciou ao lado de Bolsonaro: “É simples assim: um manda e o outro obedece.” E o general: foi “apenas uma posição de internet e mais nada.” Em público, Bolsonaro simulou desaprovação. Mas “nada foi dito” para Pazuello sobre a CoronaVac em conversas privadas. 

O ortopedista Henrique Mandetta e o oncologista Nelson Teich declararam ter deixado o comando do Ministério da Saúde por resistir à pressão de Bolsonaro para expandir o uso da cloroquina no tratamento da Covid. Cogitou-se até reescrever a bula do remédio por decreto. Com o general Pazuello foi diferente. Ao assumir o comando da Saúde, ele editou candidamente um memorando com orientações sobre o tratamento precoce da Covid. Incluiu no rol de medicamentos a cloroquina. Esclareceu à CPI que agiu por conta própria, pois Bolsonaro jamais ordenou coisa nenhuma. 

De repente, o país se deu conta de que Bolsonaro é apenas uma pose. O suposto presidente empurrou a cloroquina em entrevistas, em lives, em postagens, em discursos... Exibiu caixa do medicamento até para uma ema nos jardins do Alvorada. Pazuello é o único brasileiro a quem Bolsonaro não ousou vender a cloroquina. O capitão sabe quem manda. O depoimento de Pazuello faz lembrar uma célebre declaração de Tim Maia: “Não fumo, não bebo e não cheiro. Só minto um pouco.”

É uma pena que a presidência acidental do general, cujo poder está limitado ao tempo de duração do depoimento à CPI, não dará ao país um gosto do que seria ser oficialmente presidido por Pazuello. Um mandato de quatro anos em algumas horas não faz justiça a esse rei sem trono. 

Uma alternativa para o Brasil seria instalar uma CPI hipertrofiada no gabinete presidencial, esticando a sessão desta quarta-feira pelo tempo que resta de mandato para o atual governo. Bem verdade que seria necessário tomar algumas providências institucionais, como revogar a República. Mas um país que teve uma fraude como ministro da Saúde não terá dificuldade para se adaptar ao inimaginável.

Observação: O UOL Confere checou as declarações de Pazuello; para mais detalhes, clique aqui.

Por volta das 17h, Pazuello passou mal e precisou se deitar num sofá para se recuperar. O senador Otto Alencar, que é médico, contou que Pazuello teve síndrome vasovagal, por ficar tanto tempo sentado. “Deitamos ele no sofá. Se recuperou. Até poderia retomar o depoimento. Ele pode fazer o esporte que quiser, isso é muito comum. Acontece com quem está muito nervoso, emocionado e fica muito tempo sentado.” O ex-ministro negou que tenha passado mal. Alencar explicou a divergência: "Pazuello negou tanto na CPI que mente até sobre a própria saúde".

O plano original era retomar a oitiva do general ainda ontem, após o fim da reunião do plenário, mas o senador Omar Aziz decidiu encerrar a sessão, que será reinicada agora pela manhã, por volta das 9h30.

Com Josias de Souza.

domingo, 2 de janeiro de 2022

O CACHORRO LOUCO, A CAÇA ÀS BRUXAS E O FUNK DO DESPIROCADO


A penúltima crise produzida pelo ogro que alguns chamam de "mito" foi tratar a Anvisa como um conciliábulo e declarar aberta a temporada de caça às bruxas — consequência da impunidade a ele assegurada por Augusto Aras, na PGR, Arthur Lira, no comando da Câmara, e ministros pusilânimes ou lenientes do STF e do TSE, que, por alguma razão, não viram razão para tomar uma atitude, digamos, mais assertiva, nem mesmo depois dos discursos eminentemente golpistas de 7 de setembro.

Tanto o Judiciário quanto o Legislativo deveriam explicar por que garantem impunidade a um gestor que produz provas contra si mesmo toda vez que abre a boca (para espalhar fezes, como disse o senador Omar Aziz, depois de ser chamado pelo sultão do bananistão de “cara de capivara”). Como não explicaram, a ausência de punição produziu um fenômeno político novo: a lamentação depois do fato. 

