Depois do discurso golpista de Bolsonaro na mais paulistas das avenidas, o termo impeachment virou assunto não só nos jornais, nas TVs e nas redes sociais, mas também nas conversas dos líderes políticos do Congresso, do Judiciário e do próprio governo. PSDB, PSD e DEM anunciaram a abertura de discussões internas sobre o impedimento do capitão, e o PDT apresentou uma notícia-crime contra ele por crime de responsabilidade. É a primeira vez que o tema ganha tamanha força, apesar do histórico de crises e de motivos para um impedimento desde o início desta funesta gestão.
A questão que se coloca não é a existência ou não de razões para apear Bolsonaro do poder. Collor perdeu o cargo (ou foi assim que tudo começou, melhor dizendo) por causa de um prosaico Fiat Elba e Dilma, por pedaladas fiscais (na verdade, a queda foi motivada pelo abjeto conjunto da obra da gerentona de festim e de sua falta de traquejo no trato com o Congresso), enquanto Lula passou incólume pelo mensalão e Michel Temer sobreviveu às "flechadas de Janot". A pergunta que se impõe é: quem quer de verdade Bolsonaro fora do Palácio do Planalto e o que está disposto a fazer para isso?
O deputado-réu que ora preside a Câmara definitivamente não quer comprar uma briga com o bolsonarismo e abrir mão de seu largo quinhão na divisão de poder hoje em funcionamento. O presidente do Senado, dono de uma mineirice a toda prova, anunciou que é preciso pacificar a relação entre os Poderes. Ainda assim, "em nome da segurança", Pacheco cancelou as sessões do Senado até a semana que vem.
A reação mais enfática ao show golpista de Bolsonaro veio do presidente do Supremo. Para Fux, se o chefe do Executivo cumprir a ameaça de não mais obedecer a ordens judiciais emanadas daquela Corte, estará cometendo “crime de responsabilidade, a ser analisado pelo Congresso Nacional”. Foi um discurso forte, mas desagradou aos mais indignados no próprio tribunal, para quem o magistrado deveria ter aberto uma investigação contra Bolsonaro.
Mesmo com a popularidade em queda livre, o "mito" ainda conta com o apoio entusiasmado de um número considerável de "bolsomínions" — uma escória fanática e extremamente ruidosa. Esse apoio não é suficiente para reconduzi-lo ao cargo, mas é capaz de levá-lo ao segundo turno em 2022. Já para a oposição em geral ― e para Lula em particular ― interessa derrotar Bolsonaro nas urnas.
Se o TSE cumprir o que vem prometendo (nas entrelinhas) e tornar o presidente inelegível, haverá chances consideráveis de um candidato "de centro" (nada a ver com o Centrão) mandar o demiurgo de Garanhuns catar coquinhos (o ideal seria mandá-lo de volta à cadeia, mas isso é outra conversa). Isso sem mencionar que as manifestações golpistas do último dia 7 reuniram um número de apoiadores bem aquém do sonhado pela capitão, mas muito além daquele que a oposição gostaria.
Resta saber quão expressivos serão os atos contrários ao governo articulados pelo Vem Pra Rua e pelo MBL neste domingo. A mobilização começou em julho, logo após o anúncio do superpedido de impeachment que reuniu de Joice Hasselmann a Guilherme Boulos, de Gleisi Hoffmann a Kim Kataguiri. Mas já dizia Magalhães Pinto que "política é como as nuvens no céu; você olha e elas estão de um jeito, olha de novo e elas já mudaram".
Se nada mudou de ontem para hoje, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e a senadora Simone Tebet devem marcar presença, mas Boulos e Freixo, não. Ciro Gomes ficou de ir, mas os petistas se recusaram a tomar parte de uma passeata da direita convocada por um movimento anti-Lula que defendeu o impeachment de Dilma. Enquanto Kataguiri (fundador do MBL) se esfalfou para atrair mais gente para as manifestações, uma facção do movimento se recusava a abrir mão da ideia de inflar um enorme Pixuleco na Paulista.
Nas redes sociais, petistas e direitistas antibolsonaro se atacam,
numa discussão estéril sobre de quem é a culpa pelo resultado da eleição de
2018 e qual seria a manifestação mais legítima contra o presidente da
República.
