No Brasil, é costume dizer que o ano novo começa depois do Carnaval. Resta saber quando isso se dará: desde 2020, quando o Carnaval foi o estopim da pandemia de Covid aqui nestas bandas, o Rei Momo não dá o ar de sua graça. E tudo indica que este ano não será diferente.
Falando em começo de ano (embora janeiro já caminhe para o
final), Bolsonaro não demorou a despir o figurino de respeitador das
instituições que tanto desconforto parece lhe causar. O brasileiro mal havia pulado as sete ondinhas e inquilino do Planalto já havia rasgado a fantasia criada
em setembro pelo estilista-vampiro do Jaburu e retomado sua arenga
conspiracionista.
Bolsonaro
ora ruge, ora mia, mas sempre destrói. O Brasil está farto de um
presidente que dedica seus dias a estorvar o andamento dos ministérios, dos outros
Poderes, das demais instituições, da relação entre os entes federativos, do
combate à vacinação, enfim... Conviver com um chefe de Estado dessa
catadura desafia a lógica, a paciência e, no caso de muitos auxiliares e
bajuladores, o amor-próprio, a coerência e o bom senso.
Travestido em sua persona que ruge, Bolsonaro vitupera a Anvisa, os governadores, o Supremo, os culpados de sempre no discurso, ora manjado, que direciona aos baba-ovos terraplanistas. E conseguiu a adesão bovina de mais um ministro da Saúde — que, a exemplo do pesadelo anterior, manda às favas a ética e o amor-próprio. “Melhor perder a vida que a liberdade”, foi a pérola que o cardiologista paraibano Marcelo Queiroga proferiu, todo cheio de si, ecoando o chefe (liberdade, nesse caso, significa simplesmente não se vacinar, pouco importando se com isso a vida dos outros é posta em risco).
Observação: Tantas são as camadas de absurdo
administrativo, ético, moral ou lógico do conjunto de ações e declarações do
presidente e do ministro desde a acertada (mas tardia) decisão da Anvisa
que choca ainda mais o fato de o PGR não cobrar deles suas obrigações.
Em vez disso, Augusto Aras pegou o mesmo pacote de férias antecipadas do
chefe e não se manifestou sobre sucessivas ameaças aos direitos elementares da
população, como receber uma vacina já aprovada pelo órgão técnico competente. A
incúria é tamanha que, no dia seguinte à publicação do edital mambembe em que
se inventa no improviso uma consulta pública inédita, sequer havia um
formulário para que os interessados em palpitar sobre a vacinação o fizessem!
Quando mia, Bolsonaro sempre encontra uma maneira de
distrair os fãs para que não percebam seu recuo. Nesse caso em tela, foi
dirigindo um palavrão a João Doria, que disse que em São Paulo seria
exigido o certificado de imunização — no que o governador paulista foi seguido
por outros governadores e prefeitos, deixando o presidente isolado. Depois que
afina, como fez também em relação ao STF no episódio da patética cartinha
redigida nos joelhos pelo nosferatu que lhe entregou a faixa, espera o tempo
passar para ficar valente de novo.
Como miou no passaporte da vacina, nosso indômito capitão
voltou a arreganhar os dentes para Alexandre de Moraes. O rosnado vai
durar até que o togado torne a botar no fogo a frigideira dos aliados que o
psicopata insiste em proteger usando a estrutura de Estado. Quando isso
acontecerá, só Deus sabe. Parece que o Supremo finalmente compreendeu que
está lidando não com um presidente, mas com uma criança mimada e birrenta.
O problema é que esse morde-assopra é uma das principais
causas da debacle nacional. Seria bem mais simples (e inteligente) governar, mas
para isso o presidente precisaria saber como.
Em 2018, surfando nas ondas do antipetismo e do lavajatismo,
o então deputado de dois projetos alimentou a estrutura que começara a montar
em 2014, cevando uma direita radicalizada diante da qual até então a política,
a imprensa e a academia estavam distraídas. Como presidente, ele usará a caneta,
o dinheiro conseguido à custa de calotes e pedaladas e o apoio de um Centrão
cooptado pelo orçamento secreto para compensar (ou pelo menos tentar) a perda
de uma parcela do eleitorado composta pelos insatisfeitos com a política como
um todo — ou com o PT em particular —, que pularam do barco diante de
sua conduta criminosa na pandemia, de suas investidas contra a democracia e de
seu legado destrutivo.
Os alvos da fase de populismo fiscal são os beneficiários de
programas sociais, servidores agora adulados e quem mais puder ser atingido
pelas políticas federais voltadas ao desmonte das estruturas de contenção a
determinadas atividades — garimpeiros, madeireiros, caçadores, atiradores e
outros que tais. Para atrair esse nicho e manter o núcleo duro dos despirocados
que ainda lhe são fiéis, Bolsonaro espalha fake news, demoniza o STF
e conspira contra o voto eletrônico e as vacinas.
Contribuem para isso a entrada do dublê de pastor
presbiteriano e amigo de fé, irmão e camarada André Mendonça no Supremo
— comemorada
pela primeira-dama com pulinhos, gritinhos e frases ininteligíveis —, a
votação do Orçamento, a conclusão da PEC dos Precatórios, o abafa das investigações
que miram seus filhos, e por aí segue o descalabro nacional.
Tão logo Bolsonaro colha os frutos que lhe foram
facultados pela leniência dos próprios ministros dos tribunais superiores, por
deputados e senadores da oposição, pelo TCU e por uma sociedade que
parece já ter esquecido até as mais de 621 mil vítimas fatais da pandemia, cenas como
as covardes agressões a jornalistas sob seu olhar cúmplice serão constantes e
incentivadas. E, com dinheiro ilimitado, a coisa será ainda mais fácil.
Com Vera Magalhães