Todos os brasileiros de bom senso lamentam que Bolsonaro tenha tratado a Anvisa como um antro de bruxarias numa live. E quem ainda dispõe de dois neurônios minimamente funcionais lastima também que apoiadores do sultão do bananistão se tornem perseguidores, forçando a direção da Anvisa a pedir proteção policial e renovar a requisição de investigação contra os caçadores de bruxas.

Em meio a tanto lamento, perde-se a noção do essencial: Bolsonaro instalou no Brasil uma espécie de manicomiocracia — um regime maluco em que servidores que cumprem o dever funcional de avaliar e aprovar vacinas são perseguidos por quem deveria homenageá-los. Não há justificativa plausível para a perseguição. Mas um caçador de bruxas não precisa justificar nada. Basta apontar o dedo e soltar os cachorros.

Costuma-se dizer que as instituições estão funcionando no Brasil. Mas essa afirmação é colocada em dúvida a cada novo surto de Bolsonaro. A PGR se limita a abanar o rabo para a insanidade; a cúpula do Congresso se esfrega no balcão de emendas; o Supremo late de vez em quando, mas não morde.

A impunidade transforma a insanidade do mandatário num processo de desmoralização institucional. Bolsonaro deixou de ser um presidente de reações imprevisíveis para se tornar um presidente tristemente previsível: depois de converter a alvissareira aprovação de uma vacina infantil contra a Covid num problema, sua insolência decidiu encrencar novamente com o Supremo.

O ministro Lewandowski intimou o governo a fornecer, em 48 horas, explicações sobre a inclusão da vacina infantil no Plano Nacional de Imunização. Em resposta, o governo pediu mais tempo. Enquanto a AGU preparava a resposta ao Supremo, o mandatário-suserano e seu ministro-vassalo da Saúde — uma patética versão 2.0 do anterior, e igualmente seguidor da norma explícita segundo a qual "um manda e o outro obedece" — jogavam lenha na fogueira.

Durante mais um passeio pelo litoral paulista, ao dizer que é o pai quem decide se a criança deve ou não ser vacinada, o Messias de festim cometeu duas impropriedades: 1) esqueceu as mães; 2) difundiu a falsa suposição de que crianças serão arrastadas a força, à revelia dos pais, para os postos de vacinação.

Industriado pelo chefe, o bonifrate da Saúde tirou da cartola uma consulta pública e a arguiu a necessidade de ouvir a opinião da câmara técnica de assessoramento sobre imunização. Esquece-se o cardiologista que 1) o povo não quer ser consultado, mas orientado; 2) os técnicos da câmara já avalizaram a vacinação das crianças de 5 a 12 anos. 

Ao empurrar uma providência óbvia com a barriga, o Planalto oferece a senha para que Lewandowski ordene a aquisição e distribuição da vacina, o que oferecerá a Bolsonaro material novo para repetir o velho lero-lero segundo o qual o Supremo retirou a pandemia da alçada do governo. Já se pode antever a declaração em que o capetão dirá que governadores e prefeitos são responsáveis pelos hipotéticos efeitos colaterais da vacina.

É tudo enfadonhamente previsível. Primeiro, Bolsonaro negou a pandemia. Era "alarmismo" da mídia. Depois, negou o vírus. Provocaria apenas uma "gripezinha". Na sequência, negou a vacina, que transformaria os "maricas" em "jacarés". Chegou mesmo a negar os mortos — esgrimindo documento falso do TCU e incitando seus devotos a invadirem hospitais — e o passaporte da vacina — sob o argumento de que é preferível morrer a perder a liberdade. Agora, nega necessidade de imunizar as crianças. Não é por acaso que a maioria dos brasileiros sinaliza nas pesquisas a intenção de negar votos ao negacionista.

O Brasil amarga duas patologias: a da Covid e a do ódio. Contra a primeira, o remédio é a vacina. Contra a segunda, há dois velhos imunizantes à disposição: sensatez e moderação. Bolsonaro não dispõe de nenhum dos dois.

Sempre que uma oportunidade de baixar a temperatura política lhe bate à porta, o capetão reclama do barulho. E eleva a fervura. Estimula divisões. Submetidos à sua dinâmica, cidadãos não se enxergam, não se ouvem. Tratam-se como inimigos. Muitos começam a se dar conta de que não são rivais. São brasileiros.