Segundo a jornalista Malu Gaspar, colunista do Globo, a impressão que se tem é a de que muitos não aprenderam nada com três anos de bolsonarismo ― ou talvez não queiram tanto assim ver Bolsonaro fora do Palácio do Planalto. Já a também jornalista Vera Magalhães, atual apresentadora do programa Roda Viva (que vai ao ar toda segunda-feira, às 22h, pela TV Cultura), diz que "quem acreditar no recuo de Bolsonaro é 'cínico, burro ou ingênuo', ou um mix dos três".
Para Vera, o recuo de Bolsonaro deixou aliados e apoiadores "tão desarvorados" que eles se esqueceram de "relaxar e lembrar que amanhã mesmo o 'mito' terá voltado ao normal", mandando às favas a máxima temerista de que "verba volant, scripta manent" (avise-se ao Centrão, que "verba", no caso, é a palavra, que voa; a do orçamento, como a palavra escrita, é a que fica).
Cínico será o alívio do mercado, dos ministros e dos deputados da base aliada, explica Vera. O primeiro grupo tratará de tentar recuperar os prejuízos dos últimos dias. Os integrantes do primeiro escalão buscarão para o espelho, para o travesseiro e para os filhos uma justificativa plausível para continuar servindo a um governo que busca uma ruptura institucional. E os nobres parlamentares da base aliada encontrarão a desculpa necessária para continuar mamando nas tetas do Orçamento até exauri-las, sem precisar fingir que estão pensando a sério em abrir um processo de impeachment. O último grupo a acreditar na nota de R$ 3 de Bolsotemer é o dos burros, integrado pela ala mais bovina dos bolsomínions. Os comentaristas a soldo, pseudojornalistas e blogueiros golpistas arrancaram os poucos cabelos que têm e arreganharam as gengivas inflamadas para xingar seu "mito".
Os inquéritos de Alexandre de Moraes têm de seguir; a
MP do Marco Civil tem de voltar para o Planalto com selo de endereço não
encontrado; as investigações do TSE sobre as mentiras de Bolsonaro
quanto ao pleito não podem parar; a CPI precisa concluir seu relatório
com imputação dos inúmeros e hediondos crimes cometidos pelo presidente e pelo
sumido general Pazuello; e a indicação de André Mendonça ao STF
tem de ser rejeitada, porque quem o indicou quer fechar o Supremo. Essa é a pauta de resistência possível e viável, uma vez
que o impeachment não sairá, finaliza Vera.
Algumas togas parecem ser da mesma opinião. Segundo esses eminentes magistrados, o diálogo com o Poder Judiciário só será retomado se o chefe do Executivo demonstrar que o recuo é permanente, não apenas de ocasião — como foi num sem-número de outros episódios, em que o capitão recuou, mas voltou a adotar a postura beligerante dias (ou horas) depois.
Ricardo Lewandowski retirou de uma sessão virtual da corte uma ação que busca estipular um prazo para que o presidente da Câmara analise os (136) pedidos de impeachment apresentados contra Bolsonaro. Dada a importância do tema, o magistrado entendeu que a discussão deve se dar numa sessão plenária presencial. A ação foi proposta pelo deputado federal Kim Kataguiri e a relatoria coube a Cármen Lúcia.
Observação: Na sessão virtual, iniciada nesta sexta-feira (10), a ministra (mineira como Pacheco e, a julgar por suas mais recentes decisões, convertida à seita de Gilmar Mendes) votou contra a definição de prazo, seguindo a jurisprudência do STF de que a decisão sobre a abertura ou não do processo, bem como a avaliação do momento para isso, são de caráter político e cabem exclusivamente ao presidente da Câmara. Lewandowski deve propor um entendimento diferente, com base na Lei de Processos Administrativos, para estipular um prazo razoável para essa análise.
Resta aguardar os resultados das manifestações deste domingo contra nosso indômito capitão, que é uma versão revista, atualizada e piorada do protagonista do livro O MÉDICO E O MONSTRO, de Robert L. Stevenson, e, como o escorpião da fábula, incapaz de agir contra sua própria natureza..
E VIVA O POVO BRASILEIRO