sexta-feira, 10 de setembro de 2021

LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH'ENTRATE


Só pra constar: na Divina Comédia (Dante, Inferno, III, 9), o epigrama que intitula este post está inscrito na porta do inferno. Dito isso, sigamos adiante.

Bolsonaro vive no passado e tem saudades de um Brasil que não existe mais. Mesmo que não sirva de consolo, é reconfortante saber que a rede de apoio que sustentou o golpe há quase seis décadas — a começar pelo respaldo internacional — ficou numa ilha do rio do tempo à qual, goste ou não o mandatário de fancaria, é impossível voltar. 

Nos anos 60, auge da Guerra Fria, o mundo estava dividido entre os EUA e a URSS, e os americanos mostravam-se empenhados em evitar que a revolução socialista cubana se repetisse na América Latina. Naquele Brasil, envolto em uma crise política desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, o apoio do governo americano foi fundamental para a tomada do poder pelos militares. Agora, a ameaça comunista aparece materializada apenas nas teorias delirantes dos bolsonaristas. 

A mais recente tentativa do presidente de demonstrar poderio bélico virou piada, com a patética exibição de velhos tanques expelindo fumaça preta por Brasília. A despeito da grande participação de militares no atual governo, há alas de oficiais muito descontente com a insistência do capitão em tentar usá-los como uma espécie de milícia particular (expressa na fala “meu Exército”, repetida ad nauseam pelo mandatário).

Em março de 1964, não havia incômodo entre as Forças Armadas em ter um papel de protagonismo na vida política — tanto é que os fardados contavam com o apoio de parte expressiva da sociedade para derrubar João Goulart, sobretudo entre as chamadas elites, que viam na intervenção uma possibilidade de estabilidade ante à tormenta política da época. 

Após o discurso de Jango para 150000 pessoas na Central do Brasil, que marcou sua guinada à esquerda, a classe média e a Igreja Católica promoveram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que contou com 300.000 pessoas em São Paulo, pregando contra a ameaça comunista e o governo em um movimento que se espalharia por outras capitais. 

No cenário atual, a despeito do barulho que promove para mobilizar sua base radical, Bolsonaro conta com a reprovação da maior parte dos brasileiros. Nem o eleitorado evangélico, um dos esteios do bolsonarismo, está unido em apoio ao Messias. E como o próprio Bolsonaro é a maior fonte de instabilidade no país neste momento, sua permanência no poder, justificada com o argumento de que isso poderia aplacar turbulências, é mais difícil de engolir que a teoria terraplanista.

Se as eleições fossem hoje, Bolsonaro teria imensa dificuldade em se reeleger, o que se deve, inclusive, a suas próprias escolhas. Depois de registrar crescimento nos três trimestres anteriores, o PIB relativo ao segundo trimestre sofreu uma queda de 0,1%. Esse resultado foi produzido basicamente pela atabalhoada condução inicial do processo de vacinação contra a Covid e, principalmente, pelos contínuos conflitos criados pelo presidente, que resultaram numa drástica redução nos investimentos. 

Baseado em conspirações e fantasias delirantes, o comportamento incendiário de Bolsonaro é especialmente prejudicial quando se leva em conta que há muitos problemas reais sobre os quais ele deveria se debruçar. Mas nada preocupa mais do que a forte baixa de 3,6% nos investimentos diante do primeiro trimestre. 

custo Bolsonaro fica especialmente claro na cotação do dólar. Em junho, pela primeira vez desde a disparada registrada no começo da pandemia, a moeda americana baixou dos 5 reais, mas a tendência foi bruscamente revertida pelos impropérios presidenciais. 

Segundo as contas do economista Livio Ribeiro, do FGV-Ibre, as condições econômicas permitiam uma cotação em torno dos R$ 4,20 reais. Os cerca de 30% a mais no valor da moeda americana ficariam na conta da bagunça institucional brasileira causada por Bolsonaro. Em outras palavras, o custo Bolsonaro começa no dólar e deságua na inflação — duas pancadas sem dó no bolso da maioria dos brasileiros.