O lógico seria que, depois de eleito, o amálgama de mau soldado e parlamentar medíocre virasse um presidente de todos, inclusive dos que não votaram nele. Mas ele sempre fez questão de governar para um terço da população, espalhando raiva e desinformação.

Sem enxergar nada de muito atraente à sua frente, um pedaço do eleitorado observa o retrovisor. Materializa-se na política brasileira um fenômeno descrito no mesmo livro de Eclesiastes, no capítulo 1, versículo 9. Diz o seguinte: "O que foi tornará a ser; o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do Sol."

Ao apostar na divisão, Bolsonaro como que convidou o eleitorado a reviver 2018 no ano de 2022, só que com o sinal trocado. O antipetismo ficou menor do que o antibolsonarismo. Estalando de pureza moral, o ex-presidiário de Curitiba, ora beneficiado pela anulação de sentenças por questões processuais, fala em ressurreição.

A pretexto de ironizar o jantar em que Lula e Alckmin desfilaram juntos, Bolsonaro deixou-se filmar dançando funk a bordo de uma lancha. A canção tem a suavidade de um porco-espinho. Num trecho, compara mulheres de esquerda a cadelas. Os filhos do presidente e seus devotos bolsonaristas cuidaram de espalhar as imagens pelas redes sociais.

A aparência de despreocupação se desfez em outras postagens dos filhos do presidente. Carlos e Flávio reproduziram um vídeo da campanha de 2018 em que Alckmin declara que, "depois de ter quebrado o Brasil, Lula diz que quer voltar ao poder", para "voltar à cena do crime." Em outro post, Eduardo perguntou por que Alckmin "se aproxima de um condenado".  

Os membros da família da rachadinha confundem amnésia com consciência limpa. Esquecem de lembrar — ou lembram de esquecer — que na mesma campanha de 2018 Bolsonaro agradeceu a Alckmin por ter "unido" em sua coligação "a escória da política". 

Estavam com Alckmin o PL de Valdemar Costa Neto, estrela do escândalo do mensalão; e o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, destaques do petrolão. Hoje, o PL é o partido de Bolsonaro, e o PP tomou de assalto o Gabinete Civil e o balcão das emendas em troca segura os pedidos de impeachment contra o presidente.

O ano de 2022 mal começou e já exala um insuportável fedor de podre. O Brasil testemunhará uma campanha eleitoral violenta e suja. As ideias dos candidatos ainda não estão claras. Por ora, a única certeza disponível é a seguinte: seja quem for o próximo presidente, o Centrão estará fechado com ele.

Bom ano novo a todos.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

DURMA-SE COM UM BARULHO DESSES!


Carlos Murillo, chefe da farmacêutica americana Pfizer no Brasil à época das negociações para compra de vacinas contra a Covid e ora gerente-geral da empresa para a América Latina, foi ouvido na sessão de ontem da CPI da Pandemia. Em seu depoimento, ele afirmou que o governo brasileiro ignorou por três meses negociações de vacina, que a empresa sugeriu 100 milhões de doses a serem entregues entre 2020 e 2021, mas só recebeu resposta no dia 9 de novembro, e que o vereador carioca Carlos Bolsonaro e o assessor especial para assuntos internacionais da Presidência, Filipe Martins, participaram das negociações feitas entre a Pfizer e o governo federal

***

A AGU prepara um pedido de habeas corpus para garantir ao ex-ministro Pazuello o direito de ficar calado durante seu depoimento à CPI da Covid, marcado inicialmente para o último dia 5, mas reagendado para o dia 19 depois que o general alegou ter tido contato com duas pessoas que testaram positivo para a Covid (doença que ele já contraiu e da qual se recuperou em outubro do ano passado). Foi sortado relator o ministro Lewandowski, que deve decidir ainda hoje sobre o pedido. Vale relembrar que dois dias depois do reagendamento o general — que já havia sido flagrado desfilando sem máscara em um shopping certe de Manaus — foi visto em companhia do ministro Onyx Lorenzoni e perambulando sem máscara pelo hotel onde mora. 

