No comício em Brasília, após dar a deixa para a multidão vaiar o STF, o presidente emendou: "A voz do povo é a voz de Deus" (momentos antes, "a voz de Deus" o havia saudado aos brados de "imbrochável, imbrochável"). Ato contínuo, mandou ainda um recado velado à corte, que foi repetido em termos similares no comício em Copacabana: "Com uma reeleição, nós traremos para dentro das quatro linhas [da Constituição] todos que ousam ficar fora delas" (velado para padrões bolsonaristas, bem entendido, pois, na real, foi tão acintoso quanto a indumentária verde-exorcista do dublê de Louro José e Véio da Havan).
O clima de tensão permanente faz parte da canastrice do "mito", que xinga ministros do STF, ofende jornalistas, lança dúvidas espúrias sobre as urnas e fala em "liberdade" apenas para entusiasmar seguidores e aterrorizar opositores — como se sabe, sua defesa da livre expressão deve durar somente até o próximo especial de Natal do Porta dos Fundos.
Sob a ameaça do golpe que não virá, o cenário político vive o paradoxo da instabilidade estável. Como os cidadãos do império descrito em À Espera dos Bárbaros pelo poeta grego Konstantinos Kaváfis, estamos todos antevendo a chegada de bárbaros que nunca chegam — a metáfora é imperfeita; no caso brasileiro, os bárbaros já chegaram, só não se sabe se vão mesmo levar a barbárie até as últimas consequências.
Enquanto a choldra ansiosa pelo golpe (que não veio e, muito provavelmente, não virá) levanta faixas e cartazes pedindo intervenção militar, outro grupo (igualmente ignaro e desprezível) ressuscita ambiguidades esquisitas, como Dilma Rousseff ter sido vítima de um golpe — embora alguns petistas ousem discordar: em 2016, Haddad disse que golpe era uma palavra “muito dura”.
No governo Temer, começou a ganhar corpo uma conversa estranha sobre a necessidade de resistir ao golpe (isso quando não se falava em resistir ao fascismo!). A palavra "resistência" conjurava a miragem histórica do enfrentamento armado à ditadura militar. O documentário Democracia em Vertigem deu forma a essa ilusão fundindo a trajetória dos pais da diretora Petra Costa — que participaram de um movimento clandestino contra o regime militar — à derrocada da nefelibata da mandioca.
Depois da eleição de um capitão reformado que exalta a ditadura e seus torturadores, o termo "resistência" se tornou um clichê nos meios progressistas. Hoje, quando um resistente grita "golpe", já não se sabe se ele está fazendo uma denúncia ou expressando um desejo recalcado. O jovem militante de rede social anseia pela fase final do golpe — com tanques sucateados tomando as ruas, em meio a muita fumaça, e os porões do DOPS reabertos. Só assim seus pesadelos mais temidos e suas ilusões mais queridas se tornariam realidade.
Por outro lado, as inegáveis aspirações antidemocráticas do bolsonarismo são, no mínimo, preocupantes. E a fixação pelo fantasma do golpe vem acompanhada de um vício de análise: toda vez que uma insinuação de ruptura não se cumpre, conclui-se que as instituições são vigorosas e estão funcionando a pleno vapor, quando na verdade a submissão da máquina pública aos ditames da chamada guerra cultural — iniciada nos anos petistas, sim, mas radicalizada com Bolsonaro — já corroeu as tais instituições. E o desgaste não se limita ao Estado aparelhado por milicos e olavetes. Igrejas, escolas, empresas e até grupos familiares estão divididos por ideologias beligerantes.
Em entrevista concedida à finada Época (que encerrou suas atividades como revista impressa para se tornar uma seção do jornal O Globo em maio de 2021), o filósofo inglês John Gray, autor de O Silêncio dos Animais, fez uma avaliação desalentadora sobre os Estados Unidos depois do governo Trump: o país ainda é uma democracia, com eleições limpas e regulares, mas não pode mais ser considerado uma sociedade liberal. O liberalismo de que Gray fala (e cujas ilusões critica em obras como Cachorros de Palha) não se limita ao livre mercado, mas se estende às liberdades individuais e às instituições que as sustentam.
"Para se ter de fato uma sociedade liberal é preciso que exista uma grande variedade de instituições que não são marcadamente politizadas" disse Gray na entrevista. Segundo ele, essa condição já não se encontraria mais nos Estados Unidos. "Não acredito que uma sociedade liberal ainda esteja viva quando todas as instituições vivem em guerra interna e estão em guerra umas com as outras".
Sem nunca ter desenvolvido uma sociedade liberal digna desse nome, o Brasil vive a mesma situação.
Com Crusoé