sábado, 6 de novembro de 2021

ERA O QUE FALTAVA!

 

Da equipe de "notáveis" que foram empossados ministros em 1º de janeiro de 2019, contam-se nos dedos de uma só mão os que ainda continuam no cargo — não por competência, mas por rezarem pela cartilha do chefe. O veterinário e político gaúcho Onyx Lorenzoni faz parte dessa tão seleta quão reduzida confraria.

Lorenzoni chefiou inicialmente a Casa Civil da Presidência, de onde saltou para o Ministério da Cidadania, e de lá para a Secretaria-Geral da Presidência da República. Por ocasião da última reforma ministerial, na qual Bolsonaro finalmente entregou o governo ao Centrão, o político gaúcho teve de ceder a poltrona para Ciro Nogueira. Para não deixar seu fiel vassalo ao relento, nosso indômito capitão recriou o Ministério do Trabalho — que ele próprio havia extinguido em 2019.

O Ministério do Trabalho foi criado originalmente em 1930, durante o governo Vargas, e entregue a Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor, avô do ex-presidente e ainda senador Fernando Collor de Mello. Durante a nada saudosa gestão do caçador de marajás de araque, a pasta foi chefiada pelo sindicalista Antonio Rogério Magri (para quem o FGTS era "imexível" e sua cadela, Orca, "um ser humano como outro qualquer"). Durante o mandato tampão do vampiro do Jaburu, houve um furdunço envolvendo o notório Roberto Jefferson (que atualmente goza de férias compulsórios no presídio de Benfica) e sua filha Christiane Brasil.

A partir de então, como resultado de uma miserável sucessão de atos de inépcia por parte do gabinete da Presidência da República e de surtos repetidos de demência por parte de integrantes do Poder Judiciário, deu-se uma vacância nesse obelisco da inutilidade — do qual nenhum trabalhador brasileiro honesto sentiu a menor falta durante meses a fio.

Tanto faz que haja um ministro do Trabalho ou que não haja nenhum — não muda nada, e a suspeita, mais do que razoável, é que não mudaria nada jamais, até o fim dos tempos, se o Ministério do Trabalho nunca mais voltasse a ter um ministro. Ou, melhor ainda, que não houvesse mais o próprio ministério em si. Para que mais esse mamute na Esplanada dos Ministérios? Ele, como tantos outros primos, só serve mesmo para seus donos roubarem o Erário público, cevarem manadas inteiras de fiscais que vivem de extorquir empresas e criar novas regras para dificultar cada vez mais a criação e a manutenção de empregos neste país.

A inexistência dessa geringonça que os devotos do “Estado forte” gostam de chamar de “histórica”, porque foi fundada por São Getúlio, pouparia o Brasil das cenas, impróprias para todas as idades. Após ser impedido por um aliado de nomear o ministro que havia escolhido, Michel Temer tentou colocar no cargo uma deputada condenada em duas ações trabalhistas — o que não é pecado para ninguém, salvo para quem fosse assumir, justamente, o raio do Ministério do Trabalho.

Um juiz de Niterói proibiu a posse da filha de Jefferson, e o governo, em pânico, largou as decisões finais para os mais altos tribunais da nação. Para completar, descobriu-se que a ministra nomeada tinha como seu suplente na Câmara dos Deputados um colega que não só foi condenado a 12 anos de prisão por estupro, mas também era irmão do ex-governador Anthony Garotinho, ele próprio um ex-presidiário beneficiado pelo programa “Meu Alvará de Soltura, Minha Vida”, do ministro Gilmar Mendes.

Para que todo esse vexame? Só para ter mais um (ou mais uma) parasita com carro oficial em Brasília, onde sua ausência não é sentida por nenhuma pessoa séria? O único efeito prático de não haver um ministro do Trabalho é que deixam de ser assinadas portarias, e despachos, e ofícios, e o resto de toda essa infame papelada que não serve para coisa nenhuma — ou melhor, serve, e serve muito, mas apenas aos interessados em arrancar do Tesouro Nacional algum proveito para si mesmos.

