sábado, 11 de setembro de 2021

QUOUSQUE TANDEM, BOLSONARO?

O fragmento em latim que intitula esta postagem é a parte inicial da frase "quousque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?", usada por Marcus Tullius Cicero (106 – 43 a.C.) em seu discurso contra o conspirador Lucius Sergius Catilina.

Dono de uma extensa folha de velhacarias, Catilina, derrotado por Cícero nas eleições para cônsul, decidiu conquistar pela espada o que as urnas lhe negaram. O golpe foi descoberto e denunciado pelo candidato vencedor — um dos maiores oradores da história de Roma — numa série de discursos notáveis pela elegância de estilo e pela firmeza das acusações. Segue excerto:

“Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estivestes, a quem convocaste e que deliberações foram as tuas. Ó tempos, ó costumes!”

Cícero tinha conhecimento dos mínimos detalhes da conjura, mas deu ao sedicioso a oportunidade de sair da cidade e levar consigo a perniciosa sentina que o apoiava — “Sai já de Roma, livra de temor a República: se esperares por este preceito parte já para o desterro!” — porque queria expor Catilina aos olhos de todos os cidadãos. 

Chicoteado pelas palavras do cônsul, nada mais restou ao réprobo senão escapar da cidade e jogar-se na aventura de um tudo ou nada. Mais ao norte, reuniu-se a seus sequazes e foi facilmente batido por um destacamento militar enviado em diligência contra eles. Os poucos cúmplices do golpista que haviam permanecido em Roma foram detidos, levados aos suplícios e executados, e o povo celebrou o grande Cícero, que, com as Catilinárias, evitou uma guerra intestina sangrenta.

Situação parecida leva o Legislativo e o Judiciário tupiniquins a repudiar sucessivos crimes e ofensas de Bolsonaro ao Estado de Direito. Por motivos diversos — entre os quais as possíveis consequências adversas que o trâmite de um impeachment produziria em nossa combalida economia —, a demora em agir é cruel (para com a sociedade) e perigosa (para a frágil democracia tupiniquim).

Bolsonaro vem colecionando crimes de responsabilidade a mancheias. Em junho, um superpedido de impeachment assinado por políticos, parlamentares e entidades da sociedade unificou os argumentos das outras 123 petições que haviam sido protocoladas até então, mas todas continuam criando pó no gavetão do deputado-réu Arthur Lira.

Observação: O ministro Ricardo Lewandowski retirou de uma sessão virtual do STF uma ação que busca estipular um prazo para que o presidente da Câmara analise os (136) pedidos de impeachment apresentados contra Bolsonaro. Dada a importância do tema, o togado entendeu que a discussão deve se dar numa sessão plenária presencial. A ação foi proposta pelo deputado federal Kim Kataguiri e a relatoria coube à Cármen Lúcia, que votou contra a definição de prazo na sessão virtual iniciada nesta sexta-feira (10), seguindo a jurisprudência do STF de que a decisão sobre a abertura ou não do processo, bem como a avaliação do momento para isso, são de caráter político e cabem exclusivamente ao presidente da Câmara. Lewandowski deve propor entendimento um diferente, com base na Lei de Processos Administrativos, para estipular um prazo razoável para essa análise. Aleluia!

No último dia 7, Bolsonaro pôs sua usina de crimes para funcionar a todo vapor. Além chamar o ministro Alexandre de Moraes de "canalha", avisou que não cumpriria decisões judiciais proferidas pelo togado e reafirmou que "só sai morto da Presidência". 

Collor perdeu o cargo por causa de um prosaico Fiat Elba; Dilma, por pedaladas fiscais (na verdade, sua queda foi motivada pelo abjeto conjunto da obra e falta de traquejo no trato com o Congresso); Lula passou incólume pelo mensalão; Michel Temer sobreviveu às "flechadas de Janot". A pergunta que não quer calar é: quem quer de verdade Bolsonaro fora do Palácio do Planalto e o que está disposto a fazer para isso? — ou por outra, o que os demais Poderes estão esperando para pôr um ponto final nessa palhaçada?

Cícero exortou Catilina a deixar a cidade, arriscando-se a ser vítima potencial de uma tempestas inuidiae (tempestade de ódio). Tratava-se de um risco calculado. O que ele queria era que o desafeto se reunisse aos comparsas, para, assim, poder identificá-los e puni-los. Mas os brasileiros estão carecas de saber (sem qualquer alusão à calva luzidia do ministro Alexandre) quem são os apóstatas da democracia. Só não sabem por que essa escumalha permanece livre, espalhando seu ódio e seus crimes. 

Está-se esperando demais. Quousque tandem?