quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

QUEM PRECISA DE VÍRUS? (FINAL)


No Brasil, é costume dizer que o ano novo começa depois do Carnaval. Resta saber quando isso se dará: desde 2020, quando o Carnaval foi o estopim da pandemia de Covid aqui nestas bandas, o Rei Momo não dá o ar de sua graça. E tudo indica que este ano não será diferente.

Falando em começo de ano (embora janeiro já caminhe para o final), Bolsonaro não demorou a despir o figurino de respeitador das instituições que tanto desconforto parece lhe causar. O brasileiro mal havia pulado as sete ondinhas e inquilino do Planalto já havia rasgado a fantasia criada em setembro pelo estilista-vampiro do Jaburu e retomado sua arenga conspiracionista.

Bolsonaro ora ruge, ora mia, mas sempre destrói. O Brasil está farto de um presidente que dedica seus dias a estorvar o andamento dos ministérios, dos outros Poderes, das demais instituições, da relação entre os entes federativos, do combate à vacinação, enfim... Conviver com um chefe de Estado dessa catadura desafia a lógica, a paciência e, no caso de muitos auxiliares e bajuladores, o amor-próprio, a coerência e o bom senso.

Travestido em sua persona que ruge, Bolsonaro vitupera a Anvisa, os governadores, o Supremo, os culpados de sempre no discurso, ora manjado, que direciona aos baba-ovos terraplanistas. E conseguiu a adesão bovina de mais um ministro da Saúde — que, a exemplo do pesadelo anterior, manda às favas a ética e o amor-próprio. “Melhor perder a vida que a liberdade”, foi a pérola que o cardiologista paraibano Marcelo Queiroga proferiu, todo cheio de si, ecoando o chefe (liberdade, nesse caso, significa simplesmente não se vacinar, pouco importando se com isso a vida dos outros é posta em risco).

Observação: Tantas são as camadas de absurdo administrativo, ético, moral ou lógico do conjunto de ações e declarações do presidente e do ministro desde a acertada (mas tardia) decisão da Anvisa que choca ainda mais o fato de o PGR não cobrar deles suas obrigações. Em vez disso, Augusto Aras pegou o mesmo pacote de férias antecipadas do chefe e não se manifestou sobre sucessivas ameaças aos direitos elementares da população, como receber uma vacina já aprovada pelo órgão técnico competente. A incúria é tamanha que, no dia seguinte à publicação do edital mambembe em que se inventa no improviso uma consulta pública inédita, sequer havia um formulário para que os interessados em palpitar sobre a vacinação o fizessem!

Quando mia, Bolsonaro sempre encontra uma maneira de distrair os fãs para que não percebam seu recuo. Nesse caso em tela, foi dirigindo um palavrão a João Doria, que disse que em São Paulo seria exigido o certificado de imunização — no que o governador paulista foi seguido por outros governadores e prefeitos, deixando o presidente isolado. Depois que afina, como fez também em relação ao STF no episódio da patética cartinha redigida nos joelhos pelo nosferatu que lhe entregou a faixa, espera o tempo passar para ficar valente de novo.

Como miou no passaporte da vacina, nosso indômito capitão voltou a arreganhar os dentes para Alexandre de Moraes. O rosnado vai durar até que o togado torne a botar no fogo a frigideira dos aliados que o psicopata insiste em proteger usando a estrutura de Estado. Quando isso acontecerá, só Deus sabe. Parece que o Supremo finalmente compreendeu que está lidando não com um presidente, mas com uma criança mimada e birrenta.

O problema é que esse morde-assopra é uma das principais causas da debacle nacional. Seria bem mais simples (e inteligente) governar, mas para isso o presidente precisaria saber como.

Em 2018, surfando nas ondas do antipetismo e do lavajatismo, o então deputado de dois projetos alimentou a estrutura que começara a montar em 2014, cevando uma direita radicalizada diante da qual até então a política, a imprensa e a academia estavam distraídas. Como presidente, ele usará a caneta, o dinheiro conseguido à custa de calotes e pedaladas e o apoio de um Centrão cooptado pelo orçamento secreto para compensar (ou pelo menos tentar) a perda de uma parcela do eleitorado composta pelos insatisfeitos com a política como um todo — ou com o PT em particular —, que pularam do barco diante de sua conduta criminosa na pandemia, de suas investidas contra a democracia e de seu legado destrutivo.

Os alvos da fase de populismo fiscal são os beneficiários de programas sociais, servidores agora adulados e quem mais puder ser atingido pelas políticas federais voltadas ao desmonte das estruturas de contenção a determinadas atividades — garimpeiros, madeireiros, caçadores, atiradores e outros que tais. Para atrair esse nicho e manter o núcleo duro dos despirocados que ainda lhe são fiéis, Bolsonaro espalha fake news, demoniza o STF e conspira contra o voto eletrônico e as vacinas.

Contribuem para isso a entrada do dublê de pastor presbiteriano e amigo de fé, irmão e camarada André Mendonça no Supremocomemorada pela primeira-dama com pulinhos, gritinhos e frases ininteligíveis —, a votação do Orçamento, a conclusão da PEC dos Precatórios, o abafa das investigações que miram seus filhos, e por aí segue o descalabro nacional.

Tão logo Bolsonaro colha os frutos que lhe foram facultados pela leniência dos próprios ministros dos tribunais superiores, por deputados e senadores da oposição, pelo TCU e por uma sociedade que parece já ter esquecido até as mais de 621 mil vítimas fatais da pandemia, cenas como as covardes agressões a jornalistas sob seu olhar cúmplice serão constantes e incentivadas. E, com dinheiro ilimitado, a coisa será ainda mais fácil.

Com Vera Magalhães