Se a cotação do barril de petróleo avança hoje além dos US$ 70, em 2014 ela beirava os US$ 100Bolsonaro responsabiliza os governadores pelo litro da gasolina estar custando R$ 7 em alguns estados, mas não foi o ICMS que andou variando nos últimos tempos, e sim o dólar, que em 2014 estava na casa dos R$ 3. Se o imposto permanece estável e o preço internacional do petróleo já foi maior, a conclusão a que se chega é que são as ações erráticas do governo federal e a política de preços da Petrobras que elevaram o preço da gasolina.

Os problemas que afligem a população não advêm apenas da inflação e do dólar, mas também do elevado nível de desemprego que afeta o país. Mais da metade dos brasileiros capazes de trabalhar está desempregada ou desalentada. Ajudaria se o chefe da nação liderasse grupos de trabalho para enfrentamento das crises sanitárias, do desemprego e energética em vez de organizar motociatas eleitoreiras até mesmo em dias úteis.

Bolsonaro é uma usina de crises. Ele as produz em escala industrial para mudar o foco dos verdadeiros problemas que assolam o país  e que ele não tem competência para resolver. Seu comportamento é típico de um tiranete autoritário, incapaz de ouvir e dialogar com quem esteja fora de sua órbita de seguidores. 

O risco, agora, é a falastrice incontrolável do capitão comprometer de tal modo sua gestão que nada mais possa ser feito para resgatar o Brasil do desastre, a exemplo do que aconteceu no fim da gestão de Dilma. Infelizmente, o "mito" dos alienados ainda não se deu conta de que foi eleito presidente para resolver os problemas do país, não para criá-los.

Desde o fim da ditadura, o Brasil já penabundou, via impeachment, dois mandatários legitimamente eleitos. O primeiro, caso alguém não se lembre, foi Fernando Collor — também celebrizado como o primeiro chefe do Executivo Federal eleito diretamente desde Jânio Quadros, em 1960. A segunda foi Dilma Rousseff, que brincou de terrorista nos anos de chumbo, faliu duas lojinhas do tipo R$ 1,99 em 1995 e foi escalada pelo criminoso de Garanhuns para ser sua cria, pupila, poste e sucessora. 

A ideia do molusco era manter a poltrona aquecida até 2014, quando ele próprio voltaria a ocupá-la. Mas faltou combinar com a calamidade em forma de gente, que, dada sua obstinação em disputar a reeleição, protagonizou o maior estelionato eleitoral pré-Bolsonaro e acabou sendo expelida do cargo em 2016, graças à imprestabilidade do conjunto de sua obra.

Há quem diga que o potencial risco de um terceiro cartão-vermelho em tão pouco tempo sinalize que algo não vai bem no jogo democrático tupiniquim. Isso nos leva a 4 conclusões: 

1) Ainda existe gente perspicaz o bastante para concluir que merda fede

2) Esta republiqueta de bananas precisa comer muito feijão para se tornar uma democracia consolidada — como o feijão está pela hora da morte, o presidente recomenda comprar rifles; 

3) Não denunciar imediatamente o contrato de locação do Planalto é o mesmo que cavar mais fundo para sair do buraco do qual já se chegou ao fundo; 

4) Dar título eleitoral a apedeutas e obrigá-los a votar é como dar um isqueiro a um chipanzé, ensiná-lo a usar e então trancar o bicho num paiol de pólvora.

Alega-se que a deposição de Bolsonaro acentuaria a polarização política, aumentaria o conflito entre partidos, desenvolveria a sensação de crise política permanente e generalizada, chegaria a criar desconfiança nas próprias regras do jogo democrático. São pontos a considerar, naturalmente, mas o problema é que inexiste uma alternativa viável. E manter o desgoverno em curso pelos próximos 14 meses e 22 dias não é viável, pois equivale a conceder ao mandatário um salvo-conduto para terminar o projeto de demolição desta incipiente e frágil democracia que ele começou a executar 32 meses e 7 dias atrás.  

Regimes parlamentaristas dispõem de mecanismos flexíveis de término antecipado de governos, como o voto de não-confiança ou mesmo a perda de maioria parlamentar pela saída de parceiros da coalizão governista. Já o presidencialismo não oferece outros mecanismos capazes de quebrar a rigidez de mandato presidencial que não o impeachment.

Seria injusto (e até vexatório) comparar o Brasil a países de "primeiro mundo" — embora  a invasão do capitólio pela escumalha trumpista recomende uma reavaliação no conceito de "primeiro mundo". Ainda assim, apenas 1% dos pedidos de impeachment presidencial apresentados desde 1990 resultaram na deposição dos mandatários-alvo, enquanto 5% dos votos de não-confiança iniciados nas democracias parlamentaristas "avançadas" levaram de fato a queda antecipada de seus governos.

Os pedidos de impeachment que se efetivaram aqui por estas bandas seguiram as regras estabelecidas na Constituição e seus procedimentos foram chancelados pela STF, o que — pelo menos em tese — lhes conferiu legitimidade, independentemente de alegações de uma suposta falta de merecimento dos governantes penalizados. 

Alguém poderia dizer (eu mesmo já disse em diversas oportunidades) que o fato de Collor ter renunciado horas antes da votação de seu impeachment no Senado resultou na perda do objeto da ação, pois não há como cassar o mandato de quem dele abriu mão “espontaneamente”.

A punição prevista no § único do artigo 52 da CF para um presidente condenado em processo de impeachment é "a perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.” 

Uma leitura atenta do texto legal nos leva à conclusão de que “com” exerce a função de "conjunção subordinativa aditiva", relacionando o que vem depois dela (inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública) ao que vem antes (perda do cargo). Daí serem no mínimo discutíveis tanto a inabilitação política do caçador de marajás de araque, em 1992, quanto a deposição da nefelibata da mandioca, em 2016, sem a suspensão de seus direitos políticos

No caso específico da presidanta, ao compactuar com a maracutaia urdida pelo então presidente do Senado, Renan Calheiros, o então presidente do STF — e eterno militante petista — Ricardo Lewandowski cometeu crime de prevaricação.  Mas para que isso tivesse consequências seria preciso que o Brasil fosse uma república que se desse ao respeito, não uma republiqueta de bananas que o mandatário que "caga para a CPI" apequena dia após dia aos olhos do mundo, por pensamentos, palavras, atos e omissões. Vade retro, Satanás!

Segundo o cientista político e professor Carlos Pereira, a interrupção de mandatos presidenciais é um fenômeno complexo que tem várias causas e determinantes, mas depende diretamente da quebra de apoio parlamentar seguida da convergência de interesses da maioria da sociedade contra o mandatário de turno. 

A gravidade dos "crimes de responsabilidade" assume um papel secundário nesse jogo, sendo, portanto, ingenuidade comparar qual governante mereceria mais ou menos ter seu mandato finalizado por uma decisão da maioria qualificada de parlamentares. 

Como estratégia política, é evidente que o impeachment interessa a alguns e a outros não. Quem perde com o impeachment tende a alegar defensivamente que foi uma tentativa de golpe contra quem recebeu o mandato da maioria dos eleitores. Mas isso é outra conversa.

Na conjuntura atual, uma parcela considerável da população optaria pela volta do ex-presidente que o STF promoveu de ex-presidiário a ex-corrupto para evitar a reeleição de Bolsonaro. O motivo é justificável, mas não se pode admitir que o fim justifique os meios — por bem menos, essa mesma corte declarou suspeito o ex-juiz Sérgio Moro, que é malvisto por algumas supremas togas e invejado por outras, que precisariam nascer de novo para ombrear em lisura e, por que não dizer, em popularidade com o ex-titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. Mas isso também é outra conversa.

Um contingente expressivo de eleitores está em busca de alternativas — logo não votaria nem no demiurgo de esquerda nem no populista radical de extrema-direita, especialmente se essa alternativa for capaz de derrotar tanto um quanto o outro no segundo turno. 

Para Lula, seria vantajoso que Bolsonaro se mantivesse na disputa de forma competitiva. Mas isso não muda o fato de que, se respeitados os procedimentos, um possível impeachment do capitão não será um golpe — assim como não foi o de Dilma —, ainda que possa servir como um “golpe de misericórdia” para a candidatura de Lula.

Com Veja