segunda-feira, 7 de novembro de 2022

DÉJÀ VU E VOTO DE CONFIANÇA

 

A vitória do PT (travestido de Frente Ampla Democrática) sobre Bolsonaro é um bom exemplo de déjà vu — lembrança de um episódio que não vivenciamos. Um terceiro mandato do ex-presidente que escapou do mensalão, tropeçou no petrolão, gozou 580 dias de férias compulsórias em Curitiba e foi eleito com mais de 60 milhões de votos é vista com alívio por milhões de brasileiros,  mas não convém comemorar por antecipação. 

Quatro anos atrás, festejamos a vitória de um dublê de mau militar e parlamentar medíocre sobre o bonifrate do então candidato-presidiário. Este último, tirado da cadeia e reabilitado politicamente por togados amigos, ora se vê como a reencarnação de Nelson Mandela, é tido pela mídia internacional como uma fênix ressurgida das cinzas e considerado pela patuleia como um beato a caminho da canonização. 
 
As perspectivas alvissareiras de 2018 eram pura quimera, mas o eleitorado tupiniquim, sempre pronto a fazer as piores escolhas, reencenou uma versão revista e atualizada daquele pleito plebiscitário, achando que a melhor maneira de produzir um acerto é insistir no erro. 

Talvez o próximo governo nos livre de decisões tomadas na calada da madrugada, dos abjetos sigilos de 100 anos, de um presidente que diz que “pintou um clima” com crianças de 14 anos, de uma ministra dos Direitos Humanos (recém-eleita senadora pelo DF) que vaza dados falsos de bebês estuprados, de um ministro do Meio Ambiente que se deixa fotografar ao lado de madeireiros ilegais, de um general guindado a ministro da Saúde sem qualificação para ocupar o posto (ora eleito deputado federal pelo RJ), que negligenciou oxigênio a enfermos à beira da morte enquanto recomendava remédios ineficazes para o combate à Covid, e por aí segue a procissão.
 
Talvez tenhamos a chance de despejar no esgoto da história um mandatário truculento e golpista, que criou um Estado de Emergência fajuto para meter a mão no dinheiro público e um famigerado orçamento secreto para garantir sua reeleição (que acabou por não acontecer). Lula se apresenta como remédio capaz de curar essas feridas, mas, de novo, já vimos esse filme antes. 
 
Em 2018, quando Bolsonaro derrotou o preposto do petista por uma diferença de 10,8 milhões de votos válidos, houve gritos, fogos, panelaços e buzinaços. Não me recordo de bloqueios em rodovias nem de manifestações golpistas, pedidos de intervenção militar e de fechamento do STF. Mas quem observa desde o resultado das urnas os protestos dos sectários do imbrochável conclui que os manifestantes fizeram papel de bobos. Um aperto de mãos entre Bolsonaro e Alckmin deu ao início da transição um toque de normalidade que não orna com a baderna das ruas. Na descrição do vice-presidente eleito, o ainda presidente vai se empenhar para que a transição seja "pautada pelo interesse público". Será?

Na prática, Bolsonaro vai se tornando uma espécie de ex-presidente no exercício da Presidência. Quem pede nas ruas para que a página da democracia seja virada para trás perde seu tempo, voz e nexo. Devagarinho, o terceiro turno vai migrando das ruas para o Congresso, onde Lula tenta reescrever o orçamento federal feito sob seu futuro antecessor para vigorar no primeiro ano do futuro governo. 
 
O Brasil já viveu muitas transições, cada uma com sua peculiaridade. Mas todas têm algo em comum: as boas intenções políticas do presidente eleito diminuem conforme o dia da posse se aproxima. Em campanha, Lula chamou o orçamento secreto de "maior bandidagem já feita em 200 anos". Acusou o presidente da Câmara, de "comprar os votos dos deputados" com o propósito de fazer "desgraceiras". Eleito, avaliza acertos que podem manter o que chamou de "bandidagem", numa negociação com o rei Arthur.
 
A perversão orçamentária de Bolsonaro leva o petista a iniciar o seu governo antes da posse. O Orçamento federal de 2023 não tem verbas para o Bolsa Família em R$ 600 nem para merenda escolar, farmácia popular, manutenção de estradas e fiscalização ambiental. Embora destelhado e desmoralizado, o teto de gastos ainda existe formalmente. Para ser furado em cerca de R$ 200 bilhões, o futuro presidente precisa da ajuda do Centrão. Mas Lira pede em troca a manutenção do orçamento secreto e neutralidade de disputa pela presidência da Câmara em fevereiro. Até o aliado Renan Calheiros estranha a rapidez da rendição: "É uma barbeiragem", disse ele. "O Centrão já não cabe no orçamento."
 
Lula diz que quer se redimir pelos erros do passado e pede um voto de confiança. A nós, resta lhe dar ao menos uma chance de tentar. Mesmo sendo ele quem é. Mas não será fácil fugir da cooptação venal que Bolsonaro abraçou alegremente ao apoiar Arthur Lira para a presidência da Câmara e nomear Ciro Nogueira ministro-chefe da Casa Civil. Não quando se tem um mensalão e um petrolão no currículo.

Quando um político consegue fazer o eleitorado de idiota é porque encontrou material. Depois que a milícia digital bolsonarista aprendeu a deformar mentes nas redes sociais, verificou-se que a diferença entre a lucidez e a maluquice é que a lucidez tem limites.

Triste Brasil.