Consoante a coluna de Josias de Souza, Bolsonaro não gostou de saber que seu ex-ministro e bonifrate flerta com a ideia de buscar no STF um habeas corpus que lhe permita exercitar na CPI da Covid o direito constitucional de ficar calado para não se autoincrimiar. A serviço do Planalto, operadores civis e militares tentam retomar, por assim dizer, o controle sobre o general, visando convencê-lo a seguir o roteiro ensaiado nas sessões de treinamento a que se submeteu na Presidência. 

Prevalece a avaliação de que o ex-ministro dificilmente obteria respaldo do Supremo para trocar a pele de testemunha, que o obriga a dizer a verdade, pela camuflagem de investigado, que oferece a trincheira do silêncio. Ademais, auxiliares do presidente acham que a simples tentativa de obter o habeas corpus seria ruinosa, na medida em que reforçaria a tese de que o general — que comandou a pasta da Saúde guiando-se pelo lema segundo o qual “um manda e o outro obedece” — tem algo a esconder. 

Uma equipe de advogados da União está coletando documentos sobre aquisição de respiradores e sobre fabricação de cloroquina para subsidiar o depoimento de Pazuello, que além de ser investigado pelo MPF, acusou políticos interessados em verbas públicas e “pixulés”. Na avaliação dos senadores, o general tem conhecimento de escândalos que podem comprometer o Planalto, daí o esforço da AGU em blindar o presidente — não por acaso esta é a primeira vez que a AGU desloca uma equipe para orientar o depoimento de um ex-ministro, conforme apurou o Estadão junto a servidores do órgão.

A princípio, o habeas corpus visava desobrigar Pazuello de prestar depoimento à CPI, mas entendeu-se que garantir ao depoente o direito de não responder perguntas comprometedoras bastaria para livrar de problemas tanto o vassalo quanto seu suserano. 

Segundo o colunista Lauro Jardim, um interlocutor palaciano afirmou que “se os senadores perguntarem a Pazuello se Bolsonaro o proibiu de comprar a ‘vacina do Doria”, o ex-ministro fará uso do direito ao silêncio; se lhe perguntarem para qual time ele torce, ele responderá.” Sobre o general ter ou não sido reinfectado pelo coronavírus ninguém mais fala nada — se for perguntado sobre isso na CPI, é provável que ele fique calado.

Thaís Oyama publicou em sua coluna que a frase “não vai dar em nada” é a que mais se ouve no Palácio do Planalto quando se trata dos efeitos que a CPI da Covid terá sobre Bolsonaro e seu macabro governo. 

Do ponto de vista político, o argumento é que o povo não está interessado em acompanhar um “ringue com finalidades eleitorais”, mas em se vacinar e voltar a trabalhar e tocar a vida. Do ponto de vista jurídico, se ficar entendido que Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade, caberá ao deputado alagoano, líder do Centrão e presidente da Câmara Arthur Lira — que até hoje não se animou a dar andamento a nenhum dos mais de 110 pedidos de impeachment que abarrotam suas gavetas — a decisão sobre a abertura do processo. 

Já se a Comissão entender que houve crime comum, ficarão a cargo de Augusto Aras, o passador-de-pano-geral da República — fiel escudeiro do capitão por conta da improvável indicação para a vaga do decano Marco Aurélio Mello no STF — dar início a eventual investigação e, em sendo o caso, apresentar a respectiva denúncia.  

O Planalto espera que a CPI produza resultados pífios, o que parece pouco provável à luz da desfaçatez com que Bolsonaro e seus sectários cantam em verso e prosa a mais absoluta probidade do governo federal. Vale lembrar que o presidente disse ter acabado com a Lava-Jato porque não havia mais corrupção no governo — probidade essa fulminada pela reportagem publicada pelo Estadão sobre a existência de um “orçamento paralelo” que teria beneficiado parlamentares seguidores da cartilha do capetão.

O “Tratoraço”, como esse descalabro vem sendo chamado pela mídia — um neologismo recente que deve entrar para os dicionários como sinônimo de “corrupção”, “depravação”, “devassidão” —, será para o governo Bolsonaro algo parecido com o que foi o “Mensalão” para a primeira gestão do ex-presidiário guindado recentemente pelo STF à condição de “ex-corrupto”.

Parafraseando a jornalista Olga Curado, a pequenez dos que se beneficiam com a iniciativa de uso do dinheiro público e que junta parlamentares e o gabinete da Presidência da República revela o real compromisso de cada um: a sobrevivência eleitoral em 2022.