Mas tudo que foi escrito aqui poderia ter sido escrito em grego, caso alguém imagine que um único político brasileiro possa encontrar alguma coisa de estranho nessa alucinação toda. Para eles, é justamente essa farinata disforme que serve como pão nosso de cada dia. De seu ponto de vista, a única função que o Brasil tem hoje é prover, com o dinheiro dos impostos, sua sobrevivência e prosperidade — sua, das famílias, dos amigos e dos amigos dos amigos.

Com exceção de um ou outro órgão que exerce funções de Estado verdadeiras, o governo brasileiro, como sempre, continua servindo somente para duas coisas: roubar e mentir. Até não muito tempo atrás, a única diferença com o passado recente era que os governos de Lula e de Dilma roubavam e mentiam mais — hoje, já não se sabe. Afora isso, a essência é exatamente a mesma em todos eles, e não apenas na área do Poder Executivo. O Legislativo é um bazar como a Rua 25 de Março em São Paulo ou o Saara no Rio de Janeiro — com a diferença de que nesses dois lugares os padrões de honestidade comercial são incomparavelmente mais elevados. O Judiciário é uma zona de catástrofe da qual qualquer brasileiro decente reza para ficar o mais distante possível.

Voltando aos dias atuais, o multiministro Onyx Lorenzoni, expert em assuntos aleatórios e momentaneamente acomodado na pasta do Trabalho, passa a impressão de estar sempre prestes a decidir de qual borda da terra plana vai pular. Em matéria de vacinas, optou pela borda em que se encontra Bolsonaro. Editou portaria proibindo a demissão de quem não se vacinou e a exigência de atestado de vacinação para a contratação.

Em português claro: Onyx reconheceu por meio de portaria o direito dos sem-vacina de infectar livremente os colegas vacinados no ambiente de trabalho. De uma tacada, afrontou a Constituição, rasgou uma lei sancionada pelo próprio Bolsonaro, atropelou decisão do STF e se colocou na contramão de providências adotadas pelo STJ.

O ministro afrontou a Constituição porque qualquer advogado recém-formado sabe que o direito da sociedade à saúde prevalece sobre o direito individual do cidadão de recusar a vacina. Todos têm o direito de manter suas convicções e idiossincrasias pessoais, desde que não coloquem em risco a vida alheia. Fez picadinho da Lei 13.979/2020, sancionada por Bolsonaro em 6 de fevereiro do ano passado, que prevê no artigo 3º que, para enfrentar emergência internacional de saúde pública, as autoridades podem adotar medidas excepcionais, entre elas a vacinação "compulsória."

Onyx passou por cima do Supremo porque o plenário da Corte já decidiu, ao interpretar a lei retrocitada, à luz da Constituição, em dezembro do ano passado, que a obrigatoriedade da vacina é constitucional. Pela decisão, ninguém será arrastado na marra até a seringa, mas todos os não vacinados estão sujeitos a medidas restritivas — multa e proibição de frequentar determinados lugares, por exemplo.

Como ministro do Trabalho, Onyx não deveria ignorar que o TST, Corte suprema da Justiça trabalhista, começa a exigir na última terça-feira, 3, a exibição de comprovante de vacina para as pessoas que quiserem entrar nas sua sede. Ao noticiar a providência no seu site, a Corte a atribuiu ao "poder-dever da administração pública de proteger a saúde e a integridade física de servidores, colaboradores e usuários de seus serviços". Não é por outra razão que a Justiça do Trabalho vem reconhecendo país afora o direito das empresas de demitir os não vacinados e condicionar as contratações à exibição de atestados de vacina. Tudo ao contrário do que desejam Onyx e, sobretudo, seu amado chefe.

Certos governos só serão perfeitamente compreendidos daqui a um século. Governos incertos como o de Bolsonaro só serão devidamente entendidos no século passado. O presidente e seus áulicos têm o direito de ser ouvidos quando dizem tolices sobre vacinas. Mas isso não inclui automaticamente o direito de serem levados a sério. A portaria de Onyx é uma piada sem graça.

Com J.R. Guzzo e Josias de Souza