De um lado, um “ministério paralelo” escondido do regramento institucional cria a estratégia de comunicação do presidente e estabelece políticas de Saúde, enquanto um filho numerado organiza os argumentos e define a postura do capitão, fiel à crença de que ele foi eleito pela ação de sua milícia na internet. É um gabinete à margem do escrutínio das decisões técnicas e institucionais, onde deliberações surgem nos discursos e comportamentos erráticos de um mandatário cujo limite de entendimento da realidade nacional parece cada vez mais improvável. De outro lado, surge um “orçamento paralelo” estruturado no fisiologismo e aparentemente avalizado pelo presidente da Câmara, que, com a conivência do chefe do Executivo, pressiona “os seus” a se apropriarem da “quota” que lhes garantirá as campanhas para a reeleição. 

Aqueles que se habituaram a viver em palácios atropelam a honradez, chafurdam no erário e dão de ombros para barbáries de toda espécie — notadamente a morte de quase 430 mil cidadãos, resultante, em grande medida, da incompetência irresponsável de poder central e seus acólitos. O que se têm, na vida real, é uma gestão macabra, onde a morte tem uma única explicação: são todos bandidos. É a justificativa para a inépcia, a incompetência e a hipocrisia que fazem parte do desmonte da campanha de um ex-capitão que, acalantado pela cantilena do ódio, ora dorme no colo esplêndido do Centrão.

terça-feira, 4 de maio de 2021

JÁ NÃO ERA SEM TEMPO

 

Bolsonaro admite atuar na contramão do desejo da maior parte dos brasileiros quando desafia o país a convencê-lo a mudar de comportamento — “Devo mudar meu discurso, me tornar mais maleável, devo ceder? Fazer igual à grande maioria? —, mas, como o escorpião da fábula, é incapaz de agir contra a própria natureza — “Se me convencerem, faço, mas não me convenceram ainda”.

Sob o comando do mau militar e parlamentar medíocre que a parcela pensante do eleitorado foi obrigada a apoiar para impedir a volta do lulopetismo corrupto, amargamos há 28 meses um bolsonarismo boçal, comandado por um mandatário que disse textualmente que não nasceu para ser presidente, nasceu para ser militar (e nem isso conseguiu, pois foi expelido dos quadros da Escola de Oficiais por indisciplina e insubordinação), e que, após subir a rampa do Planalto, encarnou uma curiosa versão “Dilma de calças” — sem Lula na retaguarda, mas com uma dose generosa de crueldade.

É fato que nenhum outro inquilino do Planalto teve desafios tão complexos como os que caíram no colo do mito de araque, mas também é fato que nenhum deles era dotado de uma miopia política tão desastrosa quanto a do atual (com a possível exceção da pseudo gerentona, mas isso é outra conversa). Diante disso, a economia afunda, a população empobrece e o desemprego atinge proporções gigantescas num cenário de hospitais e postos de saúde lotados. E da feita que o pior líder mundial a lidar com o coronavírus vestiu a carapuça, cabe ao Congresso assumir sua função precípua de órgão governativo e fiscalizador em defesa dos interesses mais sagrados da sociedade brasileira.

A CPI da Covid deve responsabilizar agentes públicos que por negligência, ignorância assumida, má-fé ou tibieza deixaram de seguir o óbvio interesse coletivo no combate aos efeitos da pandemia. Na correlação de forças, a bancada não alinhada com o Planalto soma sete votos. Minoritário, o esquadrão de Bolsonaro, que dispõe de quatro votos, encolheu na sessão inaugural. Ciro Nogueira, visto como uma espécie de general da tropa do Planalto no Senado, ornamentou com o seu voto a eleição do “independente” Omar Aziz para a presidência da CPI e a escolha do “oposicionista” Renan Calheiros para o posto de relator da investigação legislativa. Os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich devem depor nesta terça, e amanhã será a vez do o general Eduardo “é simples assim: um manda e o outro obedece” Pazuello.

A revista eletrônica Crusoé  desta semana mostra como Bolsonaro pode se encrencar — e muito — por conta de seu comportamento execrável em relação ao enfrentamento do vírus. Daí o indisfarçável desespero do Planalto diante da prestação de contas. Um dos pontos mais sensíveis é a propaganda contínua que o presidente fez — e faz — da cloroquina. O remédio é comprovadamente ineficaz no tratamento da Covid e pode causar sérios efeitos colaterais, mas o ministério da Saúde mandou comprar, produzir e distribuir como panaceia, enquanto outras nações preocupavam-se em adquirir vacinas.

Se governar é fazer escolhas, nunca antes na história deste país se viu tamanho equívoco na eleição de prioridades. Nada do que Bolsonaro fez deu certo, como, de resto, costumam fracassar suas tentativas de criar tumultos, distrações e dispersões. Se a CPI da Covid chegará a bom termo, isso são outros quinhentos (a serem conferidos daqui por diante), mas CPI nenhuma é boa para governo algum, justamente por ser instrumento de atuação da minoria — daí a razão de a maior parte delas ficar pelo meio do caminho, sucumbindo ao emprego das armas à disposição dos detentores do poder.

Auado, Bolsonaro ataca, valendo-se da troca de insultos pertencente ao campo do exercício do ódio improdutivo que propicia graça, anima seus acólitos e mobiliza emoções, mas não move moinhos de maneira efetiva. Em outras palavras, cultiva ilusões que levam apenas a uma inevitável pergunta: será imutável a regra imposta pelo presidente mediante a qual ele ataca e o país perde tempo e energia na defesa? A resposta é: não necessariamente.

Indo além para parafrasear Bolsonaro, talvez tenha chegado (ou até passado) o momento de perguntar se sociedade e instituições devem mudar, tornar-se menos maleáveis, mais intransigentes, repudiá-lo com veemência semelhante à da maioria (apertada, porque não faltam descerebrados que consideram o governo regular ou bom). 

Legalmente nada impede que a dinâmica de defesa e ataque se inverta e os contendores troquem de lugar. O instrumento mais contundente seria a abertura de um processo de impeachment, mas o réu que ora preside a Câmara Federal e herdou de seu antecessor cerca de 60 pedidos de impedimento do presidente — agora já são mais de 100 — não demonstra vontade política para dar andamento a algum deles.

Observação: Durante seus três mandatos à frente da Casa, Rodrigo Maia, que vivia às turras com Bolsonaro, disse que  via erros, mas não crimes de responsabilidade” nas ações do desafeto (talvez devesse ter procurado um oftalmologista). Lira segue na mesma linha. Segundo ele, todos os pedidos de impeachment que analisou são “inúteis”.

A permanência do capitão no poder pode começar a sofrer forte questionamento por parte de setores que até pouco tempo atrás eram refratários à hipótese de impedimento ou de abertura de processos de investigação nos âmbitos parlamentar e criminal. Bolsonaro contrata esse risco quando envereda por um caminho que o carrega a um ambiente desfavorável. Pisa em terreno minado ao chamar um debate cujo desenrolar não tem chance de chegar a bom termo para ele. Na pior das hipóteses (para o presidente), acabará convencendo a maioria a romper o contrato eleitoral de 2018. Na melhor, ficará falando sozinho em sua lógica de caráter regressivo que objetivamente só interessa a um nicho e não encontra identificação no eleitorado de maneira substancial de forma a lhe dar condições competitivas de pleitear um novo mandato.

Governos não dormem no ponto nem se entregam à soberba do menosprezo em relação ao potencial tóxico das CPIs sobre seus destinos, sobretudo quando abundam indícios de que os alvos têm culpa no cartório. A CPI da Covid tem farto cardápio de evidências. Tanto as ações cometidas quanto as omissões perpetradas no transcorrer da crise sanitária desde o seu início estão muito bem registradas nos atos e palavras do chefe do Executivo e de seus prepostos, o mesmo ocorrendo nos inquéritos que investigam ilícitos em repasses de verbas federais país afora. Some-se a isso o agravante de o prejuízo ser contabilizado em perdas de vidas. Se ficarem estabelecidos dolos, estaremos diante de delito mais sério que roubo de dinheiro público.

O que vai acontecer pelos próximos meses no Senado não é um julgamento de tribunal nem investigação submissa aos ditames de uma polícia ou de um Ministério Público. Nessas últimas o silêncio no curso dos trabalhos é a alma do negócio. Em CPIs, a chance do êxito maior se constrói quanto mais visíveis forem as investigações. Ademais, não é certo tomar o “técnico” como antônimo de “político”. Tecnicalidades não são garantias de eficácia e/ou de condução moralmente correta de procedimentos. Às vezes, muito ao contrário. Mas há que ter discernimento: uma coisa é a essência da função parlamentar, outra é o uso eleitoral mediante truques, falsificações, omissões, parcialidades fraudulentas e sobreposição de conveniências pessoais aos interesses do público.

Se enveredar por esse caminho, a CPI da Covid cairá no descrédito e estará fadada ao fracasso. Pode acontecer? Pode, já vimos comissões de inquérito no Congresso (a maioria, aliás) embarcarem nessa canoa. Não parece ser o caso em tela. Primeiro, em razão do volume de evidências. Todavia, se de um lado isso dificulta a defesa do governo federal, e mesmo dos estaduais com indícios de culpa no cartório, de outro funciona como barreira de contenção a desvirtuamentos justamente devido à exposição dos fatos sobre os quais trabalhará a CPI. Qualquer tentativa de manipulação mais esquisita será facilmente detectada pelo público e utilizada como arma de contra-ataque por parte do Planalto e adjacências.

O segundo sinal de que a investigação do Senado tende a se manter no prumo é a composição da comissão. Só tem cobra criada, notadamente na ala oposicionista, na qual se incluem os ditos independentes. Gente experiente o bastante para detectar e se desviar de armadilhas. Entre titulares e suplentes há cinco ex-governadores, dois ex-presidentes do Senado, um ex-ministro da Saúde e dois líderes de bancada, sendo um do MDB e o outro da oposição. Do lado governista, composto de uma desconfortável minoria de 4 x 7, o nome de maior destaque é o de Ciro Nogueira, presidente do PP.

Observação: Na votação do impeachment de Dilma, Ciro Nogueira prometera ser fiel ao PT. Horas depois, após certificar-se de que o vento soprava noutra direção, votou a favor da guilhotina. De saída, o PP ganhou de Michel Temer dois ministérios e a presidência da Caixa Econômica Federal. Em 2018, as vésperas de fechar com Alckmin, o senador piauiense — que concorria à reeleição — declarava amor eterno ao xará Ciro Gomes. Hoje, responde pela coordenação política do Planalto a deputada de primeiro mandato Flávia Arruda, que tem o apoio do PP de Ciro e de Arthur Lira. Fechado com Bolsonaro na CPI, Ciro recebeu um afago definitivo de Renan Calheiros: “Para além de qualquer divergência, nenhum dos senhores é mais meu amigo quanto meu amigo é o senador Ciro Nogueira”, disse o relator que leva pânico ao Planalto. Quer dizer: Ciro exerce na CPI da Covid o papel de sempre. Será a favor de tudo e absolutamente contra qualquer outra coisa, desde que seus interesses particulares sejam atendidos.

Tal correlação de forças, quantitativa e qualitativamente falando, confere tranquilidade suficiente aos que ali estão dispostos a não dar trégua aos desmandos de Bolsonaro, e de qualquer outro governante, para que o façam sem recorrer a expedientes insidiosos ou a artificialidades que transformem a CPI num triste espetáculo de vaidades eleitorais. Farão política sim, pois esse é o nome do jogo no Congresso. Ou o relator foi escolhido e é temido por alguma razão que não seja política? Senadores não são magistrados. Tampouco estão por isso autorizados a se utilizar de uma comissão de inquérito (ainda essa cujo tema é uma tragédia humanitária) como palanque ou picadeiro.

Ainda que a CPI por si só não tenha o condão de resolver os problemas — pois não trará vacinas nem fará de Bolsonaro um líder capaz de inspirar comportamento social condizente com a crise —, o fato de expor o que poderia ter sido feito e o que não foi feito para minorar o alastramento do vírus, administrar melhor o sistema de saúde e principalmente estancar o ritmo alucinante de vítimas fatais do até agora maior mal do século pode até não impedir a reeleição de Bolsonaro, mas dificilmente contribuirá para transformar esse sonho — dele; para nós é um pesadelo — em realidade.

Com Dora Kramer e Josias